Nos
cem anos do nascimento do autor de “Se Isto é um Homem”, o Expresso
conversou com Fabio Levi, historiador e diretor do Centro de Estudos
Primo Levi, de Turim
Entrevista Luciana Leiderfarb
Fabio
Levi é professor de História Contemporânea na Universidade de Turim. E é
diretor, desde 2009, do Centro Internacional de Estudos Primo Levi, que
investiga o legado do escritor. No ano em que se celebra o seu
centenário, o autor de “Se Isto é um Homem” mantém uma poderosa
atualidade, não só por ter partilhado o seu testemunho sobre Auschwitz,
como por tê-lo aprofundado ao longo da vida.
Nascido
a 31 de dezembro de 1919, em Turim, Primo Levi foi deportado para
aquele campo de concentração alemão em 1944, ali permanecendo durante
onze meses, os últimos da II Guerra Mundial. Judeu italiano, judeu do
Piemonte, químico de formação e de profissão, trabalharia três décadas
na fábrica de tintas Siva, que chegou a dirigir. Numa Europa onde a
maioria dos sobreviventes se remetia ao silêncio, a experiência do Lager
tornou-o escritor. Levi contou uma e outra vez a sua experiência, e
nunca da mesma maneira, ao ponto de, em 1986, no seu derradeiro livro,
“Os que Sucumbem e os que se Salvam”, a ter abordado com o intuito “mais
ambicioso” de perguntar se o mundo dos campos de concentração está
morto e se não irá regressar. “Além da nossa experiência individual,
fomos coletivamente testemunhos de um acontecimento fundamental e
inesperado. Ocorreu contra todas as previsões: incrivelmente, na Europa,
aconteceu que um povo inteiro civilizado, saído do fervilhante
florescimento cultural de Weimar, seguisse a um ator cuja figura hoje
causa o riso; e, no entanto, Adolf Hitler foi obedecido e louvado até à
data da sua catástrofe. Aconteceu e, por isso, pode voltar a acontecer:
isto é a essência do que temos para dizer”, lê-se no final do volume.
Primo Levi suicidou-se em abril de 1987, um ano depois de o publicar.
De
visita a Lisboa, para a apresentação no Instituto Italiano de Cultura
do documentário “Primo ufficio dell’uomo: I mestieri di Primo Levi” –
encomenda do Centro Internacional de Estudos Primo Levi –, Fabio Levi
conversou com o Expresso sobre a vida e a obra do escritor.
Que leitura podemos hoje fazer da obra de Primo Levi?
Primo
Levi fala às novas gerações, isto por três razões. A primeira é que faz
um grande esforço de verdade, de contar o que realmente aconteceu. A
segunda força de Levi está na sua sensibilidade moral, abordando
questões que tocam diretamente a consciência do interlocutor. A terceira
força é a sua habilidade de escritor que, como todos os grandes, fala
para as gerações seguintes. Primo Levi é um grande nome da literatura e
do pensamento contemporâneo, e tem uma capacidade de expressão que
supera todas as distâncias. Estes três aspetos ajudaram-no a transmitir
não uma mensagem, mas uma experiência que deve ser aprofundada. Na
introdução a “Se Isto é um Homem”, ele diz que, mais do que contar o que
se passou, pretendeu raciocinar sobre alguns aspetos do espírito
humano. A experiência da deportação serve para a levantar problemas,
para colocar perguntas. Para obrigar o interlocutor a pensar.
Nessa introdução refere-se à “infeção latente” presente em certos discursos que estão, de novo, na ordem do dia na Europa.
Sim.
Vemo-los na Europa, mas sobretudo na nossa vida. Não é possível fazer
uma distinção clara entre os problemas gerais do mundo e os problemas
particulares dos indivíduos. Mesmo assim, Levi fez o esforço – e nisto é
original – de falar sobre o homem comum. Ele disse, por exemplo, que no
Lager não encontrou monstros, mas pessoas normais, como você e como eu,
que sob certas condições cometeram delitos horríveis. Disse que todos
somos potencialmente capazes de comportar-nos daquele modo.
Hoje assistimos a uma crescente ignorância sobre o que aconteceu há 70 anos. Como historiador, isso preocupa-o?
Não
devemos esquecer que, durante 50 anos, a Europa não quis olhar para a
Shoah. Só na década de 80 é que se começou a falar difusamente do
Holocausto e do extermínio ocorrido na II Guerra. Temos nas costas um
esquecimento muito pesado: os 70 anos são na verdade 30, saltou-se uma
geração. Os filhos dos protagonistas da guerra praticamente não
estiveram envolvidos numa reflexão sobre aquela tragédia. Hoje volta a
haver uma menor atenção em relação ao tema e é neste sentido que o ponto
de vista de Primo Levi se torna mais relevante.
Como
define a escrita de Primo Levi? Ele próprio se considerou um químico
que escrevia nas horas vagas – e a sua obra tem essa marca de clareza e
de objetividade.
Reconduzir tudo à sua formação em
química é limitador. Mas a grande precisão e a curiosidade pelo que o
rodeava deveram-se obviamente a essa bagagem de químico. O primeiro
relato sobre Auschwitz foi um texto a que podemos chamar de científico,
escrito no campo de trânsito de Katowice, a pedido dos russos – e cujo
título era “Relatório sobre as condições higiênico-sanitárias do campo
de concentração de Monowitz”. Aqui, ele fez uma descrição analítica da
realidade do campo, das suas condições concretas. “Se Isto é um Homem” é
um livro muito diferente, que tem dentro de si muitos registos. Reúne a
sua experiência pessoal, o pensamento e as sensações. Em certos
momentos, inclui retratos aproximados, como se Levi fizesse um zoom
sobre alguém ou sobre alguma situação.
E o humor, a ironia?
A
ironia é uma constante na sua prosa. Se se pensar que o livro foi
escrito quando ele tinha 27 anos, e que a experiência de Auschwitz
remonta aos seus 24, 25 anos, vemos até que ponto isto foi
extraordinário. Tinha de ser um escritor inato. Porém, a figura de
testemunho apagou todo o resto. Determinou que o seu lado de pensador
capaz de refletir sobre as questões da contemporaneidade tivesse um
reconhecimento mais lento. É interessante verificar que, em quase todos
os países onde está traduzido, a primeira tradução tenha sido a de “Se
Isto é um Homem”, seguido de “A Trégua” e, por fim, de “Os que Sucumbem e
os que se Salvam” – a trilogia de Auschwitz, de que o último volume foi
escrito em 1986, 40 anos depois do primeiro. Curiosamente, nos Estados
Unidos, a ordem foi outra. Ali, Levi foi “O Sistema Periódico” que o
tornou famoso, e não “Se isto é um Homem”, que já estava traduzido desde
1959. Mas é uma exceção.
Quando a guerra acaba, Primo Levi passa por outra guerra, a do sobrevivente. Essa condição acompanhou-o para sempre?
Ao
voltar, ele sentia uma grande necessidade de falar. Contava tudo,
parecia um louco. Então alguém lhe perguntou por que não escrevia. E ele
escreveu “Se isto é um homem”. Sentiu-se imediatamente aliviado. Porém,
à medida que os anos passavam, a sua relação com essa experiência
sofreu transformações. Levi continuou a falar dela, em particular, nas
conversas que começou a dar nas escolas, no início dos anos 60, quando
nenhum dos seus companheiros de deportação falava do assunto. Estes
diálogos com os jovens ajudaram-no a contar melhor o que se tinha
passado. Ao ponto de, em 1976, juntar a “Se isto é um homem” um apêndice
com as respostas às perguntas mais frequentes que lhe eram feitas nas
escolas. Nesse apêndice, ele diz textualmente: “Correndo o risco de
parecer cínico, devo admitir que não sofro mais como sofria”.
O sofrimento transformou-se em reflexão?
Sim,
de certo modo. Se Auschwitz é uma referência permanente, ele vai
modificando o seu olhar. O último livro, “Os que Sucumbem e os que se
Salvam”, é de novo sobre Auschwitz, embora de um ponto de vista mais
amadurecido: relata o resultado das suas reflexões 40 anos depois da
deportação. Ao mesmo tempo, Levi ocupou-se de muitas outras coisas.
Abordou o problema do trabalho, interessou-se pelo mundo animal, pela
natureza, pela linguagem. Era um curioso sério.
Em
1987, o ano em que morreu, Levi chegou a comentar a realidade do
revisionismo histórico na Alemanha. Que efeitos teve nele esta
realidade?
Ele sempre se perguntou como é que foi
possível os alemães fazerem que fizeram. Em 1947, quando escreveu “Se
Isto é um Homem”, não sabia exatamente a quem estava a dirigir-se. Em
1958, a Einaudi fez uma segunda edição e, nessa altura, Levi disse que
tinha finalmente percebido para quem é que o escrevera. E escrevera-o
para os alemães, para que estes soubessem o que havia acontecido. Este
reconhecimento coincide com a proposta de tradução do livro para a
língua alemã, feita por um seu contemporâneo que tinha estado na
resistência italiana contra os nazis. E com quem discute a tradução
animadamente, frase a frase, ao longo de um ano inteiro. Em 1961, o
livro é publicado na Alemanha e Levi recebe numerosas cartas de alemães a
interpelá-lo. Ele fala sobre esta correspondência no último capítulo de
“Os que Sucumbem e os que se Salvam”, em 1986, onde diz que se deparou
com um estranho paradoxo: foram os alemães inocentes, e não os culpados,
aqueles que lhe escreveram a desculpar-se pelo que aconteceu na
Alemanha. Ele tentou sempre compreender os alemães, mas nunca o
conseguiu.
Como é que Primo Levi encarava o judaísmo?
Ele
era um judeu italiano. E estes judeus nos anos 30 estavam muito bem
integrados na sociedade — muitos deles estavam a caminho da assimilação.
Ele mesmo chegou a afirmar que, quando era novo, ser judeu era “uma
anomalia alegre”. Como os restantes judeus italianos, foi obrigado a
sentir-se judeu a partir do início da perseguição, em 1938. Mais tarde, a
sua relação com o judaísmo modificou-se. Levi manteve-se ateu, mas
começou a estudar e a refletir sobre a sua cultura de origem, a escrever
sobre os seus antepassados. O primeiro conto de “O Sistema Periódico” é
uma descrição irónica e precisa do mundo do qual provinha, o mundo
judaico piemontês, e dá uma atenção extrema à língua, ao dialeto daquele
grupo, que era pequeno ainda que com raízes fortes na sociedade
piemontesa dos anos 50 para a frente.
Diz que a
perseguição marca a relação de Primo Levi com o judaísmo. E no Lager
encontra também um outro mundo judaico, o da Europa central e oriental.
Com
o tempo, o Lager acaba por ser um estímulo para Levi estudar o mundo
judaico fora da Itália, que ele conhecia muito mal. Em Auschwitz, tinha
sido confrontado com um tipo de judaísmo completamente diferente – o
asquenaze, os judeus polacos, alemães, russos. Os judeus da Itália
desconheciam aquele mundo, da mesma forma que este também não sabia
sequer que existiam judeus italianos! Em “La Trégua”, o livro onde Levi
narra a longa viagem de regresso à Itália no pós-guerra, há uma passagem
divertida, em que ele e os amigos italianos encontram umas raparigas
polacas. Como eles não dominam o iídiche, elas não acreditam que também
são judeus.
Há dias, disse numa entrevista que falar sobre o Holocausto é cada vez mais difícil. Porquê?
Porque
o tempo passa e as testemunhas diretas já cá não estão. Porque o mundo
muda, a cultura se transforma e as pessoas estão muito mais atentas ao
presente do que ao passado. Durante muito tempo, no século XIX e mesmo
no século XX, a ideia de progresso ligou o passado ao futuro. Hoje, os
jovens evitam olhar para o futuro. Têm a sensação de que provavelmente o
futuro não será melhor do que o presente. E quem olha pouco para o
futuro, é menos atento ao passado.
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