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segunda-feira, 1 de julho de 2019

Este blogue publica textos não para aplaudir mas para refletir


(Notas “a partir de um obscuro rincão do mundo”)
Néstor Kohan (Cátedra Che Guevara da Argentina)
… o que está claro é que a partir da feroz crise de 2008 e da reconversão dos antigos fanáticos do livre comércio em “protecionistas” e “guerreiros comerciais” (EUA, Alemanha, China, etc.), somadas às invasões, bombardeamentos, bloqueios económicos e intervenções político-militares imperialistas da última década, qualquer análise séria do presente já não pode continuar a repetir os tiques, os slogans e as modulações da “coexistência pacífica”, de 1960.


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O capitalismo em debate
Após várias décadas de cozinhados requentados pós-modernos, sopas “pós-marxistas”, saladas reformistas e sobremesas “pós-coloniais” à carta, a discussão sobre o capitalismo mundial volta para cima da mesa. Nos movimentos sociais, nas organizações políticas e no mundo cultural. Já ninguém se conforma com os “microrrelatos”, os “micropoderes”, a “micro-história”. Todos os pretextos e malabarismos para não encarar as crises selvagens que atravessam o sistema capitalista são afastados, como migalhas sujas, para fora da toalha.
O incêndio da crise de 2008 não se apaga. O fogo propaga-se. O planeta range. Cada vez se tornam mais inadiáveis as explicações totalizantes sobre o que atravessamos.
Estaremos, afinal, numa época de capitalismo “desterritorializado” e interdependente, sem imperialismo, metrópoles, dependências ou periferias, onde um grupo de vendedores ambulantes de um bairro perdido do Haiti desempenha o mesmo papel no sistema mundial que o Bundesbank alemão, uma aldeia longínqua da Indonésia tem o mesmo nível de poder financeiro e político-militar que a Wall Street ou o Pentágono? Ou talvez continuemos localizados, ainda que não nos apercebamos, no antigo capitalismo keynesiano do pós-guerra, com cadeias produção de valor ancoradas em cada país e capitais regulados numa escala puramente nacional? Terá sido completamente inócua a contraofensiva capitalista iniciada em setembro de 1973, no Chile, logo estendida à Argentina de 1976 e, finalmente, aplicada, durante 1979-1980, na Londres de Margaret Thatcher e em Washington de Ronald Reagan? Que alguém avance uma explicação, por favor, e nos clarifique o panorama!
Não estaremos a viver, talvez, uma nova fase do capitalismo, na qual se combinam as revoluções tecnológicas do capitalismo tardio, estudadas por Ernest Mandel, os cinco monopólios mundiais explicados por Samir Amin e a reconquista planetária, por desposesión [expropriação], sobre a qual nos alertou David Harvey?
Seja qual for a resposta correta, o que está claro é que a partir da feroz crise de 2008 e da reconversão dos antigos fanáticos do livre comércio em “protecionistas” e “guerreiros comerciais” (EUA, Alemanha, China, etc.), somadas às invasões, bombardeamentos, bloqueios económicos e intervenções político-militares imperialistas da última década, qualquer análise séria do presente já não pode continuar a repetir os tiques, os slogans e as modulações da “coexistência pacífica”, de 1960.
Aquele tosco e demasiado inocente “pacifismo” de Nikita Kruschev, dos velhos documentários a preto e branco, – uma década mais tarde adotado nas metrópoles ocidentais pelo eurocomunismo (acompanhado de refinadas e esquisitas argumentações epistemológicas) –, hoje... atrasa!
Afirmar que a grande meta estratégica do comunismo é... “a paz” (assim, em geral, como diziam os soviéticos) e a defesa da “democracia” (também em geral, sem especificações e qualificações), está démodé [fora de moda]. Não bate certo. Não corresponde ao planeta em que vivemos.
Flower power [poder das flores] frente ao imperialismo, ou estratégia comunista?
O mundo mudou. Lamentavelmente, não foi para melhor. O hipismo de John Lennon e Yoko Ono, junto com o flower power, ficaram no belo rincão da nostalgia estética e da memória musical. Longe daqueles cabelos compridos e dos seus protestos pacifistas em lençóis brancos, o nosso mundo, hoje, parece-se muito mais com as sombrias imagens distópicas onde proliferam as invasões, as bases militares à escala planetária, a vigilância global, a repressão das massas empobrecidas migrantes e as guerras por recursos naturais não renováveis.
Se temos os pés assentes na terra e não confundimos o princípio do prazer (e a imaginação psicadélica) com o princípio da realidade, o trauma da queda do Muro de Berlim e as antigas nostalgias, hoje inoperantes, devem ser superadas de uma vez por todas. De nada serve invocá-las periodicamente para reinventar novos reformismos.

Num livro recente, Estudiando la contrainsurgencia de Estados Unidos. Manuales, mentalidades y uso de la antropología [Estudando a contrainsurgência dos Estados Unidos. Manuais, mentalidades e uso da antropologia] (2019), o antropólogo mexicano Gilberto López y Rivas descreve o sistema capitalista mundial da nossa época. É apenas uma possível tentativa, mas, no nosso entender, muito útil e realista.
No momento de definir as características centrais e o tipo de capitalismo que predomina nos nossos dias, o autor impugna de facto as versões apologéticas de uma suposta globalização “homogénea, plana, sem assimetrias nem desenvolvimentos desiguais”. Gilberto López y Rivas afirma que o atual sistema capitalista conforma um imperialismo global lançado, sem escrúpulo algum, numa “recolonização do mundo”. A sua tese, arriscada e precisa, desmonta na prática esse lugar comum das academias (financiadas por fundações “desinteressadas” como a NED ou a USAID) segundo a qual “num mundo globalizado, governado pela informação e o capitalismo cognitivo, os Estados Unidos, a Europa ocidental e os países capitalistas mais desenvolvidos já não necessitam da América Latina, da África nem dos países pobres da Ásia, ou seja, do Terceiro Mundo”. Essa formulação trivial, repetida até à exaustão por especialistas em guerra psicológica, comentadores do marketing mediático e diletantes vários, a soldo do império, dá de caras com as guerras permanentes contra países periféricos, os bombardeamentos “humanitários” contra os chamados “estados falidos”, as invasões político-militares contra as sociedades dependentes, os bloqueios económicos e comerciais contra qualquer governo desobediente – nomeados com desdém como um “regime” pelo simples facto de não se ajoelhar perante as ordens das embaixadas norte-americanas, da União Europeia ou as receitas do FMI e do Banco Mundial – e o saque ininterrupto dos recursos naturais e da biodiversidade do Terceiro Mundo. Esse processo renovado de dominação e apropriação, ou a tentativa de o levar a cabo por métodos violentos, constitui a manifestação de um “neocolonialismo imperialista”, segundo a análise rigorosa de Gilberto López y Rivas. Toda uma definição.
O arco-íris da bandeira vermelha
Neste contexto global, não cabe a passividade. As resistências são múltiplas. Ainda que nem todas tenham a mesma capacidade de organização e mobilização, nem a mesma nitidez ideológica, para convocar e unir à escala internacional as iras populares, as rebeldias antissistémicas e as dissidências contra “a nova ordem mundial”, cada dia mais caótica, cruel e desapiedada. As bandeiras das massas oprimidas e dos movimentos sociais à escala planetária têm as cores mais diversas, desde o verde ecologista e o violeta feminista, até o emblema multicor LGTBI, entre muitíssimas outras expressões de rebeldia. Mas de todas as cores e matizes, necessariamente variados e coexistentes, cremos que o horizonte vermelho do marxismo continua a ser a perspetiva teórico-política mais abrangente, inclusiva e integradora e a que permite articular e unir todas as demais rebeldias à escala mundial, como há alguns anos assinalou a pensadora dos Estados Unidos, Ellen Meiksins Wood, no seu conhecido livro La renovación del materialismo histórico. Democracia contra capitalismo (2000).
A nova resistência. Polémicas, 90 anos depois da Primeira Conferência Comunista sul-americana
“apenas” 90 anos, quando não existia internet nem TV, destacamentos de diversas organizações revolucionárias da Nossa América reuniram-se em Buenos Aires, Argentina, para organizar a resistência das classes trabalhadoras, o mundo plebeu e popular. Tratava-se então de enfrentar de forma unida e organizada o imperialismo daquele tempo e a sua famosa crise capitalista de 1929.
A reunião de 1929 teve lugar na Nossa América, dez anos depois de, em 1919, os bolcheviques fundarem a Internacional Comunista (completam-se agora 100 anos).
A obra que reúne as intervenções, palestras, debates e discussões daquele rico encontro histórico tem por título El movimiento revolucionario latinoamericano. Versiones de la Primera Conferencia Comunista latinoamericana del 1 al 12 de junio de 1929. Foi editada por “La correspondencia Sudamericana”, Buenos Aires, 1929. O grosso volume – durante muitos anos em poder de escassos colecionadores – pode-se hoje ler e descarregar, na íntegra e gratuitamente, no seguinte link: http://cipec.nuevaradio.org/?p=92 [Obtivemos o exemplar digitalizado da biblioteca pessoal do historiador marxista Rodolfo Puiggrós, daí que várias páginas tenham o carimbo do seu arquivo].
Em algumas investigações e livros tentámos analisar os eixos e discussões daquela lendária reunião, que tencionava desenvolver na Nossa América os ensinamentos de Lénine e dos bolcheviques, tomando mate, ouvindo música latino-americana e conversando em castelhano. Não repetiremos agora essas análises.
Contudo, 90 anos depois, soubemos que, em abril de 2019, voltaram a reunir-se organizações comunistas de vários países (Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, Colômbia, Paraguai, Peru, Uruguai e Venezuela), em Montevideo, Uruguai. Estas organizações publicaram um documento conjunto onde, invocando aquela Conferência Comunista de 1929, tentam descrever como veem o capitalismo atual e quais deveriam ser as estratégias e táticas para lutar contra ele.
Pode consultar-se a Declaración del Encuentro de Partidos Comunistas de Suramérica no seguinte link:
http://www.pcu.org.uy/index.php/noticias/item/3110 (datada na web de 30 de abril de 2019).
A essa reunião não assistiram todos os comunistas do continente. Alguns núcleos, inclusive, fizeram fortes críticas ao documento. Por exemplo, pode-se consultar: A propósito da Declaração de Montevideu – resposta do Comité Central do Partido Comunista do México, no seguinte link:  http://comunistas-mexicanos.org/partido-comunista-de-mexico/2213-por-cuestion-deprincipios (datada na web de 24 de maio de 2019) [1].
Até onde sabemos e temos notícias, a organização comunista de Cuba (noutras décadas, em vida de Fidel, cabeça ideológica da revolução continental da Nossa América), não só não participou, como, além disso, nem sequer se manifestou sobre qualquer daquelas duas posições. Desde que foi dissolvido o célebre “Departamento América” do comunismo cubano (outrora conhecido como “Departamento de Libertação Nacional”, sob a direção de Manuel Piñeiro Losada [“el gallego”; comandante “Barbarroja”]), Cuba pronuncia-se, à escala internacional, prioritariamente, através do seu Ministério das Relações Exteriores. Mas nesta ocasião nem sequer por essa via oficial-diplomático-institucional se ouviram ou leram declarações cubanas.
No meio deste debate político-ideológico aberto à escala continental e perante o silêncio de Cuba, uma terceira organização que, até há muito pouco tempo, se reclamava e definia como comunista, tão pouco se pronunciou no debate, pois está a atravessar uma aguda crise à beira da divisão, tornada pública por todos os meios de comunicação do mundo. Trata-se das antigas FARC-EP (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia-Exército do Povo, anteriormente vinculadas ao Partido Comunista Clandestino da Colômbia, PCCC], definidas antes do seu desarmamento, reconversão e do acordo com o Estado colombiano como um “partido comunista em armas”.

O que está claro é que já ninguém se atribui nem exerce a função internacional de “partido guia”. Nem o antigo partido comunista da Rússia (que liderava o universo “pró-soviético”), nem o da China (outrora na cabeça da constelação maoísta), nem o da Coreia do Norte, nem o da antiga Albânia, nem o da Grécia, nem o já mencionado partido comunista de Cuba (durante décadas, farol das insurgências latino-americanas e, inclusive, com influências diretas nos Panteras Negras, dos EUA). Ainda que existam afinidades, simpatias e aproximações internacionais, o comunismo mundial já não tem um Vaticano nem uma Meca ideológicos.
E se isto acontece com o mundo comunista, algo não muito diferente experimenta também a galáxia de recorte trotskista, dividida em não menos de oito coordenadoras, todas autobaptizadas “Quarta Internacional”, mas, na prática, nenhuma delas aglutina mais de dez representações – no caso das maioritárias, porque, várias outras são integradas por apenas dois ou três grupos diversos –, de diferentes países.
Contrainsurgência, correlação de forças e problema nacional
O debate aberto em 2019 tem, assim, muitas arestas. Desde como definir o novo tipo de capitalismo mundial, até ao projeto alternativo pelo qual se deveria lutar, caso se pretenda resistir e mudar o mundo.
Os marxistas e, em particular, os comunistas devem ter um projeto progressista, de reformas democráticas e em defesa da paz ou, em alternativa, deveriam tratar de construir alianças e acumular forças em função de um projeto revolucionário, anti-imperialista e anticapitalista? Quando avançam as forças da extrema direita, neofascistas e anti-institucionais (no caso latino-americano: Brasil e Colômbia, ambos sob o guarda-chuva dos EUA e de Israel, ainda que algumas destas correntes neofascistas também proliferem na Europa), devem as forças comunistas defender, como estratégia, o parlamento, a legalidade, a constituição e a paz a qualquer custo ou, em alternativa, devem-se preparar para enfrentar, por todas as formas de luta possíveis, a contrainsurgência, hoje, realimentada e atiçada nestes tempos de ofensiva capitalista?
No plano da estratégia a longo prazo, quando na América Latina “o ciclo progressista” se enfraqueceu notoriamente e a direita mais agressiva mostra o seu punho de ferro, devem os comunistas promover frentes democráticas, seguindo as velhas consignas de Jorge Dimitrov e do Sétimo Congresso da Internacional Comunista, de 1935, ou, em alternativa, devem propiciar uma frente única das forças revolucionárias, antifascistas, anti-imperialistas e anticapitalistas?
No âmbito das táticas a curto prazo, qual deveria ser a proposta a apresentar no seio dos movimentos de massas para derrotar os governos neoliberais (Macri, na Argentina, Bolsonaro, no Brasil, Duque-Uribe na Colômbia, Piñera, no Chile, etc.)? Priorizar “a paz e a democracia”, diluindo-se em partidos tradicionais do sistema, que encabecem as sondagens eleitorais, sem mostrar a identidade própria (ou, inclusive, escondendo-a) ou, pelo contrário, promover frentes unitárias de libertação que tenham como objetivo recuperar a soberania nacional espezinhada pelo imperialismo (desde o económico, o produtivo e o financeiro até ao territorial e ao geopolítico) e, portanto, tentar influir ideologicamente nas grandes massas que participam nos processos eleitorais com uma identidade definida através de um programa antineoliberal, mas, ao mesmo tempo, propondo medidas anti-imperialistas e com perspetivas anticapitalistas?
A disjuntiva é atual, é urgente, mas tem uma longa história.
Recordemos que já naquela Conferência Comunista, de 1929, o grupo liderado por Victorio Codovilla (com a anuência do PC da União Soviética, presente através do bukarinista Jules Humbert-Droz [“camarada Luís”]) acabou por impor a estratégia continental da revolução democrática burguesa, “agrária e anti-imperialista”, baseando-se no seu suposto “feudalismo” latino-americano. Posição hegemónica que enfrentou, com nome e apelido, as propostas dos delegados de José Carlos Mariátegui, que propunha como estratégia continental o seguinte: «A própria palavra revolução, nesta América das pequenas revoluções, presta-se bastante ao equívoco. Temos de a reivindicar rigorosa e intransigentemente. Temos de lhe restituir o seu sentido estrito e cabal. A revolução latino-americana será nada mais e nada menos que uma etapa, uma fase da revolução mundial. Será simples e puramente a revolução socialista. A esta palavra acrescentai, conforme os casos, todos os adjetivos que quiserdes: “anti-imperialista”, “agrária”, “nacionalista-revolucionária”. O socialismo os supõe, os antecede e os abrange a todos» (editorial da revista Amauta: “Aniversário e balanço”, setembro de 1928).
Noventa anos depois, reaparece o debate. Ficamo-nos apenas pela defesa da “democracia”, a seco, em geral, ou esforçamo-nos por disputar a hegemonia político- cultural, puxando a corda para posições socialistas, entrecruzadas, na Nossa América, com antigas, adiadas e irresolvidas exigências étnico-nacionais (como acontece com a nação mapuche, os mais de trinta povos-nações do estado plurinacional da Bolívia, os povos originários do Peru, os do Equador, os da Guatemala, os do México, etc.).
Tem sentido suicidar uma insurgência? Balanço de inventário
Ao avaliar as diferenças atuais entre os comunistas do cone sul e os mexicanos, não se deveria perder de vista o contexto regional e a correlação de forças à escala continental.

Nesse horizonte, perguntamos com a cabeça fria e absoluta serenidade: terá sido uma boa decisão desarmar (ou suicidar?) o maior exército revolucionário do continente quando proliferam e se multiplicam as bases militares norte-americanas? (Sobre este tema pode consultar-se a volumosa obra de Telma Luzzani (2012): Territorios vigilados. Cómo opera la red de bases militares norteamericanas en Sudamérica, Buenos Aires, Editorial Debate). Desde 2012, quando esse documentado livro foi publicado, até hoje, as bases militares norte-americanas continuaram a aumentar. Não é nenhum segredo que o governo do presidente Macri entregou parte do território argentino para essas novas bases. No livro Estudiando la contrainsurgencia de Estados Unidos (2019), de Gilberto López y Rivas, encontram-se várias descrições pormenorizadas dos diferentes tipos de bases operativas norte-americanas fora do seu território.
Ao levantar a barreira geopolítica que a insurgência comunista – com uma experiência prática de mais de meio século de luta – interpunha entre os estados da Colômbia e da Venezuela, não se lhes deixaram as mãos livres para o paramilitarismo e o narco estado colombiano arremeterem contra o governo bolivariano do chavismo e tentarem, pela mão dos “falcões” do Pentágono e da administração Trump, derrubá-lo por vias violentas?
Será que o governo cubano imaginou que, ajudando a desativar, em nome da “paz”, o último contingente político-militar comunista de envergadura, se afrouxaria o criminoso bloqueio norte-americano contra essa ilha heroica e rebelde? Pelo pouco que se sabe, parece que o referido bloqueio está mais duro do que nunca...
Será que o governo do presidente legítimo da Venezuela pensou que, desaparecida a guerrilha bolivariana, o estado colombiano iria finalmente respeitar a lei, o direito internacional e a “boa vizinhança”? As aparências indicam o contrário. Desaparecidas as FARC-EP como força beligerante, o uribismo (o oficial e o paralelo) está mais forte que nunca... e os seus paramilitares podem dispor da fronteira para cometer todo o tipo de malfeitorias e violências contra o valoroso e abnegado povo venezuelano.
Entretanto, no interior da Colômbia, o Estado executou 135 ex-combatentes, desarmados, assassinados a sangue frio. Sem contar toda a militância social e de direitos humanos que foi reprimida nos últimos meses.
Até o jornal The New York Times, insuspeito de posições marxistas, publicou nos EUA um artigo assinado por Nicholas Casey, que gerou um alvoroço de alcance internacional. Alerta sobre as execuções extrajudiciais na Colômbia, o papel do ex-presidente Uribe e o desconhecimento permanente dos acordos de paz por parte do atual presidente Duque. Até 79 congressistas do Partido Democrata dos Estados Unidos pediram à Casa Branca para suspender todo apoio aos sabotadores (estatais) da paz na Colômbia.
Segundo o diário norte-americano, o governo ultradireitista de Iván Duque e os seus principais comandos militares ordenaram o regresso à prática suja dos “falsos positivos”. Ou seja, executar civis disfarçando-os de insurgentes e aumentar os “caídos em combates” (falsos), seja como for. Chegou ao ponto de o jornal The New York Times ter confirmado que as forças armadas da Colômbia iniciaram uma investigação interna para descobrir as fontes militares que deixaram escapar a informação dessas novas operações contrainsurgentes. Perante semelhante evidência, tem sentido continuarmos teimosamente abraçados a um papel assinado em Havana do qual a burguesia colombiana e o seu imenso aparelho de guerra se riem em público?
Neutralizar, desarmar, dividir e aniquilar
Essas parecem ter sido as fases estratégicas da contrainsurgência colombiana, dirigida com muita precisão a partir dos Estados Unidos e de Israel. Talvez tenha chegado a hora de nos interrogarmos sobre as debilidades ideológicas que permitiram semelhante operação. Ou foi só “perfídia”? Chegará a categoria “perfídia” para explicar todo esse processo?
Inscreve-se nesse contexto o triste e vergonhoso caso do sequestro – completamente ilegal e forçado – de Jesús Santrich, acusando-o de narcotraficante, grosseira montagem ao melhor estilo DEA/CIA. Como explicá-lo?
Valendo-se de uma montagem digna do famoso computador mágico de Raúl Reyes (de onde brotavam os delírios mais hilariantes, as histórias mais descabeladas), recrutou-se um militante da organização, seguindo o manual de operações da CIA. Todo o mundo se recorda de como Philip Agee, antigo agente da “companhia” que escreveu há décadas um livro famoso: Inside the Company [traduzido para o castelhano com o título Diario de la CIA], descreve o método de recrutamento clássico da inteligência norte-americana: o dinheiro. Utilizando este método, a montagem DEA/CIA contra o revolucionário cego Santrich, recorreu mais uma vez à figura do “arrependido” (assim os chamavam na Itália dos anos 70, quando o estado burguês venceu as Brigadas Vermelhas; na Argentina, denominavam-nos “quebrados”, em cada país são conhecidos com nomes diferentes. Mas, neste caso, não se trata de algum antigo militante revolucionário que não aguenta a tortura e colabora – como na Itália ou na Argentina – e sim de alguém que muda de lado sem pressões físicas, mas sim por dinheiro). Na montagem contra Jesús Santrich (dirigente insurgente comunista e bolivariano, mas também escritor, poeta, músico e filósofo), o seu “acusador” tomou um voo imediato para os EUA onde imediatamente começou a trabalhar, segundo os meios de comunicação, para a DEA, como na série mais imaginativa da Netflix).
Qual o objetivo deste injusto, ilegal e cruel encarceramento?
Na nossa opinião, os objetivos foram vários.
Além da humilhação pública de um dirigente revolucionário internacionalmente conhecido – típica operação de guerra psicológica para causar baixas morais à tropa inimiga –, o principal objetivo foi o de dividir as FARC e todos os comunistas da Colômbia. Gerar intrigas, enfrentar entre si os revolucionários, debilitar todo o projeto de mudança. Uma velha receita... que o reformismo aceita desde que o sistema o tolere.
As provas estão à vista. Parte dos dirigentes oficiais do novo partido reciclado, que já não menciona a palavra “marxismo” nem “comunismo”, tratou de se desentender com Santrich. Inclusivamente, um dos seus editorialistas estrelas, agora convertido, deu certa credibilidade à montagem oficial, deixando nas mãos da vítima a carga probatória da sua inocência, em vez de negar rotundamente o que, à evidência, era uma manobra fabricada artificialmente contra um dos seus companheiros. Esse mesmo editorialista-estrela que, com evidentes intenções de provocação política, acusou Iván Márquez de estar “assessorado” por peritos trotskistas estrangeiros. A direita, feliz, aplaudia em delírio! A família comunista sangrava e dividia-se sem pena nem glória em troca de... nada.
Isso levou a que Iván Márquez, principal líder insurgente (que, em agosto de 2017, ficou em primeiro lugar nas votações da nova organização, com 888 votos, enquanto Rodrigo Londoño Echeverri [“Timoléon Jiménez”, “Timochenko”] ficou em quinto lugar, abaixo, inclusive, dos votos obtidos por Jesús Santrich), escrevesse uma carta pública intitulada “Aos guerrilheiros nos ETCR [Espacios Territoriales de Capacitación y Reincorporación] e a todos os colombianos”, que se pode consultar no link: https://www.lahaine.org/mundo.php/a-los-guerrilleros-en-los (publicada na web, em 21 de maio de 2019). Nela faz uma autocrítica pública pela entrega de armas ao estado colombiano antes deste concretizar o prometido.
Em vez de ler com humildade o apelo, refletir em conjunto, assumir debilidades e pensar num futuro plano coletivo para tentar reconstruir – nas novas condições – o politicamente perdido, a carta pública de Iván Márquez foi respondida, de imediato, por Rodrigo Londoño, o qual “decretou” que Iván Márquez... era afastado das FARC. A decisão de Londoño foi aplaudida por toda a direita e pelos meios de comunicação monopolistas, ameaçando os dirigentes políticos, ex-guerrilheiros, perante um eventual regresso à luta.
Cumprido o objetivo, Santrich é posto em liberdade. Os Estados Unidos e o narco-estado colombiano já haviam obtido o que queriam.
Refletindo “A partir de um obscuro rincão do mundo”
Há meio século, o velho professor marxista Rodolfo Puiggrós escreveu que, como nós, os argentinos, não conseguimos tomar o poder e fazer a nossa própria revolução socialista, vamos pelo mundo a inspecionar revoluções alheias. Essa fina ironia de Puiggrós, lúcida e sábia, acompanha-me desde a primeira vez que a li. É um apelo à humildade. Um bem escasso na nossa esquerda. Não obstante, respeitando as decisões políticas de cada país, ao menos pode-se opinar.
Acreditamos que as únicas opções revolucionárias não são as que se autodenominam exclusivamente “PC”. Muita água correu sob a ponte desde a Conferência Comunista de 1929 e da outra, ainda maior, de 1960 (“de partidos comunistas e operários”), para mencionar apenas duas.
Deixemos de lado as denominações e as autoproclamações: onde está hoje representado o movimento revolucionário latino-americano? A resposta não é categórica nem matemática. Está no espaço dos “PC”, mas também noutros espaços politicamente contíguos, que muitas vezes se formaram em polémica com os “PC”.
Existem também outras coordenações, não denominadas exclusivamente “PC”, mas que implicitamente assumem essa cultura, como o Movimento Continental Bolivariano (MCB), onde o marxismo e a herança de Lénine se entrecruzam com as histórias de luta pela independência (neste caso simbolizadas na figura de Simón Bolívar, a que deveríamos acrescentar Che Guevara). Não será hora de o revitalizar e ampliar?
E, em paralelo, existem também movimentos que se baseiam no marxismo, entrecruzando-o com o indianismo revolucionário (como no caso da Bolívia e de Chiapas), ou também com a teologia da libertação, de inspiração marxista e cristã (como é o caso do Brasil e de alguns países centro-americanos).
Em todos estes casos e espaços, uma das chaves centrais para enfrentar os desafios pendentes é assumir uma posição internacionalista, que não dependa de “capitais” nem de “vaticanos” ou “mecas” ideológicas, seja de Moscovo, Pequim, Havana, Paris, Atenas, etc.
A discussão entre reformismo e revolução complexificou-se. Cinquenta anos de guerra civil só para alcançar a paz? Não estava na agenda a transformação social, a tomada do poder, a revolução? Quem tenha visto, pelo menos na web, algum vídeo do velho Manuel Marulanda sabe perfeitamente o que o líder insurgente com mais anos de insurgência em todo o continente (pois começou, inclusive, antes de Fidel) repetiu mil vezes: “Que ninguém se confunda. Nós lutamos pelo poder. Esse é o melhor e o maior sonho: o poder” (pode-se procurar no YouTube ou em outras plataformas da web. Enquanto diz isto, o velho líder colombiano sorri diante da câmara).
O que talvez haveria que perguntar e explicar é o desarme ideológico, anterior a todo o desarme político ou militar. Como e por que razões foi levado a cabo? Como se poderia reverter? Ainda que importantíssima, talvez a questão não seja em que momento se realizou “o deixar as armas” e sim as razões pelas quais foi tomada semelhante decisão política.
Tão pouco é determinante se no cone sul do continente se coloca apenas a luta pela democracia e o progressismo, deixando o socialismo para um horizonte já indistinguível no tempo e no espaço. O problema é que voltou à tona a muito antiga cultura da “frente democrática”. Aquelas velhas teses de Dimitrov, mas de uma maneira muitíssimo mais light e descafeinada.
Porque uma coisa é, numa determinada conjuntura, numa situação concreta, não haver forças suficientes para se colocar a tomada do poder e o socialismo e algo totalmente diferente é que esse projeto seja definitivamente arquivado e se abandone para a eternidade. Recordamos quando o jovem Hugo Chávez disse, com enorme lucidez e valentia política: “Fracassámos... por agora. Outra seria a história deste continente se houvesse dito: “Fracassámos”. E ponto.
Na nossa modesta opinião, não se trata de voltar à nostalgia, vestir uma camisola com a sigla CCCP (URSS), como costumam fazer alguns jovens que cultivam a moda “retro”. Também não se trata de continuar a girar em torno de saber se Trotsky reprimiu anarquistas no Kronstadt, se Stáline, por sua vez, assassinou Trotsky e se Kruschev traiu Stáline, voltando-se para o pacifismo, redobrado até ao paroxismo pelo eurocomunismo e assim por diante. Não. Definitivamente não.
O que se trata é de abandonar a síndrome do Muro de Berlim. Recuperar a ofensiva ideológica. Ter os pés na terra e não cair na dupla moral de proclamar palavras de ordem ultrarradicais, mantendo uma prática quotidiana ultrarreformista. Sabemos que a conjuntura não está a nosso favor. Mas não abandonemos a perspetiva revolucionária.
Se num contexto de contrainsurgência global, as organizações marxistas revolucionárias têm de fazer alianças com forças que não são anticapitalistas, será preciso ter flexibilidade. Os movimentos de libertação nacional (recordemos o exemplo vietnamita, para não mencionar outros mais próximos) assim o exigiram. Mas isso não implica diluir-se, apagar a própria identidade, carecer de uma estratégia própria, nem abandonar para sempre o sonho da revolução socialista.
“Tudo é ilusão, menos o poder”, escreveu Lénine certa vez. Mariátegui, Mella e Farabundo Martí quiseram tomar o poder, inclusive quando não puderam concretizá-lo. Fidel, o Che, Marulanda, Marighella, etc. continuaram esse caminho. Outros e outras, que não se definiram dentro da cultura “PC” (como Robi Santucho, Raúl Sendic, Miguel Enriquez, Carlos Fonseca, Roque Dalton, Camilo Torres, etc.), na prática... deram a sua vida pela revolução e o comunismo. Chamaram-se como se chamaram. A sua memória, que é a nossa, merece muito mais que ir a reboque da burguesia.
30 de maio de 2019

Notas
[1] Esta Declaração foi traduzida para português e publicada neste sítio, no passado dia 24 de junho – NE.
Tradução do castelhano de PTA

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