Consigo
ver no filme sobre António Variações algumas falhas, buracos e
excessos. Mas o filme consegue, e isso é o mais difícil quando se tem
como objeto uma figura icónica, aproximar-se da incrível força de
Variações. Fazendo a opção inteligente de se concentrar em António
Ribeiro quando ainda buscava a fama e em músicas menos conhecidas do
grande público. A honestidade é o maior valor do filme a que a incrível
representação de Sérgio Praia deu uma enorme ajuda. Todas as aventuras e
desventuras para chegar a um filme cujo argumento foi escrito há 15
anos valeram a pena. E era facílimo transformar Variações num
pechisbeque. Vejam a estopada filmada sobre Freddy Mercury (não vi
“Rocketman”) e percebam como. A forma contida e comovente como a relação
entre o cantor e Fernando Ataíde é tratada explica-nos porque é que
este filme é bom e podia não ser.
Mas
não é para fazer crítica de cinema que escrevo este texto. Nem sequer
crítica musical. Devo esclarecer, já o escrevi noutra ocasião, que não
percebi António Variações quando ele apareceu. Aquilo não encaixava na
erudição, ou no ativismo político ou numa vanguarda que eu pudesse
reconhecer. Nem era óbvio que fosse música popular. A incompreensão da
minha parte não resultava, acho eu, de qualquer preconceito consciente.
Eu era de uma família tipicamente comunista e, para desconforto geral,
gostava de touradas, fado e Amália. Estava moderadamente disponível para
fugir das minhas origens. As letras eram evidentemente boas, a música
era incompreensível ao meu ouvido e o aspeto de Variações não se
percebia se era arrojado, ou kitsch, ou as duas coisas. Em minha defesa,
tinha apenas 12 anos quando Variações apareceu pela primeira vez na
televisão. Com essa idade ainda não se é dado a subtilezas ou
contradições. Quando cheguei à juventude, infelizmente já depois da
morte de Variações, percebi finalmente o fenómeno extraordinário a que
tínhamos brevemente assistido. António Variações foi um dos poucos
portugueses que se estrangeirou sem ficar provinciano.
Existe
uma enorme confusão entre cosmopolitismo e uniformização. Não há nada
de cosmopolita nas baixas das cidades cada vez mais iguais, com as
mesmas lojas, os mesmos sons, os mesmos cafés trendy e a mesma comida
gourmet. O que torna uma cidade cosmopolita é o encontro com o exterior,
não é a absorção passiva do que vem “de fora”. E é por isso que a
definição da localização de António Variações não poderia ser mais feliz
do que a encontrada no título da biografia escrita por Manuela Gonzaga –
“entre Braga e Nova Iorque”. A expressão foi do próprio, quando, numa
gravação, o produtor lhe perguntou como queria que a sua música soasse.
António Variações tornou-se um ícone pop nacional porque a sua
transgressão se socorria de um imaginário familiar ao povo português, de
que toda a iconografia religiosa era o exemplo mais evidente e, na
minha adolescência, o mais difícil perceber. Variações trazia o que se
assemelhava à modernidade “lá de fora” sem arrasar o que muitos achavam
sinal do atraso nacional, fosse a religião ou a Amália. E isso era,
naquela altura, tremendamente transgressor.
António
Variações tornou-se um ícone pop nacional porque a sua transgressão se
socorria de um imaginário familiar. Depois da estética conservadora
salazarenta e da estética conservadora revolucionária, ele era uma outra
coisa. É o cosmopolitismo sem vergonha das raízes profundas nas suas
origens que fez dele o que era Amália: a voz de todos nós. De um país
que mudou para sempre
António
Variações representou, como provavelmente mais ninguém, o início dos
anos 80 portugueses. O período em que o país já não era uma coisa e
ainda não era outra. Já não era o país tacanho e isolado de antes do 25
de Abril, também já não era o país tomado pela militância política
revolucionária quotidiana, mas ainda não era o país normalizado, em que o
encontro com o exterior já está devidamente franchisado pelo comércio.
Se Salgueiro Maia se transformou, pelo menos no imaginário popular, no
símbolo da nossa libertação política, António Variações pode ser
justamente transformado num símbolo da nossa libertação cultural.
Depois
da estética conservadora salazarenta e da estética conservadora
revolucionária, ele era uma outra coisa. Representa o regresso às raízes
já limpas do bolor da ditadura. Os festivais da canção do pós-25 de
Abril reinventaram, com sonoridades semelhantes e letras opostas, o país
de que nos queríamos libertar. A música popular desempenhava o mesmo
papel doutrinador e uniformizador. Já Variações podia cantar Amália e
ser protegido por “anjos da guarda” porque ele próprio era um
transgressor. Ninguém o conseguia identificar. Eu, com 13 anos, não era
capaz. A liberdade pela qual gritava era diferente da que cantavam os
baladeiros esquerdistas: era o que nos permitiria, sem uma nação para
defender ou uma revolução para fazer, entregarmo-nos à “aventura dos
sentidos”.
António Variações
também representa a chegada de um “orgulho gay” ainda não politizado
mas totalmente desenvergonhado. Não apenas tolerado, como uma
curiosidade que se deixa na vida privada, mas associado a uma estética
verdadeiramente transgressora. Transgressora como inevitavelmente, e
talvez felizmente, deixaria de ser quando ganhou o direito à sigla LGBT,
a constar em estudos académicos e a ter justas aspirações jurídicas.
Como acontece com todos os movimentos, sejam políticos ou culturais, o
momento mais criativo e interessante acontece antes da sua
institucionalização.
Mas o
contraste entre Variações e Ary dos Santos, que aparece não sei se
inadvertidamente num breve momento do filme, é entre o transgressor
privado tolerado pela revolução por ser um bom camarada e o transgressor
descarado que o é tal que se pode apropriar de todo o imaginário
apreciado pelo país conservador para lhe dar espalhafatosas cores. E
fá-lo sem grande teorias, apenas porque o encontro entre Braga e Nova
Iorque, entre a sua aldeia e o Príncipe Real, resulta nisso mesmo.
Variações não foi uma proposta de abertura do país, foi uma das suas
primeiras consequências. E é por representar fielmente esse instantâneo
em que Amália Rodrigues conheceu Bowie e Joy Division que Variações é
único e irrepetível. É o cosmopolitismo sem vergonha das raízes
profundas nas suas origens que fez dele o que era Amália: a voz de todos
nós. De um país que mudou para sempre.
com a devida vénia ao Expresso Diário
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