Aconselho a entrevista que Vítor Gonçalves fez a Pedro Nuno Santos.
Não por encontrarem por lá uma cacha ou grande novidade. Nem sequer por
o ministro ter desenvolvido um discurso especialmente denso ou
sofisticado sobre o futuro do país ou da esquerda, o que se passou nos
últimos quatro anos ou o que se passará nos próximos quatro. Apenas
porque fica claro porque é que, mais tarde ou mais cedo, Pedro Nuno
Santos será líder do PS.
O
que causa impacto naquela entrevista é a clareza nas intenções, pouco
habitual em dirigentes do PS. Clareza em assumir os aliados como
aliados, os adversários como adversários, o campo político da esquerda
como lugar de morada, a identidade socialista sem qualquer complexo e a
convicção de que é da existência de campos que se apresentam como
alternativa que depende a saúde da democracia. A isso, Pedro Nuno Santos
juntou a assunção dos bloqueios europeus, contra os quais pouco mais
consegue propor do que uma gestão de forças e expectativas. É a sua
fragilidade. Para não se confrontar com esses bloqueios em todas as suas
consequências, exagerou na capacidade que este Governo mostrou nos
embates com Bruxelas e ignorou o papel de Centeno como controleiro do
Eurogrupo em Lisboa.
Pedro
Nuno Santos acredita que a única forma de salvar a democracia é garantir
que ela tem, dentro do seu próprio campo, alternativas políticas. Não
estamos a falar de alternância no poder, em que o pessoal político muda
para aplicar receitas semelhantes. Isso é o que tem matado a democracia
como exercício de escolha entre caminhos divergentes, única forma de a
manter aberta. Isto não quer dizer que a democracia não consiga
reproduzir nas instituições os consensos que existem na sociedade.
Consegue e deve fazê-lo. Quer dizer que a democracia não pode deixar de
ter, no campo dos que a defendem, um plano B. Porque se desistirmos
disso é fora do campo democrático que esse plano alternativo se
construirá.
Em Portugal, os
dois blocos terão de ser liderados pelo PS e pelo PSD, não devendo isso
corresponder a um bloco central alternante, em que os pequenos se
anulam. Isso seria ainda pior do que o passado, porque faria desaparecer
a representação política de um quarto dos eleitores, que acabariam por
migrar para margens antidemocráticas. Estes blocos têm de corresponder
às sínteses dos que os compõem, dependendo essas sínteses do peso
eleitoral relativo de cada um.
Teoricamente,
António Costa também tem esta posição. Tanto, que foi obreiro da
geringonça. Mas, neste tempo de fortíssima hegemonia neoliberal, há uma
grande diferença entre considerar que os aliados naturais e estratégicos
do PS são o BE e o PCP e apenas defender que BE e PCP devem ser
incluídos no leque de alianças que podem construir maiorias, dando aos
socialistas mais capacidade de escolha e derrubando um tabu de meio
século. A segunda posição foi a de Costa e isso explica porque tem
dedicado os últimos meses a tentar abrir o leque de escolhas. Porque há
uma diferença entre uma aliança estratégica e uma aliança tática. Uma
aliança estratégica não é um compromisso para a eternidade.
Assumindo
que não há qualquer área em que não seja possível trabalhar com o Bloco
e o PCP, Pedro Nuno Santos explicou a razão programática para a aliança
estratégica que advoga: “Defender o Serviço Nacional de Saúde
universal, público e tendencialmente gratuito só se faz com o PCP e com o
Bloco, não se faz com o PSD e com o CDS. Investir na Escola Pública
universal e gratuita só se faz com o PCP e com o Bloco de Esquerda.
Travar qualquer tentação de entrega das nossas reformas aos mercados
financeiros e até a reforma das fontes de financiamento só se faz com o
PCP e com o Bloco de Esquerda, não se faz com o PSD e com o CDS. As
reformas mais importantes para proteger o Estado social, que é a melhor e
mais importante construção política que o povo português conseguiu em
conjunto através do Estado, só se fazem com o PS, o PCP e o Bloco de
Esquerda, não se fazem com o PSD e com o CDS.” Como tem sido óbvio,
António Costa não tirou esta consequência estratégica da sua opção
tática.
Pedro Nuno Santos será líder do PS
porque tem do seu lado a correspondência da tática com a estratégia, da
estratégia com o programa e do programa com as aliados que deseja, o que
lhe dá plataforma política sólida e um discurso claro
À
clareza estratégica tem de corresponder clareza retórica. Na
entrevista, o ministro dedicou bastante tempo a contestar a ideia
instalada de que as reformas só o são quando doem aos mais fracos –
trabalhadores, desempregados, reformados. Quando há privatização,
liberalização e cortes. Só assim são “decisões difíceis”. E disse uma
frase que parece ser bastante arrogante: “A direita faz reformas
erradas”. Na realidade, a frase é muito menos arrogante do que o
discurso que conhecemos de sentido oposto: de que as reformas propostas
pela esquerda nem reformas são, porque a realidade as esmaga. A falsa
tecnocracia imposta pela direita conseguiu despolitizar a política,
transformando os seus dogmas ideológicos, tão estrondosamente
desmentidos na crise de 2008, em verdades incontestáveis. Isso sim, é
arrogância. Espera-se que alguém ache que o que propõe está certo e, por
isso, que as propostas de sentido inverso estão erradas. O que choca em
Pedro Nuno Santos é não ter o habitual discurso autojustificativo nem
colocar-se como charneira entre o “realismo” da direita e a “utopia” da
esquerda. Porque quer liderar um bloco, não quer estar entre os que
supostamente representam o possível, e os radicais, que o negam.
Já
houve muitos dirigentes da ala esquerda do PS. Mas contentaram-se
sempre com o papel de consciência crítica, quase sempre meramente
retórica, do PS. Como prémio, tinham direito a uma quota de
representação que iam gerindo com burocrático zelo. Nunca se importaram
de ser usados para os confrontos com os partidos mais à esquerda, que
sempre olharam como concorrência e não como potenciais aliados. Nunca
tiveram uma estratégia de poder. Talvez seja uma questão geracional.
Pedro Nuno Santos formou-se politicamente num período de derrota dos
partidos socialistas à escala europeia. Terá aprendido com isso. E tem
mais autonomia, poder interno e ambição do que muitos dos seus jovens
turcos.
A passagem pelo
Governo garantiu-lhe o tirocínio que lhe faltava: o do poder executivo.
Na Secretaria de Estado dos Assuntos Parlamentares, que nunca foi tão
importante como neste Governo, foi o pivô da geringonça. Conquistou a
confiança dos parceiros e desatou muitos nós. Usando muitas vezes a
autonomia política que tem do primeiro-ministro. A sua falta ficou
evidente no momento em que saiu, com sucessão de desencontros. Aliás,
atribuo a sua saída a uma vontade do primeiro-ministro em começar a
encerrar este período. No Ministério das Infraestruturas e da Habitação
ainda só teve vitórias semelhantes, provando as suas capacidades
negociais. Falta-lhe tudo o resto. Se for reconduzido, e tudo indica que
é essa a sua vontade, terá três desafios fundamentais: erguer uma
política pública de habitação, vencer a crise dos transportes que o
aumento da procura provocado pela redução dos preços dos passes sociais
agravou e reerguer a CP, para dar ao transporte ferroviário o papel que
deve ter no país. Tudo depende de dinheiro e não é ele quem tem as
chaves do cofre.
Pedro Nuno
Santos será líder do PS porque a escolha estratégica que propõe é a que
sobra a um socialismo em brutal recuo por toda a Europa a que, apesar
da ilusão cíclica que vivemos num oásis, não escaparemos. Tem do seu
lado o papel que teve na geringonça, assim como as provas que deu de
capacidade negocial. Tem do seu lado a correspondência da tática com a
estratégia, da estratégia com o programa e do programa com os aliados
que deseja, o que lhe dá uma plataforma política mais sólida do que o PS
tem hoje e um discurso muito mais claro. Tem do seu lado o facto de ser
o primeiro dirigente da ala esquerda do PS que não se propõe ser a
consciência crítica e domada do partido. Tem do seu lado o destino
trágico dos partidos socialistas que quiserem permanecer no cómodo lugar
de charneira política. E tem do seu lado a ausência de rostos
mobilizadores que levem a cabo o programa político de reabilitação da
terceira via, proposta por Augusto Santos Silva. Até tem do seu lado a
idade e a sua autonomia política. Terá contra si muitos dos poderes que
contam neste país e no seu partido e um percurso executivo que depende
do dinheiro de Centeno e Costa.
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