David Card, professor da Universidade de Berkeley
“Portugal foi poupado aos grandes ajustamentos salariais”
Desde
o ano 2000, Portugal não teve as reduções salariais que outros países
europeus sofreram, constata David Card. Com Portugal na zona euro, isso
ainda será um problema para os próximos anos, alerta o economista
Texto Sónia M. Lourenço
Todos
os anos, o seu nome consta da lista dos potenciais vencedores do Prémio
Nobel da Economia. Afinal, David Card é uma das vozes mais influentes
no campo da Economia do Trabalho e, em 1995, foi galardoado com a
Medalha John Bates Clark, da American Economic Association, que, a cada
dois anos, distingue um economista de excelência com menos de 40 anos de
idade. Em entrevista ao Expresso falou sobre o futuro do trabalho,
considerando que o envelhecimento demográfico é a principal força que
vai moldar as próximas décadas. Mais até do que os avanços tecnológicos.
Sobre Portugal, destaca que os salários reais estão no mesmo patamar de
2000, sem grandes alterações. O que coloca problemas ao país, dada a
pertença à zona euro. Tudo porque “em muitos outros países europeus
caíram”.
Como vê o futuro do trabalho?
Acho
que a coisa mais importante que vai acontecer nos próximos 20 anos é um
envelhecimento muito rápido da força de trabalho. Se olharmos para o
Japão hoje, penso que é onde estarão a maioria dos países europeus daqui
a 15 anos ou 20 anos: um número muito pequeno de jovens em relação aos
idosos. Penso que isso terá maiores implicações do que a tecnologia.
O envelhecimento demográfico pode levar a ainda mais inovação tecnológica e automação?
Sim.
Já vimos isso no Japão. Têm muita tecnologia dedicada a ajudar as
pessoas mais velhas a serem autossuficientes. Penso que haverá muitos
desenvolvimentos nessa direção. Se, em média, uma pessoa viver durante
20 a 30 anos após a reforma, haverá muitos idosos e poucos jovens para
cuidarem deles. Essa mudança já está a acontecer muito rapidamente em
países como a Alemanha, e na Europa de Leste. E também se sente em
Itália e Espanha. Parte disto pode ser alterado com a imigração.
Em Portugal também?
Em
Portugal, nos últimos 20 anos não havia muito emprego, por isso não
houve muita imigração. Mas, com a melhoria da economia, podemos esperar
alguma imigração para Portugal e isso pode compensar em parte a questão
do envelhecimento. Já no Japão isso não acontece, porque não permite
imigração. É por isso que são um caso extremo. Penso que esta questão
terá maior impacto do que a tecnologia. Temos mudança tecnológica há 200
ou 300 anos de forma bastante constante. O meu avô era agricultor, no
Canadá, e quando começou a trabalhar na sua quinta tinha cavalos. Não
tinha eletricidade, não havia telefones, aviões ou água corrente. E pela
altura em que se reformou, pelos 70 anos, já tudo isso estava presente.
No seu tempo de vida houve mudanças maiores do que no meu. E, ainda
assim, a economia e as pessoas adaptaram-se. Acho que somos
razoavelmente bons a adaptarmo-nos a mudanças tecnológicas desde que a
força global da economia seja boa. Quando o desempenho da economia é
pobre, como aconteceu na maioria dos países europeus desde o início do
século, a mudança tecnológica é mais difícil, as pessoas ficam muito
preocupadas com o emprego e parece não haver caminho para a frente. Se
as condições macroeconómicas forem um pouco melhores na Europa, acho que
isso provavelmente irá aliviar o impacto desta questão. Estou menos
preocupado com a capacidade global da economia em adaptar-se. Mas os
empregos vão mudar. Uma área que tem sido muito afetada e mudou
dramaticamente foi o negócio dos jornais, porque a publicidade mudou
para o digital e para a Google e o Facebook ficou com todo o dinheiro.
Esse é um sector extremamente afetado. Os jornalistas sofreram tanto nos
últimos 30 anos que acham que toda a economia está a ir pelo cano
abaixo.
Diz que se a economia tiver alguma
força, conseguirá adaptar-se às mudanças tecnológicas, mas há
trabalhadores que vão ser afetados …
Os
trabalhadores mais velhos e menos qualificados deverão enfrentar as
maiores dificuldades. E, infelizmente para Portugal, as gerações mais
velhas têm níveis educativos muito baixos. Há muitas pessoas na casa dos
50 anos que não têm sequer o ensino secundário. Mas, à medida que esse
grupo for saindo do mercado de trabalho e se reformar, a força de
trabalho será relativamente forte.
Com
transformações muito rápidas, a resposta terá de passar por uma efetiva
aprendizagem ao longo da vida. As empresas e o sistema educativo estão
preparados?
Quando falamos em aprendizagem ao longo
da vida, preocupamo-nos se as pessoas mais velhas conseguirão ir-se
adaptando às mudanças. Mas, a verdade é que aprenderam a usar um
telemóvel muito bem. É possível as pessoas aprenderem novas técnicas e
métodos. A área onde isso é mais difícil é provavelmente o sector
analítico, como análise de dados. Mas, se as empresas tiverem incentivos
para dar formação aos seus trabalhadores, as coisas correrão melhor.
Recentemente, nos Estados Unidos, a Amazon anunciou que vai gastar uma
quantia significativa – cinco ou seis mil dólares por trabalhador – para
treinar e retreinar um terço da sua força de trabalho. Ora, a Amazon
tem reputação de ser um empregador bastante mau. Se está a fazê-lo, isso
sugere que estão a sentir pressão no negócio. O sector logístico está a
expandir-se muito rapidamente. E proporciona um emprego relativamente
bom a pessoas que não têm muitas qualificações.
Como
antecipa a evolução das relações laborais? Caminhamos na direção da
chamada 'uberização' do trabalho, com relações laborais mais precárias e
de curta duração?
Essa é uma preocupação. Os
Estados Unidos estão muito à frente da Europa Ocidental nesta área,
porque os trabalhadores não têm muita proteção. A generalidade dos
trabalhadores individuais nos Estados Unidos não tem um contrato de
trabalho. Também não existe um salário mínimo nacional. Se pensarmos
neste tipo de questões e olharmos para os Estados Unidos, diria que é
basicamente tão mau quanto pode ficar. No Reino Unido também é bastante
mau. Outra coisa que é verdade para ambos os países é que existe um
grande sector informal. Em Portugal existe também a questão dos recibos
verdes, que afeta uma parcela significativa dos trabalhadores mais
jovens. Eles já estão a sentir a maioria destes problemas.
É uma tendência que vai aumentar no futuro?
Ainda
é uma interrogação. Nesta altura, o mercado de trabalho nos Estados
Unidos está bastante bom, nomeadamente para os jovens. Há 10 anos estava
terrível, mas, agora, os empregadores estão a melhorar as condições
para os jovens trabalhadores.
Porque estão a fazer isso?
Acho
que os empregadores não darão nada sem terem incentivos para isso. Se
puderem contratar todos os trabalhadores que quiserem, com baixos
salários e sem terem de lhes dar formação, não vão preocupar-se. Mas,
assim que começar a ser difícil recrutar, começamos a ver alguns ganhos
para os trabalhadores. Mas, tem sido surpreendente nos Estados Unidos
como os salários têm crescido devagar. Mesmo havendo muitos empregos e
de a maioria das empresas dizer que está à procura de trabalhadores, os
salários reais não aumentam há muito tempo.
E em Portugal, como vê a questão dos salários?
Estou
a trabalhar num projeto de investigação usando dados para Portugal dos
Quadros de Pessoal [que abrangem o universo empresarial privado e
público], com uma economista portuguesa, Ana Rute Cardoso. É verdade
que, em média, os salários não estão a crescer muito. Mas, Portugal não
teve as reduções salariais para trabalhadores menos qualificados que
outros países tiveram, como a Alemanha, ou os Estados Unidos. Na
Alemanha, nos anos 90 do século XX, se consideramos os 25% de
trabalhadores que ganham menos, os salários ajustados pelo custo de vida
caíram 20%. Em Portugal, os salários não caíram e, de repente, as
empresas germânicas da indústria automóvel podiam contratar alemães a
menor custo. Portugal foi poupado desses grandes ajustamentos salariais.
Claro que isso pode ter colocado outros problemas, como a
deslocalização de empresas
Está a falar de que período?
Desde
o ano 2000 até aos dias de hoje. Hoje, os salários reais não são muito
mais altos, nem mais baixos, do que eram em 2000. Estão no mesmo
patamar. Como Portugal está no euro, isso significa que os salários
reais em comparação com o resto da Europa estiveram relativamente
constantes. Mas, em muitos outros países europeus caíram. Acho que isso
ainda será um problema para os próximos anos.
Refere-se aos salários em geral ou só os mais baixos?
Mais baixos e médios.
A nível global, como vê a tendência de evolução dos salários na próxima década ou duas?
Os
salários não aumentam em termos reais há muito tempo e quaisquer que
sejam as forças estruturais que estão a refreá-los, diria que vão
persistir.
Tem havido muita discussão sobre essa questão. Tem-se falado na integração da China na economia mundial, na automação…
É
verdade. Mas, é preciso lembrar que os salários já subiram muito na
China. Os salários mais baixos já não estão lá, mas em países muito mais
pobres, como o Vietname. Haverá uma continuação destas forças, mas se
vão persistir durante 20 anos, não sei. Acho que as oportunidades para
os trabalhadores mais jovens vão melhorar se as condições
macroeconómicas permanecerem como estão ou melhorarem. Mas, estou
nervoso em relação às condições macro, porque as coisas parecem estar a
abrandar. Se tivermos outra recessão, os Estados Unidos estão em péssima
forma para lidar com isso. Um velho amigo meu que é economista do
trabalho em Harvard, Richard Freeman, costuma dizer que os economistas
do trabalho estão sempre a falar em ajustar salários, mudança
tecnológica, mas a realidade é que o quadro macroeconómico é muito mais
importante. E isso é verdade para a próxima década ou duas. Se tivermos
outra grande recessão, nada do que temos falado interessará. Iria
reverter 20 anos de progressos.
Falando sobre flexibilidade na organização de tempo de trabalho e duração do tempo de trabalho, como vê o futuro?
Na
América do Norte, em termos comparativos, as pessoas trabalham muito
mais horas. Especialmente os 25% de trabalhadores com salários mais
elevados. Contudo, há uma tendência intrigante nos Estados Unidos: em
média, as pessoas não estão a trabalhar mais horas e, de facto, os
trabalhadores menos qualificados até estão a sair da força de trabalho
de forma bastante substancial. Em parte estão a ser apoiados pelas
famílias, outra parte poderá estar a ir para o trabalho informal. Se
esta tendência se espalhar para outros países, será muito complicado. A
maioria dos países europeus conseguiu, desde a crise, aumentar bastante a
força de trabalho. Mas, isso não aconteceu nos Estados Unidos, a força
de trabalho está a aumentar muito lentamente e estamos muito abaixo de
onde estávamos. E os americanos ainda não perceberam isso. Contudo, se
olharmos para os 25% de trabalhadores que ganham mais, essas pessoas
estão a trabalhar um número extraordinariamente longo de horas e muito
mais longo do que há 30 anos. Parte disto é impulsionado pela
tecnologia, porque podem trabalhar a partir de casa. Ao fim de semana,
por exemplo. Outro lado da questão é que as recompensas nos Estados
Unidos para estes trabalhadores são muito elevadas, porque os impostos
são baixos, sobretudo para as pessoas com rendimentos elevados.
É uma tendência que antecipa para o futuro?
Sim,
é possível que esta tendência se espalhe. As pessoas com salários mais
elevados podem ser solicitadas a trabalhar durante muito mais horas e
ser esperado que o façam. O que pode ser disruptivo para a sua vida
familiar. Mas, noutros países, as pessoas passam muito mais tempo com as
famílias do que nos Estados Unidos. Pode haver também aqui uma questão
de as pessoas usarem o trabalho como substituto da vida familiar.
Vamos assistir a fronteiras mais ténues entre vida profissional e privada, entre local de trabalho e casa?
Sim.
E isso está a tornar-se num enorme problema para as mulheres muito
qualificadas nos Estados Unidos. A maioria das minhas colegas na
Academia está muito preocupada, porque veem que para terem sucesso têm
de trabalhar 50 ou 60 horas por semana. Isto coloca-as em desvantagem em
relação aos homens. Há centenas de artigos na imprensa de negócios
americana sobre como as gestoras estão infelizes em relação ao
equilíbrio entre trabalho e família. Acho que esta tendência vai
continuar. Há um problema relacionado, muito severo: as pessoas estão a
atrasar cada vez mais o casamento e os filhos. Em parte isto é o reflexo
destas pressões no emprego. As pessoas não querem tirar tempo e ter
filhos até avançarem na carreira, porque têm a perceção de que a partir
daí será muito mais difícil progredirem. Acho que estas questões serão
cada vez mais importantes.
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