A
crise da nossa democracia resulta de uma crise geral de todas as formas
de intermediação, que incluem os partidos, os parlamentos, as igrejas
tradicionais, os sindicatos, os órgãos de comunicação social. Concentrar
o debate exclusivamente na corrupção (que a democracia apenas torna
mais visível), na desigualdade, na imigração, na globalização ou nas
redes sociais dá-nos uma visão parcelar do problema. Assumo que a
globalização retirou ao poder político a capacidade de exercer a sua
função reguladora e estratégica. Que essa globalização, associada ao
desenvolvimento tecnológico, criou, através de novas plataformas de
comunicação, novas comunidades eletivas que não coincidem com o universo
territorial e afetivo indispensável ao exercício da democracia. Que há
uma crise geral de autoridade moral e intelectual, que se estende da
política à ciência, destruindo uma “verdade” comum que a democracia
precisa para ser exercida em nome de todos. E que as mudanças rápidas a
que assistimos criam um sentimento de insegurança e precariedade que
favorece discursos que prometam devolver ordem ao que está desordenado.
A
regeneração da atividade política está no porta a porta. É a melhor
forma de voltar a criar laços de empatia, compromisso e confiança
política. As redes sociais são as televisões do futuro: um cemitério de
emoções. E é no local que está a última trincheira de todos os combates
globais
A melhor forma de travar a decadência da
democracia não é insistir nessas causas. Retirar poder ao Estado,
atirando competências políticas para estruturas ainda mais distantes,
não contribuirá para aproximar os cidadãos do poder. Retirar a política
da rua (seja nas campanhas ou no voto) para a passar a exercê-la no
espaço virtual, desmaterializando a democracia, não aprofundará o
sentimento de pertença. Transformar a política numa proposta atomizada
de modos de vida, que ignoram consensos científicos e civilizacionais,
só aprofundará a ansiedade das pessoas. E tornar o sistema político cada
vez mais instável apenas empurrará mais gente para uma nostalgia
romanceada de um tempo de ordem e segurança. As pessoas sentem que estão
numa tempestade. É um porto seguro que procuram, não é uma jangada que
vá com a maré. A questão é se esse porto seguro é uma fortaleza
autoritária ou uma comunidade de interajuda solidária. Uma coisa é
certa: não se combate a ansiedade fazendo da incerteza um discurso
político.
Não tenho, como é
evidente, nenhuma resposta milagrosa para este tempo difícil. O máximo
que tenho é algumas inclinações. A mais forte é esta: a proximidade é a
melhor resposta ao sentimento de ansiedade que domina as nossas
comunidades, cria um profundo sentimento de descrença e desconfiança e
está a minar todas as formas de autoridade moral e de intermediação
social e política. Não estou a usar uma palavra vazia. Estou a falar de
proximidade no sentido literal: o que está fisicamente perto. Porque
tenho a convicção que parte do sentimento de desconfiança em relação à
democracia e do deslaçamento das comunidades resulta de uma crise de
empatia. Claro que a desigualdade social, que voltou a aumentar nas
sociedades ocidentais, é um elemento central neste deslaçamento. Assim
como o desmantelamento dos Estados Sociais, a perda de poder dos Estados
face ao mercado ou a dispersão das formas de comunicação e de
socialização. Mas, não tendo solução para nada disto, acredito que a
proximidade física é o melhor instrumento para combater uma cultura que
nos está a atomizar e a escravizar.
Como
é que isto se traduz? Levando à letra a velha máxima de “pensar global e
agir local”. Local mesmo. No bairro. E isso quer dizer que as
organizações políticas, e sobretudo as partidárias, que quiserem
recuperar o seu papel têm de ser elas próprias apostar neste regresso à
base. Não se trata apenas de deixar de pôr todas as fichas nos media
tradicionais, intermediários em crise, trata-se de não julgar que o seu
substituto são as redes sociais. Uns e outros continuarão a ser
indispensáveis para a comunicação política, mas a regeneração da
atividade política está onde se fez no passado: no porta a porta. É a
melhor forma de voltar a criar laços de empatia, compromisso e confiança
política. É até a melhor forma de renovar o pessoal político ou
contrariar as fake news.
Isto
não passa apenas pela comunicação política. A boa comunicação política
está relacionada com a ação política. O porta a porta não serve de nada
se não se relacionar com a vida daquelas pessoas. Quem lhes bate à porta
tem de ser um dos seus. Têm de ser as pessoas que elas viram a lutar
pela resolução concreta de problemas concretos. Claro que nada disto
dispensa a ação nacional, europeia e internacional. Não estou a falar de
um novo sistema político, estou a falar de uma estratégia para
recuperar a ação política e democrática.
Numa
entrevista à última edição da revista “Manifesto”, o sociólogo
económico alemão Wolfgang Streeck afirmou que pode ser que esteja nas
“pequenas unidades políticas, como os distritos e as cidades, onde o
declínio da infraestrutura pública durante a era do neoliberalismo
forçou os cidadãos e os governos locais a responderem a necessidades
coletivas de cuidados à infância, transporte, policiamento e saúde” a
última bolsa de resistência à destruição do Estado Social. Já são as
estruturas locais do Estado, muitíssimo mais sujeitas à pressão
democrática, que estão a assumir funções que os Estados Nacionais
abandonaram e que estruturas supranacionais, distantes das populações,
nunca assumirão. Se assim é, este é o espaço ideal para recuperar a
democracia.
Não estou a
defender um novo basismo, que nunca me entusiasmou. Acho que ação
política continua a depender de experiência política. E de pensamento
político estruturado. E que as organizações políticas não devem
corresponder a uma mera soma de causas sem cimento ideológico que as
torne coerentes, inteligíveis e com propósito. Mas as coisas têm de
voltar cá abaixo. A ação política tem de voltar à cidade. Ao que está
perto. Onde se consegue responder à vida das pessoas com eficácia
visível e em tempo que a memória abarque. Isso não resolverá os nossos
problemas essenciais, mas permitirá aos agentes políticos mais ativos
recuperar a confiança popular.
Se a regeneração da
democracia depende da proximidade que devolva empatia à política, ela
renascerá na ação local. Os partidos políticos que se queiram reinventar
têm de voltar ao bairro, fazer aí combate político e cidadão e
restaurar os laços de confiança que se perderam. Porta a porta, corpo a
corpo. Porque as redes sociais são as televisões do futuro: um cemitério
de emoções. E porque é no local que está a última trincheira de todos
os combates globais. Se as grandes narrativas já não resultam, que se
transformem em lutas locais que as traduzam.
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