Mão de ferro, mão de vaca
O
que se passa no sindicato dos motoristas de matérias perigosas
representa, como escrevi na semana passada, a privatização do
sindicalismo, com a contratação de um mercenário para dirigir uma luta
laboral. E é o facto de ser mercenário que determina a sua urgência e
irresponsabilidade. A marcação de uma greve está sempre associada a uma
ética sindical (estranha a este charlatão), com critérios de
proporcionalidade. Não se marca uma greve por tempo indeterminado que
faria todo o país entrar em colapso por causa de um aumento em 2021, só
porque as eleições são um momento propício. Uma greve destas é de vida
ou de morte, como foi a dos mineiros ingleses que lutavam pela sua
sobrevivência, nos anos 80. Todas as greves prejudicam pessoas, mas o
sindicalismo que desiste de ganhar a solidariedade dos outros
trabalhadores parte derrotado. A desproporcionalidade desta greve, não
retirando justiça às suas reivindicações, deu espaço ao Governo para
impor serviços mínimos pesadíssimos e uma requisição civil (instrumento
criado em 1974 para impedir que a irresponsabilidade sabotasse a jovem
democracia) previamente decidida como primeiro recurso e aplicada ao fim
de 19 horas de greve. Um governo de direita não deixará de aproveitar
este precedente. O sindicalismo, quando fica na mão de irresponsáveis,
enfraquece-se. E fraco, não resiste cinco dias a um cerco.
Mas
os efeitos perversos também são para o Governo. Marques Mendes disse
que isto talvez venha a dar a maioria absoluta a António Costa. Porque
ele surge como líder de um “governo da ordem e da autoridade”. Isto
junta-se à imagem do “governo das contas certas”, que atrasa a
recuperação de serviços públicos e prepara mais uma década de contração
no investimento do Estado para ultrapassar as metas da ortodoxia de
Bruxelas. Imagino que muitos socialistas esfreguem as mãos de contentes:
estão a roubar espaço à direita. É a mesma ilusão que Blair ou Schröder
alimentaram antes de destruírem o centro-esquerda europeu. Um governo
de esquerda que constrói a sua autoridade política com base na “mão de
ferro” contra os sindicatos — já usara a polícia, sem qualquer
justificação, contra os estivadores — e na “mão de vaca” no investimento
público pode ganhar muitos votos à direita, mas está a derrotar o seu
campo político. A esquerda pode ter de usar a lei contra uma greve e
pode ter de fazer cortes no investimento. Mas quando transforma isso em
encenação de força, quando faz disso um gesto de propaganda política,
fica refém do que deveria ser o oposto da sua cultura. O problema não é o
comportamento do Governo, é sentir-se tão confortável neste papel. É,
como ficou óbvio para todos, desejá-lo.
Enquanto o
PS celebra os ganhos eleitorais, a direita ideológica pode cantar
vitória. De uma assentada, vê a balança da opinião pública pender contra
as lutas laborais e o PS assumir como sua a retórica disciplinadora dos
trabalhadores. Não pode desejar mais do que isto. A crise do PSD e do
CDS até se torna irrelevante. Eles deixam de ser necessários e podem ser
substituídos por projetos radicais que falem em nome dos trabalhadores,
puxando tudo mais para a direita. Foi assim que se destruiu a esquerda
europeia: dando-lhe o comando de políticas que lhe deviam ser estranhas.
O que tinha de estar a fazer toda a esquerda? A iniciar uma mudança
radical no sindicalismo, para o renovar, fortalecer e proteger de
oportunistas.
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