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domingo, 21 de julho de 2019

Pensar Bonifácio: não há duas sem três

João Rodrigues    21.Jul.19    Outros autores
Uma recente prosa racista de Fátima Bonifácio tem suscitado polémica. Há quem contraponha às suas concepções reaccionárias a “democracia liberal.” Este texto faz uma excelente reflexão sobre a matéria: nenhuma forma de organização e de funcionamento da sociedade pode ser apresentada como intemporal e a-histórica. A história da “democracia liberal” é um exemplo flagrante, e o seu balanço não é famoso.
A racista Maria de Fátima Bonifácio defendeu que os negros e os ciganos não teriam “descendido” da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão. Em anti-racista reacção, o historiador Rui Bebiano defendeu, por sua vez, o seguinte:
“Na realidade, o texto-chave da história contemporânea aprovado em Paris, pela Assembleia Nacional Constituinte, apenas cinco semanas após o episódio revolucionário decisivo que foi a Tomada da Bastilha, refere expressamente o caráter universal e igualitário desses direitos. Observados sob uma perspetiva ocidental, é certo, mas que sob a influência dos princípios iluministas e das ideias da Revolução Americana se pretendiam aplicáveis a todos os seres humanos.”
Creio que se pode estar a minimizar a distância histórica entre uma certa concepção potencialmente universalista e um conjunto de práticas político-institucionais, devidamente teorizadas, que bloquearam esse potencial. Negros, mulheres e plebe estavam na prática, e em muita da teoria, excluídos nesta fase, liberal e burguesa, da Grande Revolução Francesa, incluindo de uma Declaração que acabava por privilegiar os proprietários. A Declaração, por exemplo, não se aplicava inicialmente às colónias, em especial a São Domingos (futura República do Haiti), a lucrativa colónia açucareira assente numa força de trabalho esmagadoramente escrava e que assim permaneceu. Como defendeu Eric Hobsbawm, na sua magistral A Era das Revoluções, a revolução ignorou nesta fase a gente comum, quer do ponto de vista socioeconómico, quer do ponto de vista político.
Será só na fase republicana e jacobina da revolução, em 1794, que a escravatura é abolida nas colónias francesas, para voltar a ser reinstituída por Napoleão na fase de consolidação burguesa pós-revolucionária. Será só na fase jacobina que as questões social e democrática começam a ser constitucionalmente encaradas. Os chamados jacobinos negros, já agora, foram os actores da luta pela República do Haiti, o espectro a esconjurar por todos os meios e por toda a América de seguida.
E o que dizer da “Revolução Americana”? O capitalismo liberal norte-americano foi na sua prática institucional excludente, até porque foi escravocrata: o direito à felicidade não era de facto para todos. A divisão de trabalho na base do capitalismo norte-americano é impensável até muito tarde no século XIX sem esta forma de dominação, reforçada no sul até à década de sessenta e que também beneficiou o norte, como se tem cada vez mais sublinhado na nova história do capitalismo nos EUA: o algodão não engana, realmente.
Do ponto de vista político, lembremo-nos do compromisso dos três quintos na Convenção Constitucional, composta por homens brancos relativamente ricos, contando-se assim nesta proporção os escravos para efeitos de impostos e de peso eleitoral dos Estados. Lembremo-nos da necessária Guerra Civil e do grande Lincoln, por quem de resto Marx tinha uma enorme admiração. Lembremo-nos de como essa encarnação do chamado internacionalismo liberal que foi o Presidente Wilson, racista e segregacionista, recusou, em 1919, a proposta do Japão para inscrever a igualdade racial na nova ordem internacional emergente. E, já agora, lembremo-nos de como gente de esquerda anda ainda hoje a incensar figuras destas, em nome da adesão a um liberalismo demasiado a-histórico.
Se lembro estas coisas, é só para sublinhar como o liberalismo historicamente dominante é incompreensível se não atentarmos nas suas cláusulas institucionais de exclusão, anti-democráticas, racistas e patriarcais, até ao século XX e para lá dele. E estas cláusulas foram defendidas por algumas dos melhores pensadores liberais, de Tocqueville a Mill, particularmente no âmbito das questões colonial, social e democrática. Foram sobretudo as tradições republicana radicalmente democrática e socialista que lutaram para eliminar as tais cláusulas, em nome de um humanismo universalista genuíno, mas que foi tantas vezes recebido a ferro e fogo pelo liberalismo hegemónico no chamado longo século XIX e para lá dele.
É por estas e por outras razões históricas e por muitas outras razões ético-políticas que recuso colocar liberal a seguir a democracia. Um democrata tem de saber superar, friso a palavra superar, o liberalismo, até para não deixar de ter no horizonte a questão da superação do capitalismo, de que o primeiro é, em última instância, a ideologia.
Fonte: http://ladroesdebicicletas.blogspot.com/2019/07/pensar-bonifacio-nao-ha-duas-sem-tres.html

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