À
custa do ambiente, parece estar a desenhar-se a guerra fria do século
XXI, desta vez no sentido literal - a guerra dos direitos de passagem no
Ártico, que o degelo provocado pelas alterações climáticas torna cada
vez mais navegável. Além de abrir uma nova rota marítima, permitindo
reduzir semanas de viagem, trata-se também de um mar inexplorado de
recursos naturais e potencial foco de conflitos geoestratégicos
Texto Hélder Gomes
As
notícias sucedem-se a um ritmo diário e assustador. Uma das mais
recentes indica que neste momento o Alasca está livre de gelo. Mas se as
consequências das alterações climáticas tendem a fazer sombra sobre as
possibilidades de sobrevivência do ser humano no planeta, no curto e
médio prazos também abrem novas vias de exploração comercial. Isso é
especialmente verdade no caso do Ártico.
A Passagem
do Noroeste, o nome que se dá à via marítima acima do Círculo Polar
Ártico entre os oceanos Atlântico e Pacífico, aguça a sede de descoberta
desde o século XV. O rei D. Manuel I terá enviado Gaspar Corte-Real à
descoberta de “uma passagem noroeste para a Ásia”. O navegador chegou à
Gronelândia, no que pensou ser o continente asiático. Também os ingleses
Francis Drake e James Cook exploraram as águas do norte do Canadá.
No
entanto, foi só no início do século passado, em 1906, que o norueguês
Roald Amundsen chegou à costa pacífica do Alasca ao fim de três anos a
bordo de um pequeno veleiro. Se o fizesse hoje, encontraria uma via
aberta - e não mais as extensas camadas de gelo polar que durante
séculos tornaram aquela região do globo inexplorável. O fado do Ártico
parece estar escrito. Todos os anos, o oceano perde uma área de gelo
maior do que a Escócia, nota o jornal “The Independent”.
MAIS ZONAS LIVRES DE GELO POR MAIS TEMPO
À
medida que o gelo derrete, abrem-se novos canais de navegação. As
calotas polares encolhem a uma cadência regular. As mantas outrora
titânicas de gelo deixam a nu uma nova topografia no “cimo” do mundo.
Os
navios passam a ter o caminho desimpedido para viagens mais curtas do
que as oferecidas pelas rotas dos canais do Suez e do Panamá, para já
não falar das que contornam os continentes africano ou americano.
O
Ártico é a porta de entrada para três rotas: além da Passagem do
Noroeste, há a Passagem do Nordeste, ou Rota Marítima do Norte, e a Rota
Marítima Transpolar. Esta é a mais curta mas, por ora, também a mais
inviável. A Passagem do Nordeste é a mais comercialmente viável das
três. Centenas de autorizações de navegação estão ser emitidas para esta
rota quando, no início da década, não havia praticamente nenhuma.
O
aumento das passagens no Ártico cresce a um ritmo lento mas estável,
com embarcações de todos os tipos, incluindo navios de carga. O número
de viagens nas águas do Ártico canadiano quase duplicou em dez anos. E
tudo isto acontece devido aos verões mais quentes que levam ao degelo de
superfícies que antes estavam cobertas de gelo o ano todo. Em resumo:
há mais zonas livres de gelo e por mais tempo.
UMA OUTRA GUERRA FRIA
Além
da óbvia fatura ambiental que este admirável mundo novo, outrora gelado
e inóspito, representa, há desafios de segurança que se colocam num
Ártico que se impõe progressivamente como uma autoestrada marítima e um
centro de recursos naturais do futuro. O petróleo, o gás natural e os
recursos pesqueiros a explorar através da Passagem do Noroeste e da Rota
Marítima do Norte serão pontos de grande conflito geopolítico em breve,
estimam os especialistas.
A Rússia conhece bem as
oportunidades de desenvolvimento que o Ártico promete. O Presidente
Vladimir Putin considera aquele oceano uma via para consolidar o
estatuto do país como gigante energético. De resto, a Rússia parece
estar mais bem equipada, até psicologicamente, para vencer o grande
deserto gelado do que, por exemplo, os EUA. Por isso, os estrategas
norte-americanos de segurança aconselham Washington a coordenar-se com o
Canadá, a Dinamarca, a Islândia e a Noruega, todos aliados da NATO com
costas ao longo do Ártico.
Cerca de metade das
reservas pesqueiras dos Estados Unidos provém da zona económica
exclusiva até 320 quilómetros da costa do Alasca. Muitos dos outros
países do Ártico desenvolvem operações de pesca semelhantes, pelo que a
competição deverá intensificar-se de forma acentuada. Com as crises
alimentares que se adivinham no futuro, a pesca industrial tenderá a
deslocar-se para mais longe com vista a encontrar reservas mais
abundantes.
A NOVA FEBRE DO OURO
A
crescente viabilidade da Passagem do Noroeste gera desentendimentos
potenciais até entre aliados. O Canadá insistirá em que seja reconhecida
como parte das suas águas territoriais, enquanto os EUA deverão
preferir que se transforme numa hidrovia internacional. Moscovo continua
à espreita e, em parte motivada pela guerra comercial com Washington,
Pequim juntou-se-lhe na exploração do Ártico. Também o primeiro-ministro
indiano, Narendra Modi, está interessado nos recursos energéticos do
oceano, tendo sido convidado pela Rússia a presidir a uma mesa de debate
no Fórum Económico Oriental de Vladivostok, em setembro.
Se
é verdade que o Ártico se pode tornar o epicentro de uma febre do ouro
do século XXI, não o é menos que se trata do oceano mais desconhecido.
De facto, a humanidade já mapeou as superfícies da Lua e de Marte em
maior escala do que o fundo do Ártico. Estima-se que 30% dos
hidrocarbonetos não explorados possam esconder-se naquele oceano. Mas o
que era antes um destino sobretudo de embarcações militares e de
investigação promete transformar-se em breve num entreposto comercial,
com as implicações de pegada ecológica que isso acarreta. A batalha pelo
cimo do mundo parece, pois, seguir em contracorrente com a batalha pela
sobrevivência.
in Expresso Diário
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