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quarta-feira, 28 de agosto de 2019



Antes pelo contrário
Antes pelo contrário
Daniel Oliveira
Variações de Portugal

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Consigo ver no filme sobre António Variações algumas falhas, buracos e excessos. Mas o filme consegue, e isso é o mais difícil quando se tem como objeto uma figura icónica, aproximar-se da incrível força de Variações. Fazendo a opção inteligente de se concentrar em António Ribeiro quando ainda buscava a fama e em músicas menos conhecidas do grande público. A honestidade é o maior valor do filme a que a incrível representação de Sérgio Praia deu uma enorme ajuda. Todas as aventuras e desventuras para chegar a um filme cujo argumento foi escrito há 15 anos valeram a pena. E era facílimo transformar Variações num pechisbeque. Vejam a estopada filmada sobre Freddy Mercury (não vi “Rocketman”) e percebam como. A forma contida e comovente como a relação entre o cantor e Fernando Ataíde é tratada explica-nos porque é que este filme é bom e podia não ser.
Mas não é para fazer crítica de cinema que escrevo este texto. Nem sequer crítica musical. Devo esclarecer, já o escrevi noutra ocasião, que não percebi António Variações quando ele apareceu. Aquilo não encaixava na erudição, ou no ativismo político ou numa vanguarda que eu pudesse reconhecer. Nem era óbvio que fosse música popular. A incompreensão da minha parte não resultava, acho eu, de qualquer preconceito consciente. Eu era de uma família tipicamente comunista e, para desconforto geral, gostava de touradas, fado e Amália. Estava moderadamente disponível para fugir das minhas origens. As letras eram evidentemente boas, a música era incompreensível ao meu ouvido e o aspeto de Variações não se percebia se era arrojado, ou kitsch, ou as duas coisas. Em minha defesa, tinha apenas 12 anos quando Variações apareceu pela primeira vez na televisão. Com essa idade ainda não se é dado a subtilezas ou contradições. Quando cheguei à juventude, infelizmente já depois da morte de Variações, percebi finalmente o fenómeno extraordinário a que tínhamos brevemente assistido. António Variações foi um dos poucos portugueses que se estrangeirou sem ficar provinciano.
Existe uma enorme confusão entre cosmopolitismo e uniformização. Não há nada de cosmopolita nas baixas das cidades cada vez mais iguais, com as mesmas lojas, os mesmos sons, os mesmos cafés trendy e a mesma comida gourmet. O que torna uma cidade cosmopolita é o encontro com o exterior, não é a absorção passiva do que vem “de fora”. E é por isso que a definição da localização de António Variações não poderia ser mais feliz do que a encontrada no título da biografia escrita por Manuela Gonzaga – “entre Braga e Nova Iorque”. A expressão foi do próprio, quando, numa gravação, o produtor lhe perguntou como queria que a sua música soasse. António Variações tornou-se um ícone pop nacional porque a sua transgressão se socorria de um imaginário familiar ao povo português, de que toda a iconografia religiosa era o exemplo mais evidente e, na minha adolescência, o mais difícil perceber. Variações trazia o que se assemelhava à modernidade “lá de fora” sem arrasar o que muitos achavam sinal do atraso nacional, fosse a religião ou a Amália. E isso era, naquela altura, tremendamente transgressor.
António Variações tornou-se um ícone pop nacional porque a sua transgressão se socorria de um imaginário familiar. Depois da estética conservadora salazarenta e da estética conservadora revolucionária, ele era uma outra coisa. É o cosmopolitismo sem vergonha das raízes profundas nas suas origens que fez dele o que era Amália: a voz de todos nós. De um país que mudou para sempre
António Variações representou, como provavelmente mais ninguém, o início dos anos 80 portugueses. O período em que o país já não era uma coisa e ainda não era outra. Já não era o país tacanho e isolado de antes do 25 de Abril, também já não era o país tomado pela militância política revolucionária quotidiana, mas ainda não era o país normalizado, em que o encontro com o exterior já está devidamente franchisado pelo comércio. Se Salgueiro Maia se transformou, pelo menos no imaginário popular, no símbolo da nossa libertação política, António Variações pode ser justamente transformado num símbolo da nossa libertação cultural.
Depois da estética conservadora salazarenta e da estética conservadora revolucionária, ele era uma outra coisa. Representa o regresso às raízes já limpas do bolor da ditadura. Os festivais da canção do pós-25 de Abril reinventaram, com sonoridades semelhantes e letras opostas, o país de que nos queríamos libertar. A música popular desempenhava o mesmo papel doutrinador e uniformizador. Já Variações podia cantar Amália e ser protegido por “anjos da guarda” porque ele próprio era um transgressor. Ninguém o conseguia identificar. Eu, com 13 anos, não era capaz. A liberdade pela qual gritava era diferente da que cantavam os baladeiros esquerdistas: era o que nos permitiria, sem uma nação para defender ou uma revolução para fazer, entregarmo-nos à “aventura dos sentidos”.
António Variações também representa a chegada de um “orgulho gay” ainda não politizado mas totalmente desenvergonhado. Não apenas tolerado, como uma curiosidade que se deixa na vida privada, mas associado a uma estética verdadeiramente transgressora. Transgressora como inevitavelmente, e talvez felizmente, deixaria de ser quando ganhou o direito à sigla LGBT, a constar em estudos académicos e a ter justas aspirações jurídicas. Como acontece com todos os movimentos, sejam políticos ou culturais, o momento mais criativo e interessante acontece antes da sua institucionalização.
Mas o contraste entre Variações e Ary dos Santos, que aparece não sei se inadvertidamente num breve momento do filme, é entre o transgressor privado tolerado pela revolução por ser um bom camarada e o transgressor descarado que o é tal que se pode apropriar de todo o imaginário apreciado pelo país conservador para lhe dar espalhafatosas cores. E fá-lo sem grande teorias, apenas porque o encontro entre Braga e Nova Iorque, entre a sua aldeia e o Príncipe Real, resulta nisso mesmo. Variações não foi uma proposta de abertura do país, foi uma das suas primeiras consequências. E é por representar fielmente esse instantâneo em que Amália Rodrigues conheceu Bowie e Joy Division que Variações é único e irrepetível. É o cosmopolitismo sem vergonha das raízes profundas nas suas origens que fez dele o que era Amália: a voz de todos nós. De um país que mudou para sempre. 


com a devida vénia ao Expresso Diário 


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