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domingo, 27 de dezembro de 2020

 Alain Badiou / "Devemos tirar proveito deste interlúdio epidémico e até do isolamento – inteiramente necessário – para trabalhar em novas figuras da política, no projecto de novos locais da política, e no progresso transnacional de um terceiro estágio do comunismo após o brilhante momento de sua invenção e o (interessante, mas no limite derrotado) estágio de sua experimentação estatista." [...]

sexta-feira, 25 de dezembro de 2020

F. Engels e a Dialética da Natureza-Ensaio de Nozes Pires

 

CRÍTICA DA RAZÃO CONSENSUAL 

  F. Engels e a Dialética da Natureza

Prolegómenos- A Ontologia

A interrogação mais fundamental de todas as interrogações da razão humana foi desde sempre a seguinte: O que é a realidade? Em que devo acreditar? Filosoficamente: Qual a relação entre o Ser e o Pensamento?

A questão ontológica não é um ato gratuito e absurdo. É o ato supremo da Razão. É o começo da filosofia. Para afirmar certezas é necessário pensar. 

 Que entendo por Ser?

É tudo que não é puro constructo mental. A Natureza, os corpos, as coisas materiais. Suponha-se que o Ser é o Universo, então o Pensamento, ou parte dele (Espírito, Alma), seria, para alguns, algo completamente distinto, sobrenatural. Ora, todas as provas e indícios têm vindo a demonstrar que o Ser (Matéria) é a totalidade e nada se verificou existir para fora dela. O Pensar é uma atividade cerebral e social. É uma atividade, entre outras, conhecidas e desconhecidas, do universo (Matéria-Energia). Uma entre infinitas atividades. O universo é a única substância com infinitos atributos, atuais e possíveis. O universo material é o Todo, contém tudo e nada mais pode existir que não seja seu atributo. Em biliões de galáxias não existe seguramente apenas o pensamento humano. Sem este universo, nas condições em que se formou, se cria a se destrói, sem as estrelas que forneceram os ingredientes básicos da vida, sem as condições físicas que permitiram que neste pequeno planeta a vida sobrevivesse até hoje, o ser humano não existiria. Sabemos que a existência da nossa espécie é recente e que outras espécies se extinguiram.

Se hoje parece-me ser um erro muito pouco ingénuo afirmar-se o primado onto-gnosiológico (nalguns casos até a anterioridade) das ideias sobre a Matéria (ou Energia, Natureza), perante o quadro geral que as ciências nos oferecem, porque motivos grandes filósofos defenderam essa resposta? Entre outras razões pela ausência da Ciência e pela posição egocêntrica do filósofo. De resto, O pensar humano é espontaneamente antropocêntrico. Jugamo-nos oriundos doutra forja, quando, de facto, outras espécies, possuem dispositivos cerebrais próximos dos nossos. Vamos conhecendo os elos da longa cadeia que liga umas às outras, destronando a crença de que fomos iluminados subitamente por deuses alienígenas.

Foi e é um erro de determinadas conceções rejeitarem a Ontologia com o argumento de que é metafísica inútil. Deve-se abandonar o método metafísico de análise, mas não se pode fazer de conta que o problema ontológico não existe mais. A menos que se queira fazer passar a mensagem conformista de que “o que é, é, e não vale a pena questionar”. Para o marxismo, abandonar a Ontologia é abandonar o plano da Contradição imanente à realidade como um todo em devir.

Com certeza que a resposta que avancei acima às interrogações fundamentais não tem que ser a única (nem jamais o será), verdade absoluta. Ignorar a diferença é prova de fraqueza ou de arrogância. Queimar bibliotecas é uma pura abominação.

O filósofo M. Heidegger não começou (a questão principal no método está no começo) pelo Todo, pela Natureza cósmica, pelo seu primado criador, mas pelos significados que atribuiu à existência humana. Atribui-se um determinado sentido à existência humana, e é apenas isso que importa para a fenomenologia, corrente filosófica que se interessa apenas pela interpretação. Abandona-se a práxis.

Que corrente filosófica desprezou a ontologia? O positivismo. Seguir-se-ia uma larga parte dos estruturalistas e, por fim, da maioria dos chamados pós-modernos. Um célebre filósofo marxista, Altusser, fez confinar o materialismo dialético a uma teoria do conhecimento e nada mais. O propósito de muitos “pós-modernos” vai mais longe: foi, continua a ser, eliminar definitivamente a filosofia marxista, classificada como uma das “narrativas metafísicas” da Modernidade. A Filosofia é, assim, uma luta permanente entre tendências, “linhas” ou “partidos”. Materialismo versus idealismo. Essa luta exprime, quer veladamente quer não, opções políticas, teses teóricas com efeitos políticos. Martin Heidegger, por exemplo, que define o homem como “um Ser-para-a-sua-morte” porque é o único ente que imagina o seu futuro, questão sem dúvida alguma legítima e racional, envolveu-se com o nazismo e a sua filosofia posterior ficou marcada pela derrota. O modo como se interpreta a realidade é também político.

Tratamos até aqui da Ontologia e opomo-la ao método metafísico de explicar as coisas.

No começo temos dois caminhos à escolha:

 Começar pelo particular (o homem, o sujeito ou a subjetividade) ou pelo universal. Um ente singular ou o todo geral (o Ser).

Os inconvenientes do começo pelo Todo: sujeita-se à crítica de Kant (antinomias da Razão Pura) e não se permite ignorar a crítica de Heidegger à metafísica e de quase toda a filosofia contemporânea. Se, ao invés de Todo utilizar-se um conceito de Ser, encontramos um determinado conceito de Ser em Heidegger e em Deleuze.

O acerto: entenda-se o Todo como totalidade de totalidades; tudo que conhecemos até hoje do nosso universo (astrofísica, física quântica, etc.), a sua origem e o seu desenvolvimento; a história do nosso planeta; o desenvolvimento da matéria orgânica; as extinções de diversas e sucessivas formas de vida até ao aparecimento casual do homo sapiens. Argumento: Se ontologia significa “ O que é o Ser?”, esta é, julgo eu, a resposta mais conforme à Ciência: O Ser é todo este universo com a nossa galáxia e biliões delas, com o nosso planeta entre uma multidão incalculável de planetas, a matéria viva. Um Todo em movimento, com um começo e muito provavelmente um fim. O nada absoluto não é e o fim absoluto da Matéria também não.

Os inconvenientes do argumento pelo particular: nada é em absoluto singular; sem o geral não existe ciência; a parte é parte de algo maior; cada indivíduo é uma meada de relações com a natureza e a sociedade.

Vejamos: quem usa nomes como o de “Natureza”, é um ser dotado de linguagem e capaz de operações mentais. Os nomes do Ser (Natureza, Matéria, Universo) possuem todos os predicados fornecidos pela Ciência. A mente é parte inclusiva do corpo e, este, parte inclusiva do mundo natural e social. A mente reflete o mundo externo. As operações mentais e os comportamentos dependem das características adquiridas pela espécie, dos processos de socialização, da ação e dos modos como cada um assimila e organiza, dos papéis que desempenha e do lugar que ocupa numa determinada formação social.

Entre velhas e novas contradições, velhos e novos enigmas, a ciência prossegue o seu caminho rejeitando como mistificações, ilusões ou erros, as teses fundantes do idealismo de Platão e seus seguidores, tal como Galileu derrotou a física aristotélica. Não ficou tolhida com o empirismo absoluto de Berkeley, o inatismo cartesiano, o apriorismo de Kant, a Consciência Absoluta de Hegel. A Ciência move-se entre o erro e o acerto, os obstáculos que se lhes põem e as servidões que se lhes impõem. Decifram-se enigmas milenares. A melhor prova é a experimentação e a prática. Contudo, um reparo: se as soluções que grandes filósofos defenderam para a problemática ontológica não são mais admitidas (o mundo das ideias de Platão, as “provas” da existência de Deus e da imortalidade da alma, as ideias inatas, a realidade como sendo apenas aquilo que perceciono, as categorias kantianas a priori do entendimento), não nos permite que ignoremos a influência profunda que exerceram, sem eles o saber ficaria gravemente amputado. Muitos foram materialistas e cientistas. Proibindo-se a filosofia, livre expressão do pensamento, e a sua história, o resultado seria um retrocesso civilizacional para um mundo obscurantista e no qual seria venerada como verdade absoluta uma única doutrina. A história conheceu guias dos povos, mais distópicos que utópicos, que aplicaram a receita com as consequências assustadoras que conhecemos.

A resposta ao problema ontológico (materialismos/idealismos) transporta-nos inevitavelmente para o problema gnosiológico: o que conhece? Como se conhece? O materialismo implica necessariamente uma resposta: conhece-se a realidade material independente da nossa consciência; o conhecimento é um reflexo da realidade no cérebro, através, fundamentalmente, da mediação da práxis.

Das respostas às questões ontológica e gnosiológica dependem as posições que tomamos face à ética, à política e ao direito. Na política, por exemplo, a opção pelo materialismo dialético conduz necessariamente à conclusão, que parece evidente, de que a interpretação dos fenómenos não basta para os transformar. E quanto melhor uma teoria explicar o mundo melhores hão de ser os meios para o modificar.

A dialéctica da Natureza em discussão

 O livro  Dialéctica da Natureza, de F. Engels, é constituído por um conjunto de textos escritos para responder a situações políticas que exigiam a sua intervenção imediata. Imperativos políticos. Após a morte do seu grande amigo, Marx, Engels fica sozinho nesse combate de defender o movimento social-democrata alemão das tergiversações. O marxismo é hegemónico, adotado com sua ideologia pela II Internacional, o prestígio de Engels é enorme. Na realidade, porém, o marxismo ainda não se completara com uma ideologia comunista. Circulavam teorias heterogéneas no Movimento socialista, livros que pretendiam completar, corrigir ou mesmo atacar a teoria de Marx, teorias medíocres apresentadas como a última palavra sobre o socialismo. O Capital, de Marx, entretanto em publicação, não supre as necessidades teóricas do Movimento, pela dificuldade de leitura. Cientistas e outros menos divulgam apreciações que colidem com as convicções filosóficas de Engels. O Anti-Dühring , de Engels, é uma peça fundamental no seu combate contra o que entendeu serem teorias políticas perigosas e erróneas nos planos filosófico e científico: o empirismo, o naturalismo, o materialismo grosseiro, o positivismo. Posições que conduziam a desuniões e desviavam o Movimento das suas finalidades revolucionárias.

Contra os naturalismos” e os positivismos é preciso completar o edifício da filosofia marxiana. Com quê? Com uma filosofia da natureza. Na Dialética da Natureza Engels combate o método “metafísico”, opondo-lhe o método dialético, o qual é comprovado pelas ciências. A filosofia é  desnecessária onde a ciência experimental é preferível. Da filosofia guarda-se o que ela possui de mais valioso: o método dialético, aplicado a todas as áreas do saber, método que reflete as propriedades objetivas do mundo físico e social. O materialismo histórico e dialético, não se circunscreve às ciências sociais, abrange as ciências da natureza. Trata-se, portanto, de demonstrar que a natureza na sua totalidade rege-se por leis também dialéticas (Engels não nega evidentemente que outras leis expliquem o movimento dos corpos). Matéria equivale a massa e energia. A essência da Matéria é o movimento ou Energia. Esta manifesta-se de diversos modos. A Energia é indestrutível, 1ª Lei da Termodinâmica.

A filosofia marxista é o materialismo dialético. O segundo termo – dialética – faz toda a diferença com os filósofos e cientistas que são materialistas, com mais ou menos consciência disso, porém recusam a dialéctica da natureza e das sociedades humanas. Ser-se materialista não é raro entre os cientistas, e menos raro quando não se pensa sobre isso, uma espécie de materialismo espontâneo.

Um outro problema: F. Engels abandonou a filosofia? Toma ou não posições contraditórias, por um lado, na Dialética da Natureza e, por outro, em L. Feuerbach e o Fim da Filosofia clássica alemã? Reserva para a filosofia apenas a lógica, isto é a dialéctica, ficando tudo o mais a cargo das ciências “positivas”? Ou há nas duas primeiras obras elementos para uma ontologia marxista? E se a filosofia se confinar à lógica, como parece defender na Dialética da Natureza, para quem fica a ética e o direito que Engels, afinal, tão bem analisa no Anti-Dühring ? São estas áreas tarefa que cabe à ciência? Todavia, a ética, estética, política, não são ciências particulares…

Dialética da Natureza – Desde 1873 que Engels projetava escrever uma obra sobre a dialética da natureza (conforme correspondência com Marx), mas desde 1858 o seu interesse manifestava-se quanto a um estudo aprofundado das ciências naturais. O propósito que o orientava era a crítica do “método metafísico” e a exposição das categorias do método dialético. A “dialética racional” do materialismo filosófico, “despojada de todo o misticismo converte-se em uma necessidade absoluta para as ciências naturais (manuscritos da Dialética da Natureza, esboço com o título “Büchner”). Em 1873 projetava escrever, antes do Anti-Dühring , um “Anti-Büchner”, materialista vulgar. Depois de publicar a 1ª edição do seu Anti-Dühring  (1878) Engels trabalha na Dialética da Natureza. A morte de Marx em 1883, a imperiosa edição dos tomos segundo e terceiro de O Capital, as tarefas políticas na II Internacional, impedem que ele organize os materiais. A sua morte em 1895, impede de vez a publicação. Esquecidos os manuscritos, a obra só sai em Moscovo em 1925, a versão alemã e russa. Nova edição, amplamente corrigida, em 1927, em alemão. Demasiado tardia: a enorme projeção e prestígio de Engels desde o desaparecimento de Marx (muito maior do que do próprio Marx) viria a esmorecer desde 1914. A Dialética da Natureza é, pois, uma coleção de manuscritos, alguns inacabados, versando variados assuntos das ciências naturais: Formas de movimento da matéria; Classificação das ciências; Matemáticas; Mecânica e Astronomia; Física; Química; Biologia, e capítulos de grande importância sobre Dialética. Nada do que afirma sobre temas das ciências (as marés, o calor, a eletricidade, etc.) perdeu interesse ou é erróneo; apresenta-nos intuições penetrantes sobre as teorias mais avançadas; defende o papel pioneiro dos filósofos na explicação da natureza, nomeadamente Kant; desenvolve um estudo genial sobre o papel do trabalho que a ciência confirmou (“ O papel do trabalho na transformação do macaco em homem”), no qual G. Lukács se inspirou para o seu último trabalho “Para uma ontologia do ser social” (1971), pese embora o facto de sempre haver preterido a Dialética da Natureza... O Anti-Dühring é outra obra notabilíssima, com varias edições ainda em vida de Engels. Na Primeira Parte trata da filosofia da natureza; da moral e do direito (Liberdade, igualdade e necessidade); da dialética. Nas duas restantes trata da teoria da violência; das descobertas de Marx (Teoria do valor, capital e mais-valia, etc.); do socialismo (produção, distribuição, Estado, família, educação).

No “Prefácio” à 2ª edição do Anti-Dühring e no chamado “Velho Prefácio” coligido para a Dialética da Natureza (título com que foi editado pela primeira vez em russo) Engels estende as leis da dialética à natureza, com o propósito de não deixar nada de fora do materialismo dialético. Uma filosofia geral, uma ontologia para todos os efeitos. No capítulo “Dialética”, (manuscrito da Dialética da Natureza), expõe três leis gerais: lei da mudança da quantidade em qualidade, e vice-versa; lei da penetração dos contrários; lei da negação da negação. Refere que as três leis haviam sido desenvolvidas por Hegel, “à sua maneira idealista, como simples leis do pensamento”. Estaline não incluiu a “lei da negação da negação” nas leis da dialética (O Materialismo Histórico e o Materialismo Dialéctico, Moscovo, 1951), mas cita largamente Engels no respeitante às “mudanças qualitativas” que “não são graduais, mas rápidas, bruscas e se verificam por saltos” o que permite conceber a natureza e a sociedade como “um desenvolvimento que vai do simples ao complexo, do inferior ao superior”. Estaline clarifica posições no âmbito das disputas marxistas que separam a filosofia soviética do chamado “Marxismo Ocidental”, sobretudo na admissão, ou não, de uma filosofia da natureza. Ora, em Engels, a” lei da negação da negação” (capitulo do Anti-Dühring) é a principal lei do desenvolvimento, enquanto para Estaline era a da “mudança da quantidade em qualidade”. Curiosamente o “marxismo ocidental” pensava aqui como o seu arqui-inimigo…

V.I. Lenine defende teses concordantes com as de Engels na Dialética da Natureza, no seu livro Materialismo e Empiriocriticismo, veja-se, por exemplo, o valor cimeiro que atribuem ambos à categoria de Movimento (“auto-movimento, insiste Lenine). Ora, o livro de Lenine é de 1909, não conheceu, portanto, a Dialética da Natureza! No seu texto Karl Marx (publicado pela primeira vez em 1915) cita Engels do Anti-Dühring com comentários elucidativos: “A natureza é a comprovação da dialética, e devemos dizer que as ciências modernas da natureza nos forneceram materiais extremamente numerosos”( e isto foi escrito antes da descoberta do rádio, dos eletrões, da transformação dos elementos, etc.!) “cujo volume aumenta dia a dia, provando assim que, em última análise, na natureza as coisas se passam dialeticamente, e não metafisicamente”.

A Dialética da Natureza, sobretudo no capítulo que referi acima, provocou controvérsias infindáveis entre os marxistas. É simples metafísica? Pura especulação abstrata sobre as “leis do ser”? Expus a minha posição nos prolegómenos deste ensaio: não faz sentido algum que categorias centrais como o desenvolvimento perpétuo e descontínuo que exprime uma história de transformações umas vezes lentas e graduais, outras, bruscas e profundas, apenas se aplique às sociedades e não à natureza, o “movimento, no sentido geral da palavra, concebido como uma modalidade ou um atributo da matéria, abarca todos e cada um das mudanças e processos que se operam no universo, desde o simples deslocação de lugar até ao pensamento”( Dialética da Natureza, Formas fundamentais do Movimento”). “A terra devêm, desenvolve-se e perece” (idem). A Matéria (Energia) é eterna. “Pela mesma férrea necessidade com que um dia desaparecerá da face da terra a sua floração mais elevada, o espírito pensante, voltará a brotar em outro lugar e em outro tempo” (Introdução). Julgo adequada a expressão “negação da negação”, pois é um facto teórico e empírico que a natureza é atravessada por contradições (forças contrárias que ora se equilibram, ora transformam e criam); se a negatividade é uma categoria instante da dialética é de admitir que a superação também se aplique. A Vida foi negada várias vezes na terra; todavia, superou as catástrofes….O Homo sapiens é uma autêntica superação das diversas etapas e espécies que o antecederam e se extinguiram. As estrelas ao explodir forneceram os ingredientes necessários ao surgimento da Vida. O que rejeito é a possibilidade de contaminação dessa lei da dialética com a crença teleológica de que tudo se encaminha para uma finalidade superlativa (e boa necessariamente). As catástrofes existiram e continuarão a existir tanto nas sociedades como no universo. Dialética do caos e da ordem, da casualidade e da necessidade. Substituiria também a fórmula “desenvolvimento do inferior para o superior” pela expressão “do mais simples ao complexo”, quando falamos de Natureza, pois que me parece que a ideia de “superioridade” é claramente antropomórfica.

Estão ultrapassadas as situações históricas que conduziram às acusações mútuas do “marxismo ocidental” e do “marxismo estalinista”? Provavelmente não. A “lenda negra” (D. Losurdo) do estalinismo serve ainda para agitar fantasmas…Mas não está resolvida a querela: dialética da natureza, sim ou não? Se defendemos uma ontologia marxiana (com o contributo de Engels com quem Marx trocou ideias e acordos) não vejo razão para que essa ontologia não abarque a Natureza. Se o materialismo de Marx- Engels é dialético, e é isso que o distingue de todos os materialismos antigos ou modernos, havemos de admitir que a ontologia é centralmente dialéctica. Não apenas um método construído pela mente, mas um processo de explicação cujas categorias refletem as características dos mundos natural e social; por isso é que são certeiras. A menos que se rejeite a ontologia…Uma filosofia marxista sem ontologia é um disparate. As categorias lógicas que Marx e Engels utilizaram para a construção de uma visão do mundo e da vida revelaram-se científicas não apenas na Economia mas, inclusivamente, para a Natureza: anteciparam importantes correções ao “determinismo” na Física, intuíram o encadeamento entre a Física e a Química do qual poderia ter surgido a Vida, colaboraram na formação da Antropologia, descreveram corretamente a história geológica e as suas consequências sobre as mudanças ambientais. Evidentemente que Engels não pôde conhecer a as teorias da relatividade de Einstein e da Física Quântica. Não é isso que importa. Não surgiu nada, nem poderá alguma vez surgir suponho, que desminta as afirmações de Engels: a unidade material do mundo, o auto-movimento como propriedade essencial da Matéria, as possibilidades de criação do Novo, a deveniência dos organismos mais simples aos mais complexos. A compreensão de que tudo possui uma história, surge e desenvolve-se cada coisa em conexão com outras, numa unidade que vai do mais particular ao mais geral ( união de contrários (Lenine), um processo de desenvolvimento e transformação perpétuos. Em que é que as ideias dialéticas de Engels sobre a natureza (e muito provavelmente de Marx) contrariaram a lei darwiniana da seleção natural das espécies? Ele próprio (e Marx) enalteceu a revolução operada por C. Darwin, apontando-lhe, contudo, com clarividência, a falta de uma explicação das “causas”? As ideias de desenvolvimento e evolução, que Marx e Engels formularam para as sociedades com muita antecedência sobre as ciências hodiernas, constituem um grandioso património da cultura e da ciência. Engels estendeu-as à Natureza (com o acordo de Marx), apoiando-se na obra de Darwin e nas descobertas da física, química, antropologia, biologia, geologia. Criticou versões do darwinismo com o conceito de trabalho entre os macacos e os seres humanos (Dialética da Natureza), importantíssima correção às conceções evolucionistas.  É preciso que a ciência prática se torne uma ciência humana, sem separação entre a vida e a ciência (vidé Marx, Manuscritos económico- filosóficos, edição Avante!).As práticas científicas não estão acima dos interesses da humanidade, do concreto viver humano, da sua emancipação, nem acima dos valores nem da luta de classes. Embora elas devam ser autónomas para que sejam criadoras e o cientista teórico não tenha que ser apenas um técnico ao serviço dos capitalistas. Em Engels encontramos uma clara defesa dos princípios da ecologia, a crítica da manipulação destrutiva da natureza, encontramos um vivo interesse pelas teorias das ciências práticas, sem lhes impor como único objetivo o da produção, ainda que ele seja fundamental.  

É o materialismo dialético uma filosofia? Para os jovens Marx e Engels foi com certeza, como se comprova largamente em A Sagrada Família, A Ideologia Alemã, Os manuscritos económico-filosóficos. A questão poe-se na maturidade: deve continuar a ser uma filosofia ou uma ciência, na altura da elaboração de O Capital e dos estudos das ciências naturais por Engels? No Prefácio à segunda edição do Anti-Dühring e no chamado Velho Prefácio da Dialética da Natureza, tece considerações que vamos citar:

“ A investigação moderna da Natureza, a única que levou a um desenvolvimento científico, sistemático, omnilateral” em permanente desenvolvimento desde o Renascimento não impediu, porém, que uma “visão antiquada “, isto é “determinista”, “mecanicista”, dominasse a visão até à primeira metade do século dezanove “e ainda hoje, quanto ao principal é ensinada nas escolas” (Introdução à Dialéctica da Natureza). Falta uma “visão geral” para o qual a filosofia alemã colaborou (Kant). Falta, embora existam por todo o lado elementos que apontam para a unidade das ciências, união que corresponda, afinal, à unidade da natureza, do mundo e da vida. Faz falta uma teoria que permita unir as ciências na sua complementaridade, fazem falta despectivas teóricas, pois “Se os teóricos são semi-sábios no domínio da ciência da Natureza, os naturalistas modernos são-no, efetivamente, outro tanto no domínio da teoria, no domínio daquilo que até aqui era designado por filosofia”. “A investigação empírica da Natureza acumulou uma tão enorme massa de matéria positiva de conhecimento que a necessidade de a ordenar sistematicamente e segundo a sua conexão interna se tornou pura e simplesmente irrecusável. Do mesmo modo irrecusável se tornou trazer os domínios singulares do conhecimento à sua correta conexão entre si. Mas, para isso, a ciência da Natureza transporta-se para o domínio teórico e aqui os métodos da experiência ( Empirie) fracassam; aqui, só o pensar teórico pode ajudar.” 

É neste passo que alguma dúvida surge.

É o materialismo dialético filosofia ou ciência? Abandona-se a filosofia da Natureza a favor de uma Teoria geral das ciências (a criação de conceitos específicos e gerais que superam os dados empíricos) cujo método é a dialética? Sobra para a filosofia apenas o método dialético, formal, isto é, “as leis do pensamento”?

 

O empirismo desconfia das teorias, o método metafísico congela os conceitos para sempre e não vê como tudo muda: “O pensar teórico de cada época – portanto, também o da nossa – é um produto histórico”. A ciência do pensar é, portanto, tal como qualquer outra, uma ciência histórica. É, portanto, uma ciência, “a ciência do desenvolvimento histórico do pensar humano”, isto é a dialética. A dialética é “para a ciência da Natureza hodierna, a forma de pensar mais importante, porque só ela fornece o análogo e, por isso, o método de explicação para os processos de desenvolvimento que ocorrem na Natureza, para as conexões em geral, para as transições de um domínio de investigação a outro” (Antigo Prefácio). “O caráter dialético dos processos da Natureza”. É necessário “chegar do entendimento do singular ao entendimento do todo, à penetração da conexão universal”, entender a Natureza como os filósofos gregos a intuíram: “como todo”.

Parece-me lógica a afirmação de Engels: sendo a natureza um todo, em conexão universal, por essa razão as ciências devem-se unir, as partes (ciências particulares) conduzem-se para a totalidade. Não será essa a sua ambição? Marx profetizava uma única ciência que unia a natureza e a sociedade, porque ambas se podiam estudar como uma História em desenvolvimento. Einstein almejava uma unidade das principais forças que moviam o universo e expressou simpatia especial pelo filósofo do Todo, Espinosa…Será a Dialéctica aquilo que as une, a base de uma Teoria Geral? Julgamos ser esta a tese de Engels, tão contestada como se sabe. Mais corretamente: o materialismo Dialéctico. Dialéctica sem materialismo é atalho para os idealismos, e vice-versa: materialismo sem dialéctica é naturalismo grosseiro ou metafísico.  O método dialético expressa ou reflete a dialeticidade inerente à materialidade do mundo natural e social. Somente desde modo se constrói e assume uma Teoria geral (Teoria da conexão dialética universal), para além das teorias específicas a cada ciência em particular. Ora, visto que o método dialético é científico, essa Teoria Geral é necessariamente científica.

Essa Teoria não é um sistema filosófico, porque “Um sistema da natureza e da história que abarca tudo e contém tudo, está em contradição com as leis fundamentais do pensamento dialético” ( Anti-Dühring, Capítulo “Noções gerais”), diz Engels para classificar o sistema hegeliano como “um aborto colossal, o último do género”, sistema que pretendia ser a expressão de uma verdade absoluta. “O conhecimento sistemático do conjunto do mundo exterior” não significa impor um mundivisão fechada, a verdade absoluta, o fim da história.

O materialismo dialético “não implica nenhuma filosofia sobreposta às outras ciências” (idem).

E eis que avança na frase seguinte com a afirmação mais controversa: “Desde o momento em que se pede a cada ciência que dê conta da sua posição no conjunto total das coisas e do conhecimento das coisas, torna-se supérflua uma ciência especial do conjunto: o que subsiste de toda a antiga filosofia e conserva uma existência própria é a teoria do pensamento e suas leis – a lógica formal e a dialética. – Todo o resto se resolve na ciência positiva da natureza e da história”.

Eis, pois, aqui, o motivo da intensa controvérsia que atravessou os marxismos do século passado.

A Introdução à Dialética da Natureza e o «Antigo Prefácio ao [Anti]-Dühring sobre a Dialética» são textos dos anos 75 a 78, Marx teve conhecimento deles e não se opôs; Engels fez disso referência em mais do que um texto (no Anti-Dühring e em carta a Marx; Em 24 de maio de 1876, Engels escreveu a Marx, dizendo que não havia motivos para iniciar uma campanha contra a propagação das ideias de Dühring. Marx respondeu no dia seguinte, dizendo que Dühring  deve ser muito criticado. Assim, Engels deixou de lado o seu trabalho sobre o que mais tarde se tornaria conhecido como o livro Dialética da Natureza . Em 28 de maio, ele delineou para Marx a estratégia geral que planejava tomar contra Dühring. Levaria mais de dois anos para ser concluído.. Nesta época em que Marx redigia O Capital estava em sintonia com Engels nesta e noutras matérias. O trabalho era explicar cientificamente o Capital e não “filosofar”( imitar a antiga filosofia) sobre o capitalismo. O método que utilizou na investigação do Valor e da Mercadoria foi o materialismo dialético. Ora o materialismo dialético e histórico não era e não é uma filosofia como as outras: é científico. Se a natureza e o homem estiveram separados, agora estavam lançadas as condições para uma ciência unitária. Não foi outro, por conseguinte, o propósito de Engels. A filosofia de O Capital é o materialismo histórico e dialético. Tal como o é na Dialética da Natureza e no Anti-Dühring. A prova maior é esse estupendo ensaio “ Quota-parte do Trabalho na hominização do macaco”, que mostra bem o génio científico de F. Engels.

 Não existe contradição alguma entre a sua afirmação de que a filosofia da natureza pode, perante o novo papel insubstituível das ciências naturais e sociais (a começar pela ciência de O Capital), remeter-se a uma teoria científica do conhecimento, à Lógica dialéctica, às leis ou formas do pensamento, e a sua tese sobre a justeza de uma filosofia científica da natureza, isto é uma Teoria que conjugue os dados empíricos num Todo. Teoria Geral que inclua necessariamente o método dialético, na medida em que reflete as leis dialéticas desse Todo. Não rejeita a Filosofia tal como Marx não a rejeita em O Capital. A filosofia que ele rejeita é o método metafísico.

O problema levanta-se ainda com um outro texto: Ludwig Feuerbach e o fim da filosofia clássica alemã.

Diz neste ensaio: “A grande questão fundamental de toda a filosofia, especialmente da moderna, é a da relação de pensar e ser”. “A questão da relação do pensar com o ser, do espírito com a natureza – a questão suprema de toda a filosofia no seu conjunto -, tem, portanto, não menos que do que todas as religiões, a sua raiz nas representações tacanhas e ignorantes do estado de selvajaria”. “Conforme esta questão era respondida desta ou daquela maneira, os filósofos cindiam-se em dois grandes campos. Aqueles que afirmavam a originariedade do espírito face à Natureza, que admitiam, portanto, em última instância, uma criação do mundo, de qualquer espécie que fosse – e esta criação é frequentemente entre os filósofos, por exemplo, em Hegel, ainda de longe mais complicada e mais impossível do que no cristianismo -, formavam o campo do idealismo. Os outros, que viam a natureza como o originário, pertencem às diversas escolas do materialismo”. Este é o significado que Engels utiliza, e não outro, para as expressões “idealismo” e “materialismo”. Esta questão possui um outro lado: “está o nosso pensar em condições de conhecer o mundo real (…)? É a questão “da identidade do pensar e ser”. Este ensaio foi escrito em 1886, portanto já depois de Marx ter falecido (1883).

Existe, então uma “grave” contradição, tão grave que provocou controvérsias e dissidências no século passado, entre o que se convencionou chamar “marxismo-leninismo” soviético ou estalinista ( o chamado Diamat) e “marxismo ocidental”?

Não me parece. A questão ontológica suprema já fora resolvida com a criação do materialismo histórico e dialético. A resposta à pergunta estava dada, a opção tomada definitivamente. A questão merece conservar-se? A questão pode sempre pôr-se, mas a resposta estava dada. A questão era, de resto e no fundo, mais do interesse dos teólogos, fossem eles padres ou filósofos académicos, ideólogos da burguesia. O materialismo dialético demonstrou, culminando a longa sucessão de grandes filósofos materialistas, que não existe Espírito algum fora da natureza e seu criador. No que respeita ao outro lado da “questão suprema, a identidade do ser e do pensar, leia-se o que Engels escreveu nesta obra e em todas outras coerentemente. Recordem-se as famosas e já muito estudadas Teses de Marx contra Feuerbach. A gnosiologia marxiana-engelsiana apoia-se na teoria do “reflexo”. Lenine, que não conheceu algumas das obras de Marx e Engels, soube expô-la desenvolvidamente no incontornável livro de pura filosofia (Materialismo e Empiriocriticismo), que José Barata-Moura nos explicou no seu Sobre Lénine e a Filosofia. Entre a interpretação gnosiológica de Lenine e a gnosiologia de Marx e Engels não se topa nenhuma contradição. Lembremos apenas que o Trabalho, tão brilhantemente analisado por Engels conforme já referimos, é, entre outras práticas sociais, a principal mediação do homem com a natureza, relação fundamental no processo histórico do conhecimento. Existem conhecimentos verdadeiros? Os nossos atuais “pós-modernos”, ou alguns deles, torcem o nariz quando se fala na Verdade, bisnetos que são das teses reacionárias de Nietzsche nessa matéria. Evidentemente que existem conhecimentos verdadeiros. Engels expõe contra o tal Herr Dühring a questão no capítulo “A moral e o direito-verdades eternas”. “E, sem dúvida, há verdades tão bem fundadas, que a menor dúvida a respeito delas nos pareceria sinónimo de loucura: dois e dois são quatro, os três ângulos do triângulo valem dois retos”. Não existem, isso sim, verdades absolutas e eternas, “assim, por regra, nos trabalhos verdadeiramente científicos evitam-se as expressões dogmáticas e morais de erro e de verdade”.

  A meu ver o único problema que se poderá levantar relativamente ao papel que Engels reserva à Filosofia tem que ver com questões ou áreas que não são ciências particulares: a Ética, o Direito, a Estética, a Política. Contudo, os manuscritos que vieram dar origem ao livro Dialética da Natureza não foram redigidos com essa finalidade. A “Introdução à «Dialéctica da Natureza»”, foi escrita em 1875-1876; o “Antigo Prefácio ao «Anti-Dühring». Sobre a Dialéctica”, foi escrito em 1878. Os manuscritos da Dialéctica da Natureza levaram vários anos a serem escritos. Não faz sentido que se diga existirem aflorações “revisionistas” entre os dois escritos.

Ora, no Anti-Dühring Engels analisa a moral e o direito atacando questões como “verdades eternas”, A igualdade”, “Liberdade e necessidade”. Engels não afirma que as áreas que listámos acima constituem ou podem vir a constituir ciências particulares. A Moral não é uma ciência, nem a Política ou a Estética. Integram-se na Teoria geral de que falámos atrás. Sem o contributo das ciências (naturais e sociais) e do método dialético (isto é, sem o materialismo dialético e histórico), não poderemos compreender as origens e o desenvolvimento dessas práticas humanas. A Ética e o Direito serão porventura os terrenos preferidos da dominação ideológica de classe. A Política não é tratada com este título, desenvolve-se na “Segunda Parte”, capítulos “Teoria da violência” e na Terceira Parte “socialismo”. A Política, filosofia da Política se preferirmos, julgo que é precisamente a consequência final e coerente de uma boa ontologia. No Prefácio II do Anti-Dühring Engels esclarece-nos quaisquer dúvidas que tivéssemos relativamente à coerência das teses com o pensamento de Marx: “Como a filosofia que exponho neste livro foi, na sua maior parte, fundada e desenvolvida por Marx, e em menor parte por mim, era muito natural que não escrevesse esta exposição sem o seu conhecimento. Antes da impressão li-lhe todo o manuscrito e, no que respeita ao décimo capítulo da segunda parte, dedicado à economia política (Sobre a História crítica), foi o próprio Marx quem o escreveu (…) De resto, tivemos sempre por costume ajudarmo-nos um ao outro nos assuntos relativos à ciência”. Separar e opor Engels a Marx, ou vice-versa, é, portanto, um ato de má-fé. De resto, em O Capital lemos enunciados suficientes sobre a moral e o direito e a política está logo no subtítulo: Crítica da Economia Política. A Filosofia em O Capital é outra obra estupenda de José Barata-Moura. “ No domínio da economia política a investigação científica livre não encontra o mesmo inimigo que em todos os outros domínios. A natureza peculiar da matéria que manuseia chama ao campo da luta contra ela as paixões mais violentas, mais mesquinhas e mais odiosas do peito humano, as Fúrias do interesse privado” ( O Capital, Prefácio à primeira edição, 1867)

Engels não se serve do método metafísico para analisar as raízes da moral, do direito e da política, como fazem aqueles filósofos que “explicam” essas e outras atividades humanas na pura esfera das ideias. Grandiosos conceitos da Moral e da Política: Liberdade, Igualdade, etc. somente se podem compreender no contexto histórico, nas lutas sociais, nas reivindicações das classes e dos estratos sociais, nas conquistas e nas derrotas, nos interesses económicos, culturais, políticos, que se entrelaçam no todo de uma determinada organização rasgada por contradições. Engels maneja com mestria a Dialética a propósito do choque das burguesias, cujo interesse maior era a “livre concorrência”, com os entraves corporativos e os privilégios, “a situação económica exigia a liberdade e a igualdade de direitos”.

 

A “Teoria” de que nos fala Engels não é, portanto, uma filosofia separada soberanamente dos métodos empíricos das ciências naturais e sociais ( e isto aplica-se também à Moral, Direito, Política, Estética); não é, sobretudo, a aplicação de um método “metafísico”, mas, sim, dialético. Personalidades influentes no partido social-democrata, como Bernstein e outros, que depressa abandonaram o marxismo, acusaram Engels de “positivista”, “economicista” e outros epítomes. A mais do que tardia publicação de obras de Engels, como referimos acima, é em grande parte da responsabilidade dele e seus compadres. O perfil “positivista” de Engels foi glosado vezes sem fim pelo século vinte em diante por muitos que não o leram (doença que ataca também os filósofos), ou leram-no “demasiado” bem, isto é não lhes convindo de todo uma Dialéctica que conduz à necessidade de um revolucionamento das relações sociais, na base das quais estão as relações de produção. A abordagem engelsiana das questões da moral, do direito, da violência na História, dos efeitos do trabalho e outras práticas sociais nas conceções religiosas, políticas, etc., patente nas duas obras que temos vindo a citar, demonstra claramente, sem equívocos, que ele rejeita quaisquer “determinismos” (expressão que ele aplica à ciência e aos materialismos do século XVIII). Engels e Marx mais do que uma vez afirmaram que as ideologias, as lutas de ideias e crenças, desempenharam nos acontecimentos que eles próprios referem (as guerras religiosas, por exemplo) um papel de relevo., ou seja: de retroação ( vejam-se as cartas de Engels a diversas individualidades).

Não se compreenderia que Engels lançasse a filosofia borda fora. Se assim fosse o materialismo dialético desistiria do combate contra as posições idealistas que brotam espontaneamente ou propositadamente no seio dos próprios movimentos progressistas. Se assim fosse Engels não teria combatido o Sr. Dühring. A ideologia do proletariado revolucionário só pode ser o materialismo histórico e dialético. Eis o que ele pensava.

Existem diferenças de exposição entre o Ludwig Feuerbach e o Fim da Filosofia Clássica Alemã e a Dialética da Natureza, sobretudo entre o primeiro texto e as frases que citámos do Anti-Dühring (Noções gerais), “o que subsiste de toda antiga filosofia e conserva uma existência própria é a teoria do pensamento e suas leis – a lógica formal e a dialética. – Todo o resto se resolve na ciência positiva da natureza e da história”? Certamente. Numa exposição explana-se o problema ontológico, a filosofia materialista dialética, nesta última não o faz tal e qual. Contudo, é uma contradição real, uma alteração profunda de posições? Não creio de modo algum. Repare-se na afirmação que antecede e conduz à conclusão de que “torna-se supérflua, etc.”: “ o materialismo sintetiza os progressos recentes das ciências naturais”, tal materialismo é essencialmente dialético e, portanto, não “implica nenhuma filosofia sobreposta às outras ciências ”, “Desde o momento em que se pede a cada ciência que dê conta da sua posição no conjunto total das coisas e do conhecimento das coisas, torna-se supérflua uma ciência especial do conjunto”. É isto que ele afirma. A filosofia materialista histórica e dialética não veio para se sobrepor às ciências naturais; a sua ontologia fundamental, pelo contrário, solicita, por um lado, o concurso da Ciência para expor e demonstrar a tese do primado da Matéria sobre o Espírito e, por outro, exige que a Ciência tome consciência de que a dialética está lá, nos fenómenos, quer os cientistas queiram ou não. Por exemplo: já não era útil uma “filosofia da História” à maneira hegeliana (idealista), quando a História se estava a constituir como uma área de estudo que compreende necessariamente, se quiser ser objetiva, requisitos científicos. Por requisitos científicos, Engels entende, sobretudo mas não só, o materialismo histórico e dialético. Uma História que explique os acontecimentos sem recorrer fundamentalmente às relações económicas, não vai à raiz. Paira no céu nebuloso das puras ideias políticas acima das tempestades das crises económicas e das lutas de classe.

Engels, insisto, abandona a atividade crítica filosófica? Não vejo como nem quando: Na Dialética da Natureza, capítulo “ciências naturais e filosofia”, destroçando as teses do materialismo grosseiro de Büchner, Vogt, Molesschott, porque estes, isso sim, pretendiam suprir a falta de ciência com um materialismo pseudo-científico dogmático e grosseiro, defende a filosofia dos ataques de que estava a ser alvo. “Quem mais insulta a filosofia são escravos precisamente dos piores resíduos vulgarizados da pior das filosofias” (sublinhado por mim, N.P.). “ Do que se trata de saber é se querem (os naturalistas) deixar-se influenciar por uma filosofia má na moda ou por uma forma de pensamento teórico baseado no conhecimento da história do pensamento e das suas conquistas”. “Os naturalistas concedem à filosofia uma vida aparente, ao contentarem-se com os despojos da velha metafísica. Somente quando a ciência da natureza e da história hajam assimilado a dialética, sobrará e desaparecerá, absorvida pela ciência positiva toda a quinquilharia filosófica, com a exceção da pura teoria do pensamento”.

O materialismo histórico (que demonstrou a historicidade de todos os fenómenos sociais), o materialismo dialético (que reflete a contraditoriedade de tudo, o “trabalho do negativo” para a mudança), é, portanto, a boa filosofia…A filosofia em lugar de morrer, reanimou-se. Os combates da filosofia dialética contra o seu contrário, a metafísica, contra a filosofia burguesa que é a sua ideologia, ganham fôlego e urgência. Engels exemplifica: urge combater as filosofias “naturalistas” que querem aplicar às sociedades as teorias darwinianas (o darwinismo social). Sabemos nós bem como esta ideologia, já em voga ao tempo de Engels, justificava as desigualdades sociais e o racismo. A vida e obra de Marx e Engels constituem a prova provada de que a ideologia burguesa não passou impune. Produziram o mais eficiente instrumento de guerra contra os opressores. Produziram ciência, defenderam o conhecimento, mas denunciaram implacavelmente a instrumentalização da tecnociência pelo capitalismo. Criaram uma filosofia prática. O proletariado adotou a ideologia política que melhor exprime os seus interesses de classe, condição que aprofundou a cisão nos partidos socialistas em partidos comunistas e partidos social-democratas.

Outro problema foi o chamado “humanismo”.

A partir da década de 1920 o cisma com o processo revolucionário em curso na Rússia transitou também, evidentemente, para a filosofia. Os primeiros teóricos foram G. Lukács e Korsch. Os escritos de juventude de Marx surgiram nessa altura e serviram de ponta-de-lança. Não se tinha na mira no início a Dialética da Natureza pois não era conhecida, mas, sobretudo o Anti-Dühring, a Introdução de Marx aos Grundriss:

“O resultado geral a que cheguei e que, uma vez obtido, serviu-me

de guia para meus estudos, pode ser formulado, resumidamente,

assim: na produção social da própria existência, os homens

entram em relações determinadas, necessárias, independentes

de sua vontade; essas relações de produção correspondem a um

grau determinado de desenvolvimento de suas forças produtivas

materiais. A totalidade dessas relações de produção constitui a

estrutura econômica da sociedade, a base real sobre a qual se eleva

uma superestrutura jurídica e política e à qual correspondem

formas sociais determinadas de consciência. O modo de produção

da vida material condiciona o processo de vida social, política e

intelectual. Não é a consciência dos homens que determina o seu

ser; ao contrário, é o seu ser social que determina sua consciência.”, e, julgo eu, o livro de Lenine “Materialismo e Empiriocriticismo”. Veio acrescentar-se, como gasolina sobre o fogo, a Dialética da Natureza

A crítica ao materialismo histórico e dialético centrava-se na ausência ou pelo menos desvalorização do “indivíduo”, isto é do “sujeito” e da “subjetividade” que imputavam ao “revisionismo” de Engels sobretudo. Ontologia natural ou ontologia social? Filosofia ou ciência? A crítica à ciência (ao pensamento científico) emergia com a devida influência de Weber e de Heidegger…Posições que chegaram ao radicalismo de se considerar a ciência como burguesa toda ela. O período pós-guerra agravou o cisma, período áureo do chamado “Humanismo”. Nos “marxistas críticos” a ontologia continha um problema: a realidade , que é a que conhecemos, não existe independentemente do conhecimento que vamos produzindo sobre ela; por conseguinte, parte dela é a mente que a constitui. Posição idealista por excelência.

Contra uma filosofia da natureza (teoria natural), contra a substituição da filosofia (A ética e a estética que tanto interessou Lukács), contra a Teoria que unificará as ciências naturais e sociais. O “humanismo” entrou em crise com o estruturalismo. Teve a sua época. O contexto histórico ajuda a compreender esse atrativo. Os filósofos burgueses diziam-se “humanistas” conforme as suas conveniências na “Guerra Fria”. As obras de Engels revelaram-se, a meu ver, mais marxistas do que o “marxismo humanista”. O idealismo “ético” deste é bem uma ilustração das reservas que o jovem Marx alimentava contra o idealismo (=ideologismo) que persegue a Filosofia como um destino.

É fácil acusar Marx e Engels de “revisionismo” nas obras de maturidade, o difícil é prová-lo. Houve evidentemente correções e acertos, porventura alguma ambiguidade que não pôde ser esclarecida, contudo revela-se uma caminhada progressiva, mas coerente, dos primeiros escritos para se produzir, por fim, essas obras magistrais que são O Capital e o Anti-Dühring. A Dialética da natureza é uma obra de época? Não me custa admiti-lo, no sentido em que a ciência estava a dar passos gigantescos e rápidos desde Faraday, Maxwell e Darwin, com aplicações revolucionárias nos meios de produção e descoberta da historicidade das manifestações da Matéria viva. Nesta época em que escrevo, conhecidos os progressos fantásticos cento e tal anos após, só posso repetir o pensamento de Engels e de Marx: a ciência será tanto mais e melhor revolucionária quanto se libertar do controlo e finalidades do Capital e servir a emancipação dos trabalhadores. Poder-se-á dizer o mesmo sobre a ideologia (idealismo) da Ética e do Direito de que tanto gostam de pregar os nossos filósofos mediáticos. Não são ciências particulares, são filosofias e doutrinas. Os seus progressos, quando aplicados efetivamente, exprimem as conquistas das massas populares, dos movimentos reivindicativos da opinião pública mundial, constituem o plano ideológico das lutas de classe. A filosofia é o plano teórico privilegiado desses confrontos. Jamais Engels poderia abandonar a filosofia encarada neste ponto de vista. Engels e Marx “economicistas”? A resposta dele já fora dada em diversas cartas (leia-se a carta a Conrad Schmidt, de 27 de Outubro de 1890, talvez a mais esclarecedora de todas, onde se fala do disputado termo reflexo, e do Estado e do Direito).

 

Marx e Engels demonstraram desde a juventude profundas reservas relativamente à Filosofia, na medida em que cada filósofo se arrogava haver descoberto verdades eternas sobre o mundo e a vida, numa operação exclusivamente intelectual desligada da práxis ( o mundo independente das ideias). Uma das enfermidades a que a Filosofia não está imune advém do facto da divisão social do trabalho, do divórcio entre o trabalho manual e intelectual. Também estes fundamentos da teoria de Marx e Engels haveriam de servir tanto para condenar os intelectuais ao pecado original, como para condenar o marxismo pelo seu putativo “cientificismo positivista” que desprezava a filosofia.  A estes últimos bastar-lhes-ia ser honestos e ler com atenção o que Engels escreve sobre filosofia (e ontologia!) no Antigo Prefácio ao « Anti-Düring».

A atualidade das obras de maturidade de Engels é, a meu ver, flagrante, também neste ponto crucial: as críticas que determinados usos da tecnociência suscitam, as contradições entre revolucionárias descobertas e os seus resultados: mais opressão, miséria e alienação.

E como é mais do que tempo para terminar, encerro com um comentário infelizmente breve e acaso superficial que regressa à ontologia com que iniciei este ensaio. Existe entre os filósofos que explicam a pós-modernidade “às crianças”- aquela parte maior de ideólogos reacionários- um fastio pelas categorias filosóficas de totalidade, verdade, universalidade (valores universais), fundamento, aparência/essência, e por aí fora. Desprezando a Dialética e ostentando um ceticismo arrogante, mergulham nos lameiros de novos irracionalismos disfarçados de particularismos e relativismos, enviam com soberano desprezo para o caixote do lixo as filosofias e doutrinas que impulsionaram os grandes progressos (embora contraditórios) da Modernidade, classificados de meras “narrativas”, isto é “ficções” e “discursos retóricos”. Na realidade o que os incomoda é o marxismo, não é seguramente o liberalismo de que eles são efetivamente fervorosos adeptos nesta versão terrorista do neo-liberalismo. Para os contrariar é necessário demonstrar que a Modernidade é um longo período com progressos e conquistas do capitalismo que eles próprios defendem, mas também de revoluções e revoltas populares para mais liberdade e igualdade (esses pós-modernos classificam a “emancipação” de “narrativa” ultrapassada), de direitos que ora nos querem sonegar. A época do surgimento do proletariado e, com ele, das doutrinas socialistas que viriam a culminar na Revolução Russa de 1917. Reconhecem-se sem dificuldade importantes mudanças a partir das últimas décadas do século passado (técnicas, sociais, culturais), destacando-se o colapso da URSS e o triunfo do capitalismo neoliberal. O eminente cientista David Harvey faz uma descrição desses fenómenos na sua obra “A Condição Pós-Moderna” que é a mais correta defesa desta “Condição” hodierna repleta de contradições. Nesse sentido transitámos para um novo ciclo. A Modernidade é “O Longo Século Vinte” (G. Arrighi) com vários ciclos do capitalismo que se repetem? Atravessamos mais um, mas a repetição não é uma constante do mundo e da vida.

Conclusões:

- Friedrich Engels foi sempre motivo de controvérsias entre os marxistas. O alvo principal foi a sua Dialética da natureza. Eis algumas das divergências e acusações: Engels, determinista e positivista; o materialismo dialético não pode aplicar-se ao estudo científico da natureza ou a natureza não se rege pelas leis da dialética ou apenas por duas delas; não vale a pena procurar uma ontologia na Dialética da Natureza, o que vale é a sua epistemologia (não confundir com a gnosiologia), análise crítica das teorias e conhecimentos da ciência; por via de Engels o marxismo na URSS foi convertido numa doutrina dogmática; enfim, ora para uns o que vale são os textos de juventude de Marx, ora, para outros, o que vale são as obras da maturidade (desprezando-se todavia a Dialética da Natureza e o Anti-Dühring).

Julgo ter evidenciado a presença da Filosofia (portanto, da ontologia) na Dialética da natureza, que não contradiz o Anti-Dühring que lhe é contemporâneo. Reconhece-se o elevado valor do contributo de Engels para a epistemologia, o que, só por si, seria bastante; julgo que, além disso, o materialismo dialético abarca necessariamente a natureza como um todo em desenvolvimento, muito embora se mantenha aberta a discussão sobre as leis dialéticas da natureza. A crítica de Engels ao determinismo (baseado na física newtoniana) foi porventura a mais profunda e certeira das que se fizeram no seu tempo preanunciando a visão do mundo que é hoje a nossa.

Bibliografia:

Obras Escolhidas, de Marx-Engels, edições Avante!, 1985

Dialéctica da natureza, Frederico Engels, Juan Grijalbo editor, 1961

A dialética da natureza, Ed. Paz e Terra, Brasil, 1979

Anti-Dühring, Ed. Paz e Terra

Anti-Dühring, F. Engels, edições Afrodite, 1974

Friedrich Engels e as ciências da natureza, Olival Freire Jr., Grabois, org. br/portal/cdm/revista

A física e as leis da dialética, José Lourenço Cidra, Ver. Bras. De Ensino da Física, 20.

NOZES PIRES

Torres Vedras, Dezembro de 2014

 

 

Viagem à Polónia

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Auschwitz: nele pereceram 4 milhôes de judeus. Depois dos nazis os genocídios continuaram por outras formas.

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Auschwitz, Campo de extermínio. Memória do Mal Absoluto.