O enigma da sobrevivência neoliberal
Robert Kuttner
Como
um projeto fracassado, social e economicamente, mantém-se há 30 anos?
Em parte, devido ao poder de uma minoria ínfima. Mas é preciso encontrar
resposta mais profunda – e, em especial, uma saída que convença as
maiorias
Desde o final dos anos 1970,
vivemos um enorme experimento para testar a afirmação segundo a qual
mercados “livres” realmente funcionam bem. Esta ressurreição ocorreu
apesar do fracasso do laissez-faire, nos anos 1930, a humilhação
consequente da teoria dos mercados “livres” e, em contraste,
o sucesso do capitalismo regulado, durante o boom de três décadas do
pós-II Guerra.
Quando
o crescimento arrefeceu, nos anos 1970, a teoria econômica ultraliberal
teve uma nova chance. Ela demonstrou ser muito
conveniente para os conservadores, que voltaram ao poder na década
seguinte. A contrarrevolução neoliberal, na teoria e na prática,
reverteu ou solapou quase todos os aspectos do capitalismo regulado – a
tributação progressiva, as transferências de renda em
favor do bem-estar, as políticas antitruste, o empoderamento dos
trabalhadores e a regulamentação dos bancos e outros grandes setores
econômicos.
A
premissa neoliberal sustenta que mercados “livres” podem regular a si
mesmos; que o Estado tem incompetência inerente, deixa-se
capturar por certos interesses e representa uma intrusão na eficiência
do mercado; que, em termos da distribuição de riquezas, os resultados
sancionados pelo mercado são, em essência, merecidos; e que a
redistribuição cria incentivos perversos, ao punir os
vencedores econômicos e recompensar os perdedores. Por isso o Estado
deveria afastar-se das relações de mercado.
Nos
anos 1990, mesmo a esquerda moderada havia se convertido à crença de
que os objetivos de justiça social podem ser alcançados
reforçando o poder dos mercados. Períodos intermitentes de governo da
esquerda atrasaram, mas não reverteram a deriva rumo à doutrina e às
políticas neoliberais. As alas empresariais dos partidos que compuseram
esta esquerda aplaudiram.
Agora,
depois de quase meio século, o veredito é claro. Virtualmente todas
estas políticas fracassaram, mesmo em seus próprios
termos. As empresas foram recompensadas; os impostos, cortados; a
regulação, reduzida ou transferida ao setor privado. E a economia é
muito mais desigual; no entanto, o crescimento econômico é muito mais
lento e caótico que durante a era do capitalismo regulado.
A desregulação não produziu competição salutar, mas concentração de
mercado. O poder econômico produziu mudanças no poder político, por meio
das quais as elites impõem regras que produzem mais concentração.
O
culpado não são propriamente os “mercados” – uma força impessoal que de
algum modo tornou-se descontrolada de novo. Trata-se
de um caso de controle de poder por meio da manipulação da teoria. A
economia regulada foi desfeita pelas elites econômicas, que refizeram as
regras em seu próprio benefício. Elas patrocinaram pesadamente teóricos
“amigos”, que apresentaram a mudança como
algo necessário e saudável; e políticos “amigos”, que colocaram as
teorias em prática.
Nos
últimos anos, houve dois casos espetaculares de erros de mercado, com
consequências devastadoras: a quase-depressão iniciada
em 2008 e os sinais de mudança climática irreversível. O colapso
econômico de 2008 foi o resultado da desregulação das finanças. Só nos
EUA, custou à economia 15 trilhões de dólares e, dependendo do cálculo,
muito mais que qualquer ganho de eficiência concebível,
que pudesse ser creditado à inovação financeira. A teoria dos mercados
“livres” presume que a inovação é necessariamente benigna. Mas muito da
engenharia financeira da era desregulatória favorecia os que a adotavam,
era opaca e corrupta – o oposto de um mercado
eficiente e transparente.
A
ameaça existencial da mudança climática global reflete a incompetência
dos mercados para precificar de modo acurado as emissões
de carbono e os custos crescentes da poluição. O economista britânico
Nicholas Stern classificou os riscos crescentes de catástrofe climática
como o maior caso de fracasso dos mercados da história. Também aqui, não
é apenas o resultado de erros teóricos. O
poder arraigado das indústrias extrativas e de seus aliados políticos
influencia as regras e o preço de mercado do carbono. Isso é menos a
“mão invisível” que uma garra. A permissão de “mercados eficientes”
oferece útil cobertura.
O
grande experimento neoliberal dos últimos 40 anos demonstrou que os
mercados são incapazes de se autorregular. Mercados regulados
pelo setor público são menos desiguais e mais eficiente. No entanto, a
teoria e a influência prática do neoliberalismo avançam, porque ele é
muito útil para os setores mais poderosos da sociedade – com um verniz
acadêmico recobrindo o que seria, de outra forma,
uma captura de poder sem disfarces. O economista político britânico
Colon Crouch registrou esta anomalia num livro de título sugestivo: The
Strange Non-Death of Neoliberalism [“A estranha não-morte do
Neoliberalismo”]. Por que o neoliberalismo não morreu?
Com o autor observa, ele fracassou tanto como teoria quanto em seus
resultados práticos, mas foi extremamente bem-sucedido como política de
poder para as elites econômicas.
O
avanço neoliberal teve outro custo calamitoso – a legitimidade
democrática. À medida em que o Estado deixou de mitigar as
forças de mercado, a vida cotidiana tornou-se, para as pessoas comuns,
uma luta árdua. As bases de uma vida decente são evidentes – empregos e
carreiras seguras, aposentadorias adequadas, atendimento à Saúde,
habitação acessível, acesso à Educação sem endividamento
por toda a vida. No entanto, a vida tornou-se cada vez mais fácil para
as elites econômicas, cujas renda e riqueza multiplicaram-se e cuja
lealdade local e à nação tornou-se mais incerta e menos segura.
Vastos
setores da sociedade, em consequência, abandonaram a crença em governos
realizadores e na própria democracia. Depois
que o Muro de Berlim caiu, em 1989, acreditou-se que a nova era seria
marcada pelo triunfo do capitalismo liberal e da democracia. Mas em
poucas décadas, a segurança aparente da democracia desabou em cada vez
mais países, num ecoar dos anos 1930.
Como
advertiu o grande historiador da Política, Karl Polanye, quando os
mercados oprimem as sociedades, os cidadãos comuns frequentemente
voltam-se para os tiranos. Em regimes que se aproximam do neofascismo,
clepto-capitalistas confraternizam com ditadores, minando a premissa de
que capitalismo e democracia são complementares. Muitos gângsters
autoritários tornam-se surpreendentemente populares
ao mobilizar os nacionalismos tribais como antídoto ao cosmopolitismo
capitalista.
Também
vale a pena observar que neoliberalismo não
é laissez-fair. Classicamente, a premissa de um “livre” mercado é a de
que
o Estado simplesmente se retira. É algo sem sentido, já que todos os
mercados são criados por regras – fundamentalmente as que definem a
propriedade, mas também as que estabelecem condições para o crédito, a
dívida, as falências; as que criam patentes, marcas
e propriedade intelectual; as que organizam o trabalho e tantas outras.
Mesmo a desregulação exige regras. Nas palavras de Polanyi,
“o laissez-faire foi planejado”…
A
questão política é quem faz as regras e em benefício de quem. O
neoliberalismo de Friedrich Hayek e Milton Friedman invocava
os mercados “livres”, mas na prática o regime neoliberal promove regras
criadas por e para os proprietários de capital privado, para manter o
Estado distante da definição de regras de competição justa e dos
interesses sociais. O regime tem regras para proteger
os gigantes farmacêuticos do direito dos consumidores a ter acesso a
genéricos. As regras de competição e propriedade intelectual são
concebidas para proteger as empresas já estabelecidas. As regras de
falência foram desenhadas para favorecer os credores financeiros.
Hipotecas exigem regras elaboradas, escritas pelo setor financeiro e
colocadas em vigor pelo Estado. As regras de patentes permitiram que o
agronegócio e companhias químicas gigantescas, como a Monsanto, se
apoderassem de muito da agricultura – o oposto de
mercados “livres”. O setor inventou regras, exigindo que os
trabalhadores e consumidores se submetessem a arbitragens obrigatórias e
desistissem de um conjunto de normas e costumes.
Neoliberalismo como Teoria, Política e Poder
Vale
a pena tomar um momento para desembrulhar o termo “neoliberalismo”.
“Liberal” refere-se não ao oposto de conservador, mas
ao liberalismo econômico clássico, também conhecido como economia dos
“livre” mercados. O prefixo “neo” refere-se à reafirmação da ideia
segundo a qual o modelo econômico do laissez-faire estava, ao fim das
contas, correto.
Poucos
proponentes destas ideias adotaram o termo neoliberal. A maior parte
preferiu chamar-se de “conservadores do livre mercado”.
“Neoliberal” foi um termo cunhado principalmente pelos críticos, às
vezes como um termo descritivo neutro, outras como um epíteto. O uso
difundiu-se na era de Margaret Thatcher e Ronald Reagan.
Para
aumentar a confusão, um uso distinto, e em parte sobreposto, foi
adotado nos anos 1970 pelo grupo formado em torno da revista Washington
Monthlly. Eles usavam “neoliberal” para designar uma nova forma, mesmo
“estatista” do liberalismo norte-americano. Mais ou menos à mesma época,
o termo neoconservadores foi usado, nos Estados Unidos, para
auto-descrever antigos liberais que adotavam o conservadorismo
nos terrenos cultural, étnico, econômico e geopolíticos. Os
neoconservadores eram neoliberais, na economia.
A
partir dos anos 1970, a teoria revivida dos “livres” mercados
entrelaçou-se tanto com a política conservadora quanto com investimentos
significativos na produção de intelectuais acadêmicos e políticos.
Isso ocorreu não apenas nos thinktanks conservadores mais conhecidos,
como American Enterprise Institute, Heritage, Cato e Manhattan
Institute, mas por meio de investimentos ousados na academia.
Centros de estudos foram generosamente financiados por fundações de
extrema direita como Olin, Scaife, Bradley e outras, para promover
variantes da teoria dos “livre” mercados – como as “escolhas racionais”,
a “escolha pública”, as “análises de custo-benefícios”,
a “maximização da importância dos acionistas”. Estas teorias
colonizaram diversas disciplinas acadêmicas. Todas eram variações em
torno da afirmação de que os mercados são eficientes e os Estados devem
deixá-los “livres”.
Cada
um destes corpos de sub-teoria apoiava-se sobre sua própria variante de
ideologia neoliberal. Uma versão mais crua da teoria
das vantagens comparativas foi usada não apenas para cortar tarifas de
importação, mas para transformar a globalização numa ferramenta geral
para desregular. A teoria de maximizar a importância dos acionistas foi
empregada para dinamitar um vasto espectro
de regulações financeiras e de normas em favor do direito dos
trabalhadores. As análises de custo-benefícios, que enfatizavam custos e
desprezavam benefícios, foram usadas para desacreditar normas de Saúde,
Segurança e Ambiente. A teoria da “escolha pública”,
associada ao economista Jamis Buchanan e uma vasta escola de Economia e
Ciência Política, foi usada para bloquear a própria democracia, sob a
premissa de que a política estava irreparavelmente contaminada pelos
busca de vantagens indevidas e pelos aventureiros.
As
falhas dos mercados foram desprezadas, como se fossem casos raros e
especiais. As falhas do Estados eram vistas como ubíquas.
Os teóricos, lobistas e funcionários atuavam lado a lado. Mas em cada
caso importante em que a teoria neoliberal gerava políticas, o resultado
era sucesso político e fracasso econômico.
Um
exemplo: a Economia da oferta tornou-se justificativa para cortes de
impostos, sob a premissa de que estes puniam o empreendimento.
Supostamente, se fossem cortados – especialmente os que incidem sobre o
capital e suas rendas – o estímulo resultante, sobre a atividade
econômica, seria tão potente que os déficits seriam muito menores que os
previstos pelas projeções econômicas “estatistas”.
Nos EUA, houve seis rodadas deste experimento, dos cortes de impostos
patrocinados por Jimmy Carter em 1978 à mastodôntica Lei de Cortes de
Impostos e Empregos, assinada por Donald Trump em 2017. Em todos os
casos, houve algum estímulo econômico, principalmente
originado no impacto keynesiano sobre a demanda, mas os déficits sempre
cresceram de modo significativo. Os conservadores simplesmente pararam
de falar no tema. Os cortes de impostos eram, frequentemente,
ineficientes e desiguais, já que inúmeras brechas dirigiam
os investimento para atividades fiscalmente favorecidas, em vez de
orientá-los para usos mais lógicos do ponto de vista econômicos. Dezenas
das mais lucrativas corporações dos EUA deixaram de pagar impostos.
O
“paradoxo antitruste” de Robert Bork, segundo o qual medidas antitruste
acabavam enfraquecendo a competição, foi usado como
doutrina para acompanhar inúmeras leis. Supostamente, se o Estado se
afastasse, as forças de mercados iriam tornar-se mais competitivas,
porque os preços de monopólio iriam suscitar inovação e novos
ingressantes no mercado. Na prática, todos os setores tornaram-se
mais pesadamente concentrados. As corporações estabelecidas adquiriram o
hábito de comprar os inovadores ou de usar seu poder de mercado para
esmagá-los. Este padrão é especialmente insidioso na economia dos
monopólios de plataformas na internet, onde os gigantes
como Google e Amazon usam seu poder e seu acesso muito superior aos
dados dos consumidores para excluir rivais. Os mercados, também aqui,
exigem regras que levem em conta muito mais que a competição
supostamente “benigna”. Só governos democráticos podem estabelecer
regras que estabeleçam a igualdade. E quando a democracia é inibida,
governos antidemocráticos, em associação com plutocratas privados
corruptos, fazem as leis.
A
teoria do “capital humano”, outra variante do uso de visões neoliberais
dos mercados para lidar com questões sociais, justificou
a desregulamentação dos mercados de trabalho e o esmagamento dos
sindicatos. Estes, assim como as leis trabalhistas, supostamente usavam
seu poder para fazer com que os trabalhadores recebessem mais que seu
valor de mercado. Mas a era dos salários deprimidos
é acompanhada por um declínio das taxas de crescimento da
produtividade. Em paralelo, alguma pessoa séria acredita que o pagamento
hiperinflacionado dos magnatas financeiros que quebraram a economia
reflete sua contribuição para a atividade econômica? No caso
dos fundos de hedge e de private equity, as altíssimas rendas dos
patrocinadores dos fundos são o resultado de capturas de riqueza e de
renda dos assalariados e de outros agentes, não frutos de gerenciamento
eficiente.
Uma
vasta literatura critica, em detalhe, este corpo de trabalhos
pseudo-acadêmicos. Muito do neoliberalismo representa a vitória
da presunção sobre a evidência. Mas a teoria neoliberal sobreviveu por
ser conveniente para as elites, e devido ao poder inercial do capital
intelectual que havia criado. Um habitat neoliberal muito bem financiado
ofereceu carreiras confortáveis para duas
gerações de acadêmicos e pseudo-acadêmicos, que transitam entre a
academia, os think tanks, as empresas de lobby, as páginas dos jornais, o
Estado e os mercados financeiros. Ainda que a teoria tenha sido
demolida tanto pela refutação acadêmica quanto pelos
fatos, ela realimenta-se em instituições poderosas e aliados políticos
musculados.
O fracasso prático das políticas neoliberais
A
desregulação financeira é o fracasso desregulatório mais palpável do
neoliberalismo, mas está longe de ser o único. A desregulação
elétrica elevou, em muitos países, o poder de um oligopólio e elevou os
custos para os consumidores – mas foi incapaz de oferecer oportunidades
significativas para reduzir os preços. Retrocedemos de monopólios
estatais regulados, com ganhos, custos, salários
e proteções ao consumidor previsíveis, para oligopólios desregulados,
com enorme poder de estabelecer seus próprios preços. As
telecomunicações viveram processo quase idêntico de competição restrita,
disparata de preços e restrições aos sindicatos.
O
transporte aéreo é quase sempre apresentado como um caso exemplar,
pelos defensores da desregulação, mas os resultados são,
se muito, ambíguos. A desregulação produziu quebradeiras em série das
empresas, muitas vezes atingindo os salários e aposentadorias dos
trabalhadores. Os preços das passagens declinaram na média, nas últimas
décadas, mas o público sofre com um louco mosaico
de tarifas, piora dos serviços, encolhimento dos assentos e distância
entre eles e penalidades exorbitantes quando é necessário fazer mudanças
de horários absolutamente normais. Diversos estudos demonstraram que os
preços caíram mais rapidamente nos 20 anos
antes da regulamentação que no período posterior, já que a fonte
principal de eficiência é a introdução de aviões que usam combustível de
modo mais eficiente. As oscilações bruscas entre lucro e prejuízo das
empresas reduziu a capacidade de adquirirem aviões
mais econômicos e a idade média das frotas sobe.
Além
da desregulação, três grandes áreas das políticas neoliberais são a
privatização dos serviços públicos, o emprego de vouchers para
remunerar a Educação ou Saúde prestada por particulares e o uso, para o
mesmo fim, de subsídios fiscais, em vez de desembolsos diretos do
Estado. Em todos os casos, estão envolvidas receitas do Estado. Por
isso, estamos muito longe de um mercado “livre”. Mas
a premissa é que a disciplina de mercado permite obter resultados
melhores que os da prestação direta pelo Estado.
As
evidências não ajudam estas afirmações. Um problema central é que os
programas invariavelmente transferem muito para os intermediários
privados, às custas do supostos beneficiários. Um problema relacionado é
que o uso de vouchers e contratos é um convite à corrupção. É uma forma
de busca de privilégios de monopólio [“rent-seeking”] diferente da que
os teóricos da “escolha pública” atribuem
ao Estado – mas igualmente corruta. Quase sempre, a oferta direta de
serviços, pelo setor público, é muito mais transparente e sujeita a
responsabilização que uma rede de contratados.
Um
problema adicional é que na prática há sempre muito menos competição do
que o imaginado, devido ao poder dos oligopólios
e à influência política dos prestadores de serviços. Os experimentos de
mercantilização para alcançar objetivos sociais não se dão em
laboratórios político platônicos, onde a única meta é a eficiência. Eles
ocorrem no mundo fétido da política prática, onde
os prestadores estão frequentemente aliados a políticos conservadores,
cujo propósito pode ser desacreditar os investimentos sociais,
recompensar aliados políticos ou favorecer-se de propina direta, ou
contribuições às campanhas eleitorais.
Os
presídios privatizados são outro exemplo. Um punhado de enormes
empresas, protegidas de escândalos, obteve a maior parte
dos contratos, quase sempre por meio de influência política. Em vez de
apostar mais qualidade e eficiência gerencial, lucraram desviando fundos
operacionais, piorando condições que já eram deploráveis e encontravam
novas formas de cobrar, dos presos, tarifas
mais altas por serviços essenciais, como chamadas telefônicas. A maior
parte das “economias” veio da redução dos salários e do profissionalismo
dos guardas, de superlotação cada vez maior e da redução de orçamentos
inadequados para alimentação e cuidados com
saúde.
Um
exemplo similar é a privatização das estruturas de transportes, como
rodovias e mesmo parquímetros. Em muitos países e regiões,
as estradas foram transferidas a concessionários privados. As
autoridades que fazem o negócio ganham um impulso fiscal temporário,
enquanto os usuários acabam pagando os pedágios mais altos por décadas.
Os banqueiros que financiam o negócio também se apropriam
de uma fatia gorda. Uma parte do dinheiro acaba dirigida a melhoras nas
estradas, mas isso poderia ser feito de modo muito mais eficiente via
propriedade pública direta e licitações competitivas.
(…)
À
medida em que mais sistemas hospitalares e planos de saúde passam a
visar lucro, investimentos maciços fluem para atividades
indesejáveis como a manipulação das cobranças, a “seleção de riscos” e
outras formas de burlar as regras. Sistemas semi-públicos de Saúde
requerem regulação maciça para trabalhar com eficiência tolerável. Na
prática, a terceirização degenera numa disputa interminável
entre reguladores e gestores interessados na “eficiência” lucrativa,
com as empresas privadas recorrendo aos governos para alterar as regras.
Uma
vasta literatura demonstrou que instituições de ensino privadas, que
recebem incentivos públicos para admitir alunos, têm
resultados muito piores que escolas públicas, e são vulneráveis a
múltiplas formas de manipulação e corrupção. Os proprietários destas
escolas são muito hábeis para encontrar meios de excluir estudantes.
(…)
A influência neoliberal sobre a esquerda
À
medida em que as teorias de “livre” mercado ressurgiram, elas foram
abraçadas por muitos integrantes da esquerda moderada.
Nos anos 1970, marcados por inflação, a regulação tornou-se um bode
expiatório acusada de supostamente bloquear a competição salutar por
preços. Alguns, como o economista Alfred Kahn, conselheiro do presidente
norte-americano Jimmy Carter, apoiaram a desregulação
por enxergar seus supostos méritos. Outros esquerdistas moderados
defenderam as políticas neoliberais de modo oportunista, para prestar
favores a setores econômicos poderosos e doadores de campanha. As
políticas de mercado também foram adotadas pela esquerda
moderada como medida tática para chegar a acordos com os conservadores.
Nos
EUA, diversas formas de desregulação – do setor aéreo, transporte de
carga e fornecimento de eletricidade começaram, nos
Estados Unidos, não sob Reagan, mas sob o democrata Jimmy Carter. A
desregulação financeira decolou sob outro democrata, Bill Clinton, mas
só republicanos promoveram acordos comerciais que destruíram padrões
sociais. As análises de custo-benefício do Escritório
de Informação e Assuntos Regulatórios de Washington causaram mais danos
sob Barack Obama que sob George W. Bush.
“Comando
e controle” tornou-se um pejorativo geral para depreciar regulações
inteligentes e eficientes. “Semelhante ao dos mercados”
[“market-like”] tornou-se um conceito de moda, não apenas entre a
direita, mas também nos ambientes de esquerda moderada. Cass Sunstein,
que foi o czar anti-regulação no governo Obama, usa a imagem de
“cutucões”, como uma alternativa “semelhante à dos mercados”
e, portanto, superior, diante da regulação direta. No entanto, o
impacto destes “empurrões”, salvo raras exceções, é trivial – eles só
funcionam, de fato, em conjunto com processos regulatórios.
Há,
de fato, certas políticas intervencionistas que utilizam incentivos de
mercado para atender objetivos sociais. Mas, ao contrário
do que dizem as teorias de “livre” mercado, estes incentivos exigem
regulação substancial – não são uma alternativa a ela. Há muitos outros
temas, como os rótulos nutricionais, informação precisa sobre
empréstimos e controle das emissões de carbono em que
as premissas de mercado, de um consumo informado, conduzem a regulação –
mas também não a substituem. Quase todo o aumento de eficiência
energética, por exemplo, são resultado de regulações obrigatórias, que
exigem das frotas automotivas cumprir metas de economia.
O fato de os índices de consumo serem exibidos com destaque, nos novos
carros, pode ter influência modesta, mas os combustíveis estão tão
depreciados que as empresas conseguem vender com sucesso automóveis
muito perdulários a despeito das informações ao consumidor.
Politicamente,
qualquer que fosse a lógica para a adesão da esquerda moderada às teses
ultraliberais, ela se esgotou. Hoje,
a direita ataca os direitos sociais e reduz os impostos dos ricos sem
nenhum diálogo com seus oponentes. Também abandonou o esforço para
chegar a consensos sobre políticas ambientais, combate a pobreza e
serviços públicos – ou seja, quase tudo. A ideologia
neoliberal cumpriu sua tarefa histórica de enfraquecer o apoio popular e
intelectual à proposição segundo a qual ações afirmativas do Estado
podem melhorar as vidas dos cidadãos.
Neoliberalismo e hiperglobalismo
As
regras pós-1990 da globalização, apoiadas tanto pelos conservadores
quanto pela esquerda moderada, são a quintessência do
neoliberalismo. Na Conferência de Bretton Woods, em 1944, o uso de
taxas fixas de câmbio e os controles sobre o movimento de capitais
privados especulativos, mais a criação do FMI e do Banco Mundial, visam
permitir que os países-membros praticassem formas
de capitalismo regulado, livres das influências destrutivas e
deflacionárias dos fluxos especulativos de capitais. Quando a doutrina e
o controle de poder mudaram, nos anos 1970, o FMI, o Banco Mundial e,
mais tarde, a OMC (que substituiu o antigo GATT) transformaram-se
no oposto ideológico. Em vez de instrumentos de apoio para as economias
nacionais, eles passaram a exigir a aplicação das políticas
neoliberais.
O
pacote padrão do Consenso de Washington, de políticas impostas às
nações em desenvolvimento incluía demandas de abertura dos
mercados de capitais para as transações financeiras especulativas, o
corte de impostos sobre o capital, o enfraquecimento dos gastos sociais,
a redução dos direitos trabalhistas e das empresas públicas. Mas o
investimento de capitais privados em nações empobrecidas
demonstrou-se volátil. O resultado foram fluxos excessivos, durantes os
períodos de boom e retiradas punitivas, nas fases de contração – o
oposto dos capitais pacientes, de longo termo, de que estes países
necessitavam e que haviam sido oferecidos pelo Banco
Mundial da fase anterior. Nos momentos de contração, o FMI tipicamente
impõe as exigências neoliberais de maneira ainda mais dramática, como
contrapartida a seus “resgates”. Entre as medidas, estão austeridade
orçamentária perversa, supostamente para restaurar
a confianças dos mesmos mercados de capital altamente especulativos
responsáveis pelos ciclos de boom e retração.
Dezenas
de países, da América Latina ao Sudeste Asiático, afundaram neste ciclo
e, em seguida, na submissão ao FMI. A Grécia
ainda sofre o impacto. Depois de 1990, o hiper-globalismo também
incluiu tratados comerciais cujos termos favoreceram as
corporações. Tradicionalmente, as cláusulas destes acordos envolviam
principalmente a redução de tarifas de importação. Os países que os
assinavam eram livres para manter as medidas de regulação, o
investimento público ou as políticas sociais que desejassem. Com o
advento da OMC, muitas políticas, além das tarifas, foram rotuladas como
“distorções do ‘livre’ comércio”. Os acordos comerciais
foram usados para dar ao capital externo livre acesso a seus objetivos e
para desmantelar as regulações a empresas nacionais. Tribunais
especiais foram criados. Neles, as corporações estrangeiras e os
investidores podiam obrigar as autoridades nacionais a
abrir mão de regulação, tratada como “impeditiva ao comércio”.
O
dano não se restringiu, porém, aos países em desenvolvimento. Como
demonstrou um trabalho do economista Dani Rodrik, a democracia
exige um espaço político. Para o bem ou para o mal, tanto este espaço
quanto a cidadania são nacionais. Ao adotar o mercado global, às custas
do Estado democrático, o padrão atual de hiperglobalização enfraquece
deliberadamente a capacidade dos Estados para
regular mercados – e enfraquece a própria democracia.
Quando os mercados funcionam?
O
fracasso do neoliberalismo como política econômica e social não
significa que os mercados nunca funcionem. Uma economia de
comando central pode ser ainda mais irreal e perversa que uma
neoliberal. A questão prática é como encontrar uma alternativa eficiente
e igualitária.
A
narrativa neoliberal sobre como a economia opera pressupões um mercado
sem conflitos, em que os preços são estabelecidos pela
oferta e demanda, e o mecanismo de preços aloca os recursos em direção a
seu melhor uso, para a economia como um todo. Para que este esquema
funcione como supõe a propaganda, porém, não pode haver poder de
mercado. A competição deve ser plena. Vendedores e
compradores precisam ter acesso, basicamente, à mesma informação. Não
pode haver externalidades significativas. O século XX foi, em boa parte,
a prova prática de que estas condições não descrevem a economia real. E
se os mercados precificaram os produtos de
modo errado, o sistema de mercado não produziu um equilíbrio eficiente e
as depressões poderiam aprofundar a si mesmas em espiral descendente.
Como Keynes demonstrou, apenas um aumento maciço do gasto governamental é
capaz de religar os motores – mesmo quando
violam, ainda que parcialmente, o estabelecimento de preços pelos
mercados…
Mesmo
assim, em muitos setores da economia, o processo de compra e venda é
suficientemente próximo das condições ideais de competição
perfeita – e o sistema de preços funcional de modo tolerável. Os
supermercados, por exemplo, oferecem preços mais ou menos acurados,
devido à liberdade dos consumidores e a seu conhecimento sobre as lojas
da redondeza. É o mesmo com boa parte do setor de varejo.
No entanto, quando se entra nos grandes setores da economia, como a
Educação e a Saúde, os mercados não são suficientes. E em outros grandes
setores, como a indústria farmacêutica, em que as corporações usam seu
poder político para estabelecer as regras de
patentes, o mercado não oferece uma saída.
O
argumento essencial do neoliberalismo pode ser resumido num adesivo de
para-choques: “Os mercados funcionam; os governos,
não”. Se você deseja adocicar a narrativa, há alguns acréscimos: “Os
mercados fortalecem a liberdade humana. E com mercados, as pessoas obtêm
essencialmente aquilo que merecem”. “Alterar os resultados dos mercados
é espoliar os pobres e punir os produtivos”.
Estas conclusões derivam, logicamente, da premissa segundo a qual os
mercados são eficientes. Milton Friedman tornou-se rico, famoso e
influente por defender as diversas implicações destas premissas simples.
É
muito mais difícil articular a defesa de economias complexas que a dos
“livres” mercados, precisamente porque as economias
complexas são complexas. A refutação exige vários parágrafos. A
narrativa mais complexa sustenta que os mercados são substancialmente
eficientes em alguns setores, mas estão distantes disso em muitos
outros, porque as externalidades positivas e negativas,
a tendência dos mercados financeiro a criar ciclos de expansão e
contração, a interseção entre auto-interesse e competição, a assimetria
de informação entre empresas e consumidores, a assimetria de poder entre
corporações e empregados, o poder dos poderosos
para burlar as regras e o fato de haver setores da vida humana (o
direito ao voto, a liberdade humana e a segurança de qualquer pessoa,
por exemplo) que não deveriam ser mercantilizados.
E
se os mercados não são perfeitamente eficientes, as questões
redistributivas são, em parte, escolhas políticas. Algumas sociedades
pagam a professores pré-escola básica o salário mínimo. Outras educam e
recompensam seus profissionais. Não há nenhum salário “correto” a
partir de critérios de mercado, porque a educação pré-escola básica é um
bem social e o tema de como treinar e compensar
os professores é uma escolha social, não uma definição de mercado. O
mesmo é verdade para muitos outros serviços humanos, entre eles a
Medicina. Também não é um conjunto de regras “corretas” para patentes,
marcas e propriedade intelectual. Tudo isso é derivado
da política – ou as normas equilibrar os interesses da inovação com os
da difusão, ou são politicamente capturados pelas empresas
estabelecidas.
Os
governos podem, em princípio, aperfeiçoar os resultados dos mercados,
por meio da regulação. Isso torna-se mais complexo
devido ao risco de captura regulatória. Por isso, surge o tema da falha
dos mercados versus falha da política – o que nos remete novamente à
urgência de democracias fortes e governos efetivos.
Depois do Neoliberalismo
A
reversão política do neoliberalismo poderá vir somente por meio de
políticas e decisões práticas que demonstrem como os Estados
podem servir os cidadãos de modo mais igualitário e eficiente que os
mercados. Não faltam economistas dissidentes e pesquisadores políticos
cujos trabalhos acadêmicos foram confirmados pelos fatos. Não precisam
de mais teoria, mas de mais influência política,
tanto na academia quanto nos corredores do poder. Eles poderão
assessorar novos governos progressistas se estes puderem ser eleitos
e se estiverem dispostos a desistir de buscar auxílio de neoliberais.
Também
há algumas áreas relativamente novas que convidam à inovação política.
Entre elas estão a regulação dos direitos de privacidade versus as
liberdades das empresas, na era digital; como pensar na internet como
um Comum; como atualizar as políticas de competição e combate aos
oligopólios, quando os monopólios de plataforma exercem novas formas de
poder de mercado; como modernizar as políticas de
trabalho na era da economia uberizada; e o papel das políticas de Renda
Cidadã, num tempo em que as máquinas substituem o trabalho humano.
O
experimento neoliberal fracassado não sugere apenas, como alternativa,
um capitalismo melhor regulado – mas a ação pública
direta. A atividade bancária, quando exercida corretamente – em
especial a provisão de crédito imobiliário – é algo muito próximo a um
bem público. Poderia ter este caráter. Uma boa parte da pesquisa
científica e tecnológica é feita mais honesta e eficazmente
em instituições públicas do que num setor particularmente corrupto como
a indústria farmacêutica. A habitação social é quase sempre melhor que
os esquemas oferecidos pelo mercado. A geração de energia é mais
eficiente, menos suscetível a preços de monopólio
e mais aberta a políticas ambientais quando estatal. A Saúde pública é
muito mais eficiente. Serviços oferecidos pelo Estado requerem
supervisão das sociedades, mas esta é muito mais direta e transparente
que a dança bizantina de regulação e contrarregulação.
Os
outros dois benefícios da oferta direta pelo Estado são: a sociedade
tem evidência direta da entrega, pelos governos, de
algo de valor; e o poder da democracia para controlar os mercados é
ampliado. Uma economia complexa depende, sobretudo, de uma democracia
forte – ainda mais do que aquela que sucumbiu à influência corrupta das
elites econômicas e dos defensores do neoliberalismo
nos últimos 50 anos. O antídoto para a fábula neoliberal é a
ressurreição de uma democracia suficientemente forte para domar os
mercados.
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