(Notas “a partir de um obscuro rincão do mundo”)
Néstor Kohan (Cátedra Che Guevara da Argentina)
… o que está claro é que a partir da feroz crise de 2008 e da reconversão dos antigos fanáticos do livre comércio em “protecionistas” e “guerreiros comerciais” (EUA, Alemanha, China, etc.), somadas às invasões, bombardeamentos, bloqueios económicos e intervenções político-militares imperialistas da última década, qualquer análise séria do presente já não pode continuar a repetir os tiques, os slogans e as modulações da “coexistência pacífica”, de 1960.
O capitalismo em debate
Após várias décadas de cozinhados requentados pós-modernos, sopas “pós-marxistas”, saladas reformistas e sobremesas “pós-coloniais”
à carta, a discussão sobre o capitalismo mundial volta para cima da
mesa. Nos movimentos sociais, nas organizações políticas e no mundo
cultural. Já ninguém se conforma com os “microrrelatos”, os “micropoderes”, a “micro-história”.
Todos os pretextos e malabarismos para não encarar as crises selvagens
que atravessam o sistema capitalista são afastados, como migalhas sujas,
para fora da toalha.
O incêndio
da crise de 2008 não se apaga. O fogo propaga-se. O planeta range. Cada
vez se tornam mais inadiáveis as explicações totalizantes sobre o que
atravessamos.
Estaremos, afinal, numa época de capitalismo “desterritorializado”
e interdependente, sem imperialismo, metrópoles, dependências ou
periferias, onde um grupo de vendedores ambulantes de um bairro perdido
do Haiti desempenha o mesmo papel no sistema mundial que o Bundesbank
alemão, uma aldeia longínqua da Indonésia tem o mesmo nível de poder
financeiro e político-militar que a Wall Street ou o Pentágono? Ou
talvez continuemos localizados, ainda que não nos apercebamos, no antigo
capitalismo keynesiano do pós-guerra, com cadeias produção de valor
ancoradas em cada país e capitais regulados numa escala puramente
nacional? Terá sido completamente inócua a contraofensiva capitalista
iniciada em setembro de 1973, no Chile, logo estendida à Argentina de
1976 e, finalmente, aplicada, durante 1979-1980, na Londres de Margaret
Thatcher e em Washington de Ronald Reagan? Que alguém avance uma
explicação, por favor, e nos clarifique o panorama!
Não
estaremos a viver, talvez, uma nova fase do capitalismo, na qual se
combinam as revoluções tecnológicas do capitalismo tardio, estudadas por
Ernest Mandel, os cinco monopólios mundiais explicados por Samir Amin e
a reconquista planetária, por desposesión [expropriação], sobre a qual
nos alertou David Harvey?
Seja
qual for a resposta correta, o que está claro é que a partir da feroz
crise de 2008 e da reconversão dos antigos fanáticos do livre comércio
em “protecionistas” e “guerreiros comerciais” (EUA,
Alemanha, China, etc.), somadas às invasões, bombardeamentos, bloqueios
económicos e intervenções político-militares imperialistas da última
década, qualquer análise séria do presente já não pode continuar a
repetir os tiques, os slogans e as modulações da “coexistência pacífica”, de 1960.
Aquele tosco e demasiado inocente “pacifismo”
de Nikita Kruschev, dos velhos documentários a preto e branco, – uma
década mais tarde adotado nas metrópoles ocidentais pelo eurocomunismo
(acompanhado de refinadas e esquisitas argumentações epistemológicas) –,
hoje... atrasa!
Afirmar que a grande meta estratégica do comunismo é... “a paz” (assim, em geral, como diziam os soviéticos) e a defesa da “democracia”
(também em geral, sem especificações e qualificações), está démodé
[fora de moda]. Não bate certo. Não corresponde ao planeta em que
vivemos.
Flower power [poder das flores] frente ao imperialismo, ou estratégia comunista?
O
mundo mudou. Lamentavelmente, não foi para melhor. O hipismo de John
Lennon e Yoko Ono, junto com o flower power, ficaram no belo rincão da
nostalgia estética e da memória musical. Longe daqueles cabelos
compridos e dos seus protestos pacifistas em lençóis brancos, o nosso
mundo, hoje, parece-se muito mais com as sombrias imagens distópicas
onde proliferam as invasões, as bases militares à escala planetária, a
vigilância global, a repressão das massas empobrecidas migrantes e as
guerras por recursos naturais não renováveis.
Se
temos os pés assentes na terra e não confundimos o princípio do prazer
(e a imaginação psicadélica) com o princípio da realidade, o trauma da
queda do Muro de Berlim e as antigas nostalgias, hoje inoperantes, devem
ser superadas de uma vez por todas. De nada serve invocá-las
periodicamente para reinventar novos reformismos.
Num livro recente, Estudiando la contrainsurgencia de Estados Unidos. Manuales, mentalidades y uso de la antropología [Estudando a contrainsurgência dos Estados Unidos. Manuais, mentalidades e uso da antropologia] (2019), o antropólogo mexicano Gilberto López y Rivas descreve o sistema capitalista mundial da nossa época. É apenas uma possível tentativa, mas, no nosso entender, muito útil e realista.
Num livro recente, Estudiando la contrainsurgencia de Estados Unidos. Manuales, mentalidades y uso de la antropología [Estudando a contrainsurgência dos Estados Unidos. Manuais, mentalidades e uso da antropologia] (2019), o antropólogo mexicano Gilberto López y Rivas descreve o sistema capitalista mundial da nossa época. É apenas uma possível tentativa, mas, no nosso entender, muito útil e realista.
No
momento de definir as características centrais e o tipo de capitalismo
que predomina nos nossos dias, o autor impugna de facto as versões
apologéticas de uma suposta globalização “homogénea, plana, sem assimetrias nem desenvolvimentos desiguais”.
Gilberto López y Rivas afirma que o atual sistema capitalista conforma
um imperialismo global lançado, sem escrúpulo algum, numa “recolonização
do mundo”. A sua tese, arriscada e precisa, desmonta na prática esse
lugar comum das academias (financiadas por fundações “desinteressadas” como a NED ou a USAID) segundo a qual
“num mundo globalizado, governado pela informação e o capitalismo
cognitivo, os Estados Unidos, a Europa ocidental e os países
capitalistas mais desenvolvidos já não necessitam da América Latina, da
África nem dos países pobres da Ásia, ou seja, do Terceiro Mundo”.
Essa formulação trivial, repetida até à exaustão por especialistas em
guerra psicológica, comentadores do marketing mediático e diletantes
vários, a soldo do império, dá de caras com as guerras permanentes
contra países periféricos, os bombardeamentos “humanitários” contra os chamados “estados falidos”,
as invasões político-militares contra as sociedades dependentes, os
bloqueios económicos e comerciais contra qualquer governo desobediente –
nomeados com desdém como um “regime” pelo simples facto de não
se ajoelhar perante as ordens das embaixadas norte-americanas, da União
Europeia ou as receitas do FMI e do Banco Mundial – e o saque
ininterrupto dos recursos naturais e da biodiversidade do Terceiro
Mundo. Esse processo renovado de dominação e apropriação, ou a tentativa
de o levar a cabo por métodos violentos, constitui a manifestação de um
“neocolonialismo imperialista”, segundo a análise rigorosa de Gilberto López y Rivas. Toda uma definição.
O arco-íris da bandeira vermelha
Neste
contexto global, não cabe a passividade. As resistências são múltiplas.
Ainda que nem todas tenham a mesma capacidade de organização e
mobilização, nem a mesma nitidez ideológica, para convocar e unir à
escala internacional as iras populares, as rebeldias antissistémicas e
as dissidências contra “a nova ordem mundial”, cada dia mais
caótica, cruel e desapiedada. As bandeiras das massas oprimidas e dos
movimentos sociais à escala planetária têm as cores mais diversas, desde
o verde ecologista e o violeta feminista, até o emblema multicor LGTBI,
entre muitíssimas outras expressões de rebeldia. Mas de todas as cores e
matizes, necessariamente variados e coexistentes, cremos que o
horizonte vermelho do marxismo continua a ser a perspetiva
teórico-política mais abrangente, inclusiva e integradora e a que
permite articular e unir todas as demais rebeldias à escala mundial,
como há alguns anos assinalou a pensadora dos Estados Unidos, Ellen
Meiksins Wood, no seu conhecido livro La renovación del materialismo histórico. Democracia contra capitalismo (2000).
A nova resistência. Polémicas, 90 anos depois da Primeira Conferência Comunista sul-americana
Há “apenas”
90 anos, quando não existia internet nem TV, destacamentos de diversas
organizações revolucionárias da Nossa América reuniram-se em Buenos
Aires, Argentina, para organizar a resistência das classes
trabalhadoras, o mundo plebeu e popular. Tratava-se então de enfrentar
de forma unida e organizada o imperialismo daquele tempo e a sua famosa
crise capitalista de 1929.
A
reunião de 1929 teve lugar na Nossa América, dez anos depois de, em
1919, os bolcheviques fundarem a Internacional Comunista (completam-se
agora 100 anos).
A obra que reúne as intervenções, palestras, debates e discussões daquele rico encontro histórico tem por título El
movimiento revolucionario latinoamericano. Versiones de la Primera
Conferencia Comunista latinoamericana del 1 al 12 de junio de 1929. Foi
editada por “La correspondencia Sudamericana”, Buenos Aires, 1929.
O grosso volume – durante muitos anos em poder de escassos
colecionadores – pode-se hoje ler e descarregar, na íntegra e
gratuitamente, no seguinte link: http://cipec.nuevaradio.org/?p=92
[Obtivemos o exemplar digitalizado da biblioteca pessoal do historiador
marxista Rodolfo Puiggrós, daí que várias páginas tenham o carimbo do
seu arquivo].
Em
algumas investigações e livros tentámos analisar os eixos e discussões
daquela lendária reunião, que tencionava desenvolver na Nossa América os
ensinamentos de Lénine e dos bolcheviques, tomando mate, ouvindo música
latino-americana e conversando em castelhano. Não repetiremos agora
essas análises.
Contudo,
90 anos depois, soubemos que, em abril de 2019, voltaram a reunir-se
organizações comunistas de vários países (Argentina, Bolívia, Brasil,
Chile, Colômbia, Paraguai, Peru, Uruguai e Venezuela), em Montevideo,
Uruguai. Estas organizações publicaram um documento conjunto onde,
invocando aquela Conferência Comunista de 1929, tentam descrever como
veem o capitalismo atual e quais deveriam ser as estratégias e táticas
para lutar contra ele.
Pode consultar-se a Declaración del Encuentro de Partidos Comunistas de Suramérica no seguinte link:
http://www.pcu.org.uy/index.php/noticias/item/3110 (datada na web de 30 de abril de 2019).
A
essa reunião não assistiram todos os comunistas do continente. Alguns
núcleos, inclusive, fizeram fortes críticas ao documento. Por exemplo,
pode-se consultar: A propósito da Declaração de Montevideu – resposta do Comité Central do Partido Comunista do México, no seguinte link: http://comunistas-mexicanos.org/partido-comunista-de-mexico/2213-por-cuestion-deprincipios (datada na web de 24 de maio de 2019) [1].
Até
onde sabemos e temos notícias, a organização comunista de Cuba (noutras
décadas, em vida de Fidel, cabeça ideológica da revolução continental
da Nossa América), não só não participou, como, além disso, nem sequer
se manifestou sobre qualquer daquelas duas posições. Desde que foi
dissolvido o célebre “Departamento América” do comunismo cubano (outrora conhecido como “Departamento de Libertação Nacional”, sob a direção de Manuel Piñeiro Losada [“el gallego”; comandante “Barbarroja”]),
Cuba pronuncia-se, à escala internacional, prioritariamente, através do
seu Ministério das Relações Exteriores. Mas nesta ocasião nem sequer
por essa via oficial-diplomático-institucional se ouviram ou leram
declarações cubanas.
No
meio deste debate político-ideológico aberto à escala continental e
perante o silêncio de Cuba, uma terceira organização que, até há muito
pouco tempo, se reclamava e definia como comunista, tão pouco se
pronunciou no debate, pois está a atravessar uma aguda crise à beira da
divisão, tornada pública por todos os meios de comunicação do mundo.
Trata-se das antigas FARC-EP (Forças Armadas Revolucionárias da
Colômbia-Exército do Povo, anteriormente vinculadas ao Partido Comunista
Clandestino da Colômbia, PCCC], definidas antes do seu desarmamento,
reconversão e do acordo com o Estado colombiano como um “partido comunista em armas”.
O que está claro é que já ninguém se atribui nem exerce a função internacional de “partido guia”. Nem o antigo partido comunista da Rússia (que liderava o universo “pró-soviético”), nem o da China (outrora na cabeça da constelação maoísta), nem o da Coreia do Norte, nem o da antiga Albânia, nem o da Grécia, nem o já mencionado partido comunista de Cuba (durante décadas, farol das insurgências latino-americanas e, inclusive, com influências diretas nos Panteras Negras, dos EUA). Ainda que existam afinidades, simpatias e aproximações internacionais, o comunismo mundial já não tem um Vaticano nem uma Meca ideológicos.
O que está claro é que já ninguém se atribui nem exerce a função internacional de “partido guia”. Nem o antigo partido comunista da Rússia (que liderava o universo “pró-soviético”), nem o da China (outrora na cabeça da constelação maoísta), nem o da Coreia do Norte, nem o da antiga Albânia, nem o da Grécia, nem o já mencionado partido comunista de Cuba (durante décadas, farol das insurgências latino-americanas e, inclusive, com influências diretas nos Panteras Negras, dos EUA). Ainda que existam afinidades, simpatias e aproximações internacionais, o comunismo mundial já não tem um Vaticano nem uma Meca ideológicos.
E
se isto acontece com o mundo comunista, algo não muito diferente
experimenta também a galáxia de recorte trotskista, dividida em não
menos de oito coordenadoras, todas autobaptizadas “Quarta Internacional”,
mas, na prática, nenhuma delas aglutina mais de dez representações – no
caso das maioritárias, porque, várias outras são integradas por apenas
dois ou três grupos diversos –, de diferentes países.
Contrainsurgência, correlação de forças e problema nacional
O
debate aberto em 2019 tem, assim, muitas arestas. Desde como definir o
novo tipo de capitalismo mundial, até ao projeto alternativo pelo qual
se deveria lutar, caso se pretenda resistir e mudar o mundo.
Os
marxistas e, em particular, os comunistas devem ter um projeto
progressista, de reformas democráticas e em defesa da paz ou, em
alternativa, deveriam tratar de construir alianças e acumular forças em
função de um projeto revolucionário, anti-imperialista e
anticapitalista? Quando avançam as forças da extrema direita,
neofascistas e anti-institucionais (no caso latino-americano: Brasil e
Colômbia, ambos sob o guarda-chuva dos EUA e de Israel, ainda que
algumas destas correntes neofascistas também proliferem na Europa),
devem as forças comunistas defender, como estratégia, o parlamento, a
legalidade, a constituição e a paz a qualquer custo ou, em alternativa,
devem-se preparar para enfrentar, por todas as formas de luta possíveis,
a contrainsurgência, hoje, realimentada e atiçada nestes tempos de
ofensiva capitalista?
No plano da estratégia a longo prazo, quando na América Latina “o ciclo progressista”
se enfraqueceu notoriamente e a direita mais agressiva mostra o seu
punho de ferro, devem os comunistas promover frentes democráticas,
seguindo as velhas consignas de Jorge Dimitrov e do Sétimo Congresso da
Internacional Comunista, de 1935, ou, em alternativa, devem propiciar
uma frente única das forças revolucionárias, antifascistas,
anti-imperialistas e anticapitalistas?
No
âmbito das táticas a curto prazo, qual deveria ser a proposta a
apresentar no seio dos movimentos de massas para derrotar os governos
neoliberais (Macri, na Argentina, Bolsonaro, no Brasil, Duque-Uribe na
Colômbia, Piñera, no Chile, etc.)? Priorizar “a paz e a democracia”,
diluindo-se em partidos tradicionais do sistema, que encabecem as
sondagens eleitorais, sem mostrar a identidade própria (ou, inclusive,
escondendo-a) ou, pelo contrário, promover frentes unitárias de
libertação que tenham como objetivo recuperar a soberania nacional
espezinhada pelo imperialismo (desde o económico, o produtivo e o
financeiro até ao territorial e ao geopolítico) e, portanto, tentar
influir ideologicamente nas grandes massas que participam nos processos
eleitorais com uma identidade definida através de um programa
antineoliberal, mas, ao mesmo tempo, propondo medidas anti-imperialistas
e com perspetivas anticapitalistas?
A disjuntiva é atual, é urgente, mas tem uma longa história.
Recordemos
que já naquela Conferência Comunista, de 1929, o grupo liderado por
Victorio Codovilla (com a anuência do PC da União Soviética, presente
através do bukarinista Jules Humbert-Droz [“camarada Luís”]) acabou por impor a estratégia continental da revolução democrática burguesa, “agrária e anti-imperialista”, baseando-se no seu suposto “feudalismo”
latino-americano. Posição hegemónica que enfrentou, com nome e apelido,
as propostas dos delegados de José Carlos Mariátegui, que propunha como
estratégia continental o seguinte: «A própria palavra revolução,
nesta América das pequenas revoluções, presta-se bastante ao equívoco.
Temos de a reivindicar rigorosa e intransigentemente. Temos de lhe
restituir o seu sentido estrito e cabal. A revolução latino-americana
será nada mais e nada menos que uma etapa, uma fase da revolução
mundial. Será simples e puramente a revolução socialista. A esta palavra
acrescentai, conforme os casos, todos os adjetivos que quiserdes:
“anti-imperialista”, “agrária”, “nacionalista-revolucionária”. O
socialismo os supõe, os antecede e os abrange a todos» (editorial da revista Amauta: “Aniversário e balanço”, setembro de 1928).
Noventa anos depois, reaparece o debate. Ficamo-nos apenas pela defesa da “democracia”,
a seco, em geral, ou esforçamo-nos por disputar a hegemonia político-
cultural, puxando a corda para posições socialistas, entrecruzadas, na
Nossa América, com antigas, adiadas e irresolvidas exigências
étnico-nacionais (como acontece com a nação mapuche, os mais de trinta
povos-nações do estado plurinacional da Bolívia, os povos originários do
Peru, os do Equador, os da Guatemala, os do México, etc.).
Tem sentido suicidar uma insurgência? Balanço de inventário
Ao
avaliar as diferenças atuais entre os comunistas do cone sul e os
mexicanos, não se deveria perder de vista o contexto regional e a
correlação de forças à escala continental.
Nesse horizonte, perguntamos com a cabeça fria e absoluta serenidade: terá sido uma boa decisão desarmar (ou suicidar?) o maior exército revolucionário do continente quando proliferam e se multiplicam as bases militares norte-americanas? (Sobre este tema pode consultar-se a volumosa obra de Telma Luzzani (2012): Territorios vigilados. Cómo opera la red de bases militares norteamericanas en Sudamérica, Buenos Aires, Editorial Debate). Desde 2012, quando esse documentado livro foi publicado, até hoje, as bases militares norte-americanas continuaram a aumentar. Não é nenhum segredo que o governo do presidente Macri entregou parte do território argentino para essas novas bases. No livro Estudiando la contrainsurgencia de Estados Unidos (2019), de Gilberto López y Rivas, encontram-se várias descrições pormenorizadas dos diferentes tipos de bases operativas norte-americanas fora do seu território.
Nesse horizonte, perguntamos com a cabeça fria e absoluta serenidade: terá sido uma boa decisão desarmar (ou suicidar?) o maior exército revolucionário do continente quando proliferam e se multiplicam as bases militares norte-americanas? (Sobre este tema pode consultar-se a volumosa obra de Telma Luzzani (2012): Territorios vigilados. Cómo opera la red de bases militares norteamericanas en Sudamérica, Buenos Aires, Editorial Debate). Desde 2012, quando esse documentado livro foi publicado, até hoje, as bases militares norte-americanas continuaram a aumentar. Não é nenhum segredo que o governo do presidente Macri entregou parte do território argentino para essas novas bases. No livro Estudiando la contrainsurgencia de Estados Unidos (2019), de Gilberto López y Rivas, encontram-se várias descrições pormenorizadas dos diferentes tipos de bases operativas norte-americanas fora do seu território.
Ao
levantar a barreira geopolítica que a insurgência comunista – com uma
experiência prática de mais de meio século de luta – interpunha entre os
estados da Colômbia e da Venezuela, não se lhes deixaram as mãos livres
para o paramilitarismo e o narco estado colombiano arremeterem contra o
governo bolivariano do chavismo e tentarem, pela mão dos “falcões” do Pentágono e da administração Trump, derrubá-lo por vias violentas?
Será que o governo cubano imaginou que, ajudando a desativar, em nome da “paz”,
o último contingente político-militar comunista de envergadura, se
afrouxaria o criminoso bloqueio norte-americano contra essa ilha heroica
e rebelde? Pelo pouco que se sabe, parece que o referido bloqueio está
mais duro do que nunca...
Será
que o governo do presidente legítimo da Venezuela pensou que,
desaparecida a guerrilha bolivariana, o estado colombiano iria
finalmente respeitar a lei, o direito internacional e a “boa vizinhança”?
As aparências indicam o contrário. Desaparecidas as FARC-EP como força
beligerante, o uribismo (o oficial e o paralelo) está mais forte que
nunca... e os seus paramilitares podem dispor da fronteira para cometer
todo o tipo de malfeitorias e violências contra o valoroso e abnegado
povo venezuelano.
Entretanto,
no interior da Colômbia, o Estado executou 135 ex-combatentes,
desarmados, assassinados a sangue frio. Sem contar toda a militância
social e de direitos humanos que foi reprimida nos últimos meses.
Até
o jornal The New York Times, insuspeito de posições marxistas, publicou
nos EUA um artigo assinado por Nicholas Casey, que gerou um alvoroço de
alcance internacional. Alerta sobre as execuções extrajudiciais na
Colômbia, o papel do ex-presidente Uribe e o desconhecimento permanente
dos acordos de paz por parte do atual presidente Duque. Até 79
congressistas do Partido Democrata dos Estados Unidos pediram à Casa
Branca para suspender todo apoio aos sabotadores (estatais) da paz na
Colômbia.
Segundo
o diário norte-americano, o governo ultradireitista de Iván Duque e os
seus principais comandos militares ordenaram o regresso à prática suja
dos “falsos positivos”. Ou seja, executar civis disfarçando-os
de insurgentes e aumentar os “caídos em combates” (falsos), seja como
for. Chegou ao ponto de o jornal The New York Times ter confirmado que
as forças armadas da Colômbia iniciaram uma investigação interna para
descobrir as fontes militares que deixaram escapar a informação dessas
novas operações contrainsurgentes. Perante semelhante evidência, tem
sentido continuarmos teimosamente abraçados a um papel assinado em
Havana do qual a burguesia colombiana e o seu imenso aparelho de guerra
se riem em público?
Neutralizar, desarmar, dividir e aniquilar
Essas
parecem ter sido as fases estratégicas da contrainsurgência colombiana,
dirigida com muita precisão a partir dos Estados Unidos e de Israel.
Talvez tenha chegado a hora de nos interrogarmos sobre as debilidades
ideológicas que permitiram semelhante operação. Ou foi só “perfídia”? Chegará a categoria “perfídia” para explicar todo esse processo?
Inscreve-se
nesse contexto o triste e vergonhoso caso do sequestro – completamente
ilegal e forçado – de Jesús Santrich, acusando-o de narcotraficante,
grosseira montagem ao melhor estilo DEA/CIA. Como explicá-lo?
Valendo-se de uma montagem digna do famoso computador mágico de Raúl
Reyes (de onde brotavam os delírios mais hilariantes, as histórias mais
descabeladas), recrutou-se um militante da organização, seguindo o
manual de operações da CIA. Todo o mundo se recorda de como Philip Agee,
antigo agente da “companhia” que escreveu há décadas um livro famoso: Inside the Company [traduzido para o castelhano com o título Diario de la CIA],
descreve o método de recrutamento clássico da inteligência
norte-americana: o dinheiro. Utilizando este método, a montagem DEA/CIA
contra o revolucionário cego Santrich, recorreu mais uma vez à figura do
“arrependido” (assim os chamavam na Itália dos anos 70, quando o estado burguês venceu as Brigadas Vermelhas; na Argentina, denominavam-nos “quebrados”,
em cada país são conhecidos com nomes diferentes. Mas, neste caso, não
se trata de algum antigo militante revolucionário que não aguenta a
tortura e colabora – como na Itália ou na Argentina – e sim de alguém
que muda de lado sem pressões físicas, mas sim por dinheiro). Na
montagem contra Jesús Santrich (dirigente insurgente comunista e
bolivariano, mas também escritor, poeta, músico e filósofo), o seu “acusador”
tomou um voo imediato para os EUA onde imediatamente começou a
trabalhar, segundo os meios de comunicação, para a DEA, como na série
mais imaginativa da Netflix).
Qual o objetivo deste injusto, ilegal e cruel encarceramento?
Na nossa opinião, os objetivos foram vários.
Além
da humilhação pública de um dirigente revolucionário internacionalmente
conhecido – típica operação de guerra psicológica para causar baixas
morais à tropa inimiga –, o principal objetivo foi o de dividir as FARC e
todos os comunistas da Colômbia. Gerar intrigas, enfrentar entre si os
revolucionários, debilitar todo o projeto de mudança. Uma velha
receita... que o reformismo aceita desde que o sistema o tolere.
As provas estão à vista. Parte dos dirigentes oficiais do novo partido reciclado, que já não menciona a palavra “marxismo” nem “comunismo”,
tratou de se desentender com Santrich. Inclusivamente, um dos seus
editorialistas estrelas, agora convertido, deu certa credibilidade à
montagem oficial, deixando nas mãos da vítima a carga probatória da sua
inocência, em vez de negar rotundamente o que, à evidência, era uma
manobra fabricada artificialmente contra um dos seus companheiros. Esse
mesmo editorialista-estrela que, com evidentes intenções de provocação
política, acusou Iván Márquez de estar “assessorado” por
peritos trotskistas estrangeiros. A direita, feliz, aplaudia em delírio!
A família comunista sangrava e dividia-se sem pena nem glória em troca
de... nada.
Isso
levou a que Iván Márquez, principal líder insurgente (que, em agosto de
2017, ficou em primeiro lugar nas votações da nova organização, com 888
votos, enquanto Rodrigo Londoño Echeverri [“Timoléon Jiménez”, “Timochenko”] ficou em quinto lugar, abaixo, inclusive, dos votos obtidos por Jesús Santrich), escrevesse uma carta pública intitulada “Aos guerrilheiros nos ETCR [Espacios Territoriales de Capacitación y Reincorporación] e a todos os colombianos”, que se pode consultar no link: https://www.lahaine.org/mundo.php/a-los-guerrilleros-en-los
(publicada na web, em 21 de maio de 2019). Nela faz uma autocrítica
pública pela entrega de armas ao estado colombiano antes deste
concretizar o prometido.
Em
vez de ler com humildade o apelo, refletir em conjunto, assumir
debilidades e pensar num futuro plano coletivo para tentar reconstruir –
nas novas condições – o politicamente perdido, a carta pública de Iván
Márquez foi respondida, de imediato, por Rodrigo Londoño, o qual “decretou”
que Iván Márquez... era afastado das FARC. A decisão de Londoño foi
aplaudida por toda a direita e pelos meios de comunicação monopolistas,
ameaçando os dirigentes políticos, ex-guerrilheiros, perante um eventual
regresso à luta.
Cumprido
o objetivo, Santrich é posto em liberdade. Os Estados Unidos e o
narco-estado colombiano já haviam obtido o que queriam.
Refletindo “A partir de um obscuro rincão do mundo”
Há
meio século, o velho professor marxista Rodolfo Puiggrós escreveu que,
como nós, os argentinos, não conseguimos tomar o poder e fazer a nossa
própria revolução socialista, vamos pelo mundo a inspecionar revoluções
alheias. Essa fina ironia de Puiggrós, lúcida e sábia, acompanha-me
desde a primeira vez que a li. É um apelo à humildade. Um bem escasso na
nossa esquerda. Não obstante, respeitando as decisões políticas de cada
país, ao menos pode-se opinar.
Acreditamos que as únicas opções revolucionárias não são as que se autodenominam exclusivamente “PC”. Muita água correu sob a ponte desde a Conferência Comunista de 1929 e da outra, ainda maior, de 1960 (“de partidos comunistas e operários”), para mencionar apenas duas.
Deixemos
de lado as denominações e as autoproclamações: onde está hoje
representado o movimento revolucionário latino-americano? A resposta não
é categórica nem matemática. Está no espaço dos “PC”, mas também noutros espaços politicamente contíguos, que muitas vezes se formaram em polémica com os “PC”.
Existem também outras coordenações, não denominadas exclusivamente “PC”,
mas que implicitamente assumem essa cultura, como o Movimento
Continental Bolivariano (MCB), onde o marxismo e a herança de Lénine se
entrecruzam com as histórias de luta pela independência (neste caso
simbolizadas na figura de Simón Bolívar, a que deveríamos acrescentar
Che Guevara). Não será hora de o revitalizar e ampliar?
E,
em paralelo, existem também movimentos que se baseiam no marxismo,
entrecruzando-o com o indianismo revolucionário (como no caso da Bolívia
e de Chiapas), ou também com a teologia da libertação, de inspiração
marxista e cristã (como é o caso do Brasil e de alguns países
centro-americanos).
Em
todos estes casos e espaços, uma das chaves centrais para enfrentar os
desafios pendentes é assumir uma posição internacionalista, que não
dependa de “capitais” nem de “vaticanos” ou “mecas” ideológicas, seja de Moscovo, Pequim, Havana, Paris, Atenas, etc.
A
discussão entre reformismo e revolução complexificou-se. Cinquenta anos
de guerra civil só para alcançar a paz? Não estava na agenda a
transformação social, a tomada do poder, a revolução? Quem tenha visto,
pelo menos na web, algum vídeo do velho Manuel Marulanda sabe
perfeitamente o que o líder insurgente com mais anos de insurgência em
todo o continente (pois começou, inclusive, antes de Fidel) repetiu mil
vezes: “Que ninguém se confunda. Nós lutamos pelo poder. Esse é o melhor e o maior sonho: o poder”
(pode-se procurar no YouTube ou em outras plataformas da web. Enquanto
diz isto, o velho líder colombiano sorri diante da câmara).
O
que talvez haveria que perguntar e explicar é o desarme ideológico,
anterior a todo o desarme político ou militar. Como e por que razões foi
levado a cabo? Como se poderia reverter? Ainda que importantíssima,
talvez a questão não seja em que momento se realizou “o deixar as armas” e sim as razões pelas quais foi tomada semelhante decisão política.
Tão
pouco é determinante se no cone sul do continente se coloca apenas a
luta pela democracia e o progressismo, deixando o socialismo para um
horizonte já indistinguível no tempo e no espaço. O problema é que
voltou à tona a muito antiga cultura da “frente democrática”. Aquelas velhas teses de Dimitrov, mas de uma maneira muitíssimo mais light e descafeinada.
Porque
uma coisa é, numa determinada conjuntura, numa situação concreta, não
haver forças suficientes para se colocar a tomada do poder e o
socialismo e algo totalmente diferente é que esse projeto seja
definitivamente arquivado e se abandone para a eternidade. Recordamos
quando o jovem Hugo Chávez disse, com enorme lucidez e valentia
política: “Fracassámos... por agora”. Outra seria a história deste continente se houvesse dito: “Fracassámos”. E ponto.
Na
nossa modesta opinião, não se trata de voltar à nostalgia, vestir uma
camisola com a sigla CCCP (URSS), como costumam fazer alguns jovens que
cultivam a moda “retro”. Também não se trata de continuar a
girar em torno de saber se Trotsky reprimiu anarquistas no Kronstadt, se
Stáline, por sua vez, assassinou Trotsky e se Kruschev traiu Stáline,
voltando-se para o pacifismo, redobrado até ao paroxismo pelo
eurocomunismo e assim por diante. Não. Definitivamente não.
O
que se trata é de abandonar a síndrome do Muro de Berlim. Recuperar a
ofensiva ideológica. Ter os pés na terra e não cair na dupla moral de
proclamar palavras de ordem ultrarradicais, mantendo uma prática
quotidiana ultrarreformista. Sabemos que a conjuntura não está a nosso
favor. Mas não abandonemos a perspetiva revolucionária.
Se
num contexto de contrainsurgência global, as organizações marxistas
revolucionárias têm de fazer alianças com forças que não são
anticapitalistas, será preciso ter flexibilidade. Os movimentos de
libertação nacional (recordemos o exemplo vietnamita, para não mencionar
outros mais próximos) assim o exigiram. Mas isso não implica diluir-se,
apagar a própria identidade, carecer de uma estratégia própria, nem
abandonar para sempre o sonho da revolução socialista.
“Tudo é ilusão, menos o poder”,
escreveu Lénine certa vez. Mariátegui, Mella e Farabundo Martí quiseram
tomar o poder, inclusive quando não puderam concretizá-lo. Fidel, o
Che, Marulanda, Marighella, etc. continuaram esse caminho. Outros e
outras, que não se definiram dentro da cultura “PC” (como Robi
Santucho, Raúl Sendic, Miguel Enriquez, Carlos Fonseca, Roque Dalton,
Camilo Torres, etc.), na prática... deram a sua vida pela revolução e o
comunismo. Chamaram-se como se chamaram. A sua memória, que é a nossa,
merece muito mais que ir a reboque da burguesia.
30 de maio de 2019
Notas
[1] Esta Declaração foi traduzida para português e publicada neste sítio, no passado dia 24 de junho – NE.
Fonte:https://www.lahaine.org/mundo.php/el-fantasma-comunista-en-su - http://lhblog.nuevaradio.org/b2-img/KohanFantasmaComunista.pdf, publicado em 2019/06/01, acedido em 2019/06/04
Tradução do castelhano de PTA
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