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domingo, 28 de fevereiro de 2021

É preciso ensinar o que foi a guerra colonial fascista às criancinhas

 

DOSSIÊ | Guerra colonial, nada existe até ser contado

GUERRA COLONIAL | 60 ANOS DEPOIS - 1961/2021

SEM FRONTEIRAS | 7 de fevereiro 2021 | DOSSIÊ | Guerra Colonial – 60 anos depois 1961-2021 | Enquadramento (II)

Miguel Cardina no primeiro artigo que publicámos neste dossiê, cujo ponto de partida são os 60 anos do início da Guerra Colonial, abordou o tema em vol d´oiseau, fazendo-nos aterrar nos diversos agrupamentos politico-partidários que combateram o regime e a guerra, explicitando os diversos posicionamentos face à violência e à participação no conflito. Neste artigo, Maria Manuela Cruzeiro convida-nos para um primeiro exercício sobre as memórias, as emoções, a linguagem, a identidade, o sofrimento, a solidariedade, no fundo para uma incursão dramática, no sentido trágico da Grécia Antiga, da guerra colonial. Lenine, Mao e Che cedem o lugar a Eduardo Lourenço, Malaparte e a Foucault para um percurso temático singular que nos conduz até ao direito à memória.

por Maria Manuela Cruzeiro, investigadora

Diz-se que os povos felizes não têm história. É talvez porque nos queremos imaginar um povo feliz, que lidamos mal com a história, o que faz de nós uma sociedade distraída e de curta memória. Sobretudo para os episódios mais traumáticos, como aquele que Eduardo Lourenço chamou a ‘mais refinada e incomunicável das nossas tragédias actuais: a guerra colonial’.

O recalcamento é a resposta directa a esta incomunicabilidade, mas apresenta-se em graus e formas bem diversos, desde a pura negação da tragédia, até à dispersão do seu sentido mais fundo e real, em mil pequenos sentidos reconfiguradores dessa dura realidade.

Nesse contexto se produziu todo um complexo glossário feito de expressões oblíquas, enredadas de subtilezas, metáforas, ambiguidades, analogias, e até estranhos jogos de ironia e de sarcasmo que, impostas pela Censura no próprio decurso do conflito, persistem como precioso mas contraditório reservatório de experiências vividas e, como tal, marca identitária de sobrevivência individual e grupal. Veja-se, por exemplo, os regulares encontros de batalhões e companhias que cumprem um estranho ritual de ‘catarse em grupo’, escape para muitos silêncios, que só ‘quem lá esteve’ pode entender. O que significa que, no limite, não falamos da mesma coisa quando falamos de Guerra Colonial.

A começar pelo regime político que a impôs e que sempre se recusou a nomeá-la assim, mas antes Guerra do Ultramar. Para ele não havia guerra, mas uma revolta cruel, bárbara e ilegítima, a exigir uma resposta exemplar. Os militares, portanto, não iam para uma guerra, mas em ‘missão de soberania’, e combatiam não movimentos nacionalistas de libertação, mas bandidos desprezíveis ou terroristas.

Também no interior do universo militar surgiram hábeis e criativas operações semânticas para não chamar as coisas pelos nomes. Os mobilizados que chegavam de novo eram, por exemplo, maçaricos para Angola, os checa-checa para Moçambique e os piriquitos para a Guiné (‘piriquito é pior do que terrorista’, dizia-se em jeito de boas vindas…). Os oficiais do Estado-Maior eram oficiais de alcatifa ou ar condicionado, a metralhadora do inimigo era a costureirinha… e por aí fora… Guerra a sério, não havia, pois o significado, paradoxalmente, era deslocado do seu verdadeiro contexto, para zonas periféricas. Havia, assim, pequenas guerras: nas repartições, nas messes, nos hospitais, nas lojas e mesmo nos espaços de convívio públicos ou privados, onde o apelo à normalidade mais se fazia sentir. Aí sim, fazia-se a guerra, pequena, banalizada, e até parodiada.

As próprias mulheres ficavam com a sua guerra, que era a gravidez, a amamentação, algum pequeno emprego pelas horas da fresca. Uma loja de indiano e de chinês era uma guerra. Como vai aqui a sua guerra? – já tinha o noivo perguntado a um paquistanês que vendia pilhas eléctricas, de mistura com galochas e canela.’ (Lídia Jorge, A Costa dos Murmúrios, 1988:74)

Pequenas guerras, múltiplas razões. A razão do soldado de Quadrícula (tropa fandanga ou tropa pacaça, segundo o glossário referido) não é a mesma das Tropas Especiais. A razão dos chefes militares (muitas vezes a guerra da cadeira ou do prestígio) não é a mesma dos colonos (cuja solução em muitos casos era uma operação de extermínio de todos os terroristas), nem sequer a do poder político e económico dominantes. A razão dos oficiais do Quadro não é a mesma dos Milicianos. E, de entre estes, a razão dos que, ideologicamente amorfos, iam à guerra para comprar o Mini, ou cumprir a rotineira guerra dos papéis, não era a mesma dos que iam por assumidas opções políticas de defesa da Pátria pluri-continental e da civilização ocidental (que os havia, e muitos, sobretudo na primeira fase do conflito) ou então por contrárias convicções de esquerda: lutar contra a guerra na guerra.

Hoje, verifica-se quão difícil tem sido a recuperação de um sentido de tragédia colectiva, assim desconstruído através dessas mil pequenas razões que irromperam na ausência de uma grande Razão.

Talvez resida aqui, neste défice de legitimidade política e moral da guerra, a principal causa dessa pulverização de sentidos que, no entanto, são a corrente subterrânea que alimenta as múltiplas memórias da guerra que circulam em romances, diários, ou simples escritos roubados ao silêncio de gavetas que nunca se conseguiram fechar, porque como escreveu Malaparte ‘a guerra não tem fim para aqueles que se bateram’.

A estes últimos a Internet tem servido de veículo privilegiado e a prová-lo a enorme quantidade de sites da responsabilidade de ex-combatentes para quem, independentemente das diferenças sociais, de sensibilidades ou ideologia, a experiência da guerra foi fundadora de uma segunda identidade nascida numa situação limite não somente de horror e sofrimento, mas também da mais pura solidariedade, inacessíveis aos que a não viveram.

Num desses sites, escrito por José Teixeira pode ler-se: Passaram 40 anos. Pensava eu que a Guiné fora uma etapa para esquecer e que a vida continuava. Como estava errado. A Guiné grudou-se em mim, vive comigo todos os dias e irá comigo para a cova. O meu espírito vagueia por aquelas tabancas, olha de frente aquela gente terna e meiga que me acolheu quando eu era agressor e me acolhe agora com terno carinho, sempre que vou até lá matar saudades.

Emoções, vivências, memórias contraditórias e até paradoxais, impossíveis de enquadrar na narrativa racionalizadora da história, o que faz dela, segundo Foucault, uma contra-memória.

Esses rastos e restos inscritos na memória mais fiel e íntima, como ‘corpo marcado pela história e história que devasta o corpo’ (ainda Foucault) perturbarão certamente a rigidez da narrativa histórica, pelo elemento de excesso, de ilimitado, de trágico (mesmo se negado ou mascarado) que desarruma e subverte as suas categorias e procedimentos metodológicos normais. Mas contribuirão decisivamente para instituir um elo precioso entre memória e história, abrindo uma reflexão sobre a memória trágica da guerra, que se torne por sua vez um imperativo ético-político para uma sociedade que defenda e promova o direito à memória.

Extracto da comunicação apresentada no Congresso «Guerra colonial e descolonização», Lisboa, 15 e 16 de Abril de 2010, Organização da Assoc. 25 de Abril, IHC da Univ. Nova de Lisboa e ISCTE.

Maria Manuela Cruzeiro Mestre em Filosofia Social e Política, investigadora do Centro de Estudos Sociais, onde integra o Núcleo de Estudos Culturais Comparados.

sexta-feira, 26 de fevereiro de 2021

Cuba, China, Vietnam

 

Rapidez e robustez: as duas armas com que o Vietname ‘encaixotou’ o vírus

Um militar vietnamita controla um ponto de passagem para a localidade de Son Loi, que está em confinamento devido à pandemia

NHAC NGUYEN / AFP / Getty Images

Encostado à China, o Vietname é um caso de sucesso no combate à covid-19. Do governo autocrático à experiência acumulada em contextos de epidemias, a estratégia vietnamita passa essencialmente por antecipar-se aos problemas e atuar com rapidez

26 Fevereiro 2021 9:36

Margarida Mota

Jornalista

Expresso

O Vietname, com quase 100 milhões de habitantes, tem dos registos mais eficazes no combate à pandemia de covid-19. Com uma fronteira de cerca de 1300 quilómetros com a China — onde tudo começou —, o país conseguiu contornar os piores cenários verificados em países mais desenvolvidos e com mais meios.

Este país do Sueste Asiático comunicou o seu primeiro caso positivo no longínquo 23 de janeiro de 2020 — uma vietnamita de 35 anos que passou dois meses em Wuhan, numa viagem de negócios —, e as duas primeiras mortes a 30 de julho seguinte. Até esta sexta-feira, segundo a contagem da Universidade Johns Hopkins, contabilizava apenas 2426 casos de infeção e 35 mortes por covid-19.

O facto de o Vietname ter um Governo autocrático pode levantar suspeitas sobre a credibilidade dos números. O infeciologista Guy Thwaites, diretor da Unidade de Pesquisa Clínica da Universidade de Oxford, em Ho Chi Minh (antiga Saigão), garante ao Expresso: “Os números estão corretos. O Governo não está a esconder nada”.

O Vietname é um país jovem, com uma média de idades a rondar os 30 anos, e tem uma taxa de obesidade (fator de risco para a covid-19) extremamente baixa. Mas o que verdadeiramente fez a diferença em relação a países com mais e melhores meios foi, sobretudo, a resposta rápida e robusta com que conseguiu “encaixotar” o vírus.

Um apelo ao uso da máscara totalmente correspondido nesta rua de Hanói

Um apelo ao uso da máscara totalmente correspondido nesta rua de Hanói

NHAC NGUYEN / AFP / Getty Images

Da experiência acumulada na gestão de epidemias passadas até uma estratégia de testagem direcionada, há dez pilares do modelo vietnamita que — combinados — têm protegido o país de um cenário de caos.

1. SISTEMA DE SAÚDE DESENVOLVIDO

O Muro de Berlim ainda não caíra, mas no Vietname, governado pelo Partido Comunista, já havia a noção de que algo teria de mudar. Em 1986 um conjunto de reformas económicas que ficaram conhecidas como “Doi Moi” visaram a transformação de uma economia planificada centralizada para uma economia de mercado de orientação socialista. O sector da saúde foi dos que beneficiaram de forte investimento. Entre 2000 e 2016 os gastos com a saúde pública aumentaram em média 9% por ano, per capita. A capacidade do sistema de saúde vietnamita possibilita que, atualmente, todos os casos positivos de covid-19 sejam hospitalizados, independentemente dos sintomas do paciente, sem que os hospitais entrem em rutura.

2. EXPERIÊNCIA ACUMULADA

O Vietname tem experiência de combate a epidemias — a Síndrome Respiratória Aguda Grave (SARS, em 2003-3004), a gripe das aves (2004-2005) e o Zika (2016) — que agora se revelou preciosa para atacar o SARS-CoV-2. Em 2003, o país tornou-se mesmo o primeiro a ser retirado pela Organização Mundial de Saúde (OMS) da lista de territórios afetados pela SARS. Decorrente de todas estas emergências, o Vietname está hoje dotado de um centro nacional de operações de emergência de saúde pública, equipado com epidemiologistas, e um sistema nacional de vigilância de saúde pública. Tudo contribui para que as autoridades atuem com conhecimento de causa e a população reconheça e obedeça.

Apesar da diminuição do número de clientes, o dono desta pizaria de Hanói aumentou o menú com um ‘coronaburguer’

Apesar da diminuição do número de clientes, o dono desta pizaria de Hanói aumentou o menú com um ‘coronaburguer’

MANAN VATSYAYANA / AFP / Getty Images

3. DADOS CENTRALIZADOS

Há cerca de dez anos, o Vietname transferiu para a Internet o seu robusto sistema de recolha e cruzamento de dados de entidades de saúde pública, agilizando a reação aos problemas. Desde 2016, os hospitais são obrigados a reportar determinadas doenças a uma base central num período de 24 horas. Isto permite ao Ministério da Saúde acompanhar uma crise epidemiológica em tempo real.

4. VIGILÂNCIA DE PROXIMIDADE

O Vietname tem um programa de vigilância comunitária que capacita professores, farmacêuticos, líderes religiosos, responsáveis comunitários e até curandeiros para relatarem situações suspeitas. Os alertas são dados, por exemplo, perante aglomerados de pessoas com sintomas semelhantes que possam indiciar a emergência de um surto.

5. TESTES DIRECIONADOS

Se o Vietname tem uma testagem à covid-19 per capita relativamente baixa, lidera destacadíssimo a lista dos países que mais testam por caso positivo. Em vez de realizar testes em função dos sintomas da população, o Vietname optou por testar com base na exposição ao risco, priorizando as pessoas identificadas no rastreamento de contactos dos casos positivos e acorrendo com rapidez a edifícios ou bairros onde se registavam surtos.

Esta estratégia passou por um amplo rastreamento em redor de cada caso positivo (F0) envolvendo quem contactou com a pessoa infetada nos 14 dias anteriores (F1). Se F1 testasse positivo era hospitalizado, se testasse negativo ficava 14 dias de quarentena num centro administrado pelo Governo. Contactos próximos de um paciente F1 (F2) ficavam em isolamento em casa durante duas semanas. E assim sucessivamente até ao grau F5.

Vendedores e trabalhadores do mercado Long Bien, em Hanói, aguardam de forma disciplinada a sua vez para serem testados à covid-19

Vendedores e trabalhadores do mercado Long Bien, em Hanói, aguardam de forma disciplinada a sua vez para serem testados à covid-19

Linh Pham / Getty Images

6. CONFINAMENTOS RIGOROSOS

Cerca de um mês antes de a OMS classificar a epidemia de covid-19 como “pandemia” (o que aconteceu a 11 de março de 2020) e apelar à adoção de “ações urgentes e agressivas” para inverter o rumo da situação, já as autoridades vietnamitas confinavam localidades. Em meados de fevereiro, Son Loi foi isolada durante quase um mês quando se descobriu que seis dos seus cerca de 10 mil habitantes estavam entre os 16 casos de covid-19 detetados no país.

Outro tipo de confinamento rigoroso aconteceu em abril seguinte, quando a localidade de Dong Van (7600 habitantes) ficou confinada 24 horas enquanto aguardava pelo resultado de testes à covid-19 feitos a moradores suspeitos.

Na fase inicial da pandemia, as autoridades vietnamitas lidaram com o problema com rédea muito curta, mais ainda quando foram detetados casos importados. As medidas passaram não só pelo isolamento de pessoas que tinham contactado com pessoas infetadas, ou que viviam na mesma rua, ou que tinham viajado no mesmo avião. Muitos passageiros oriundos de países fortemente afetados pela pandemia ficaram duas semanas de quarentena nos centros do Governo. E os voos internacionais foram desviados dos aeroportos onde partiam e chegavam voos domésticos.

Um soldado está de vigia no portão de um centro de quarentena, na região de Lang Son

Um soldado está de vigia no portão de um centro de quarentena, na região de Lang Son

Nguyen Huy Kham / Reuters

7. TECNOLOGIA INTRUSIVA

A resposta vietnamita à covid não dispensou a tecnologia. Com a doença no país há menos de dois meses, o Ministério da Saúde lançou a aplicação móvel (app) NCOVI, que ajuda a montar sistemas de vigilância de bairro: nela os cidadãos podem não só notificar diariamente o seu estado de saúde como fornecer informação sobre casos suspeitos nas suas áreas de residência. Esta app inclui um mapa dos casos detetados que permite que os utilizadores observem o movimento em tempo real de pessoas colocadas em quarentena. Sem valorizar as questões da privacidade, para muitos vietnamitas, os fins justificam os meios.

Pouco depois, a 15 de abril de 2020, foi lançada outra app, a Bluezone, que funciona através de bluetooth e notifica os utilizadores de uma possível exposição ao vírus a dois metros de distância. A Bluezone foi descarregada mais vezes do que apps populares como o Messenger e o TikTok.

Este bairro de Hanói está confinado, como revela o gradeamento à entrada da rua, colocado pela polícia

Este bairro de Hanói está confinado, como revela o gradeamento à entrada da rua, colocado pela polícia

Linh Pham / Getty Images

8. COMUNICAÇÃO CLARA

O primeiro aviso do Ministério da Saúde à população sobre os perigos da doença foi feito a 9 de janeiro de 2020, quando ainda não tinha sido ainda detetado qualquer caso de covid-19 fora da China. Desde então o Governo de Hanói não mais parou de comunicar com o público, em espaços públicos, enviando sms, aproveitando as redes sociais (só o Facebook tem 64 milhões de utilizadores no Vietname) ou adaptando a letra de um popular tema musical vietnamita, agora intitulado “Ghen Co Vy” (Coronavírus Ciumento).

A comunicação frequente — sob o lema “Lutar contra a epidemia é como lutar contra o inimigo” — contribuiu para criar um espírito de comunidade em que cada cidadão se sente motivado a cumprir a sua parte, seja usando a máscara ou tolerando confinamentos.

“Cada cidadão é um soldado, cada casa, aldeia, área residencial é uma fortaleza na luta contra a pandemia.”

Nguyen Xuan Phuc
primeiro-ministro do Vietname
9. RAPIDEZ NA ATUAÇÃO

O Vietname não esperou pela confirmação do primeiro caso positivo dentro de portas para aplicar confinamentos e limitar a mobilidade de quem lá vive. As escolas foram encerradas quando apenas havia notícias de uma “grave pneumonia” na China. Por vezes, as autoridades associaram à rapidez decisões drásticas. Quando, a 25 de julho de 2020, foi detetado o primeiro caso de transmissão local no país, na estância turística de Da Nang, o local foi rapidamente evacuado, o que obrigou à transferência de 80 mil pessoas, a maioria turistas locais. Foi nesta cidade, a 31 de julho, que se registou a primeira vítima mortal no país.

Uma escola primária de portas encerradas, em Hanói

Uma escola primária de portas encerradas, em Hanói

NHAC NGUYEN / AFP / Getty Images

10. GOVERNO AUTORITÁRIO

O regime de partido único e, consequentemente a ausência de oposição política, torna possível uma cadeia de comando única desde o Presidente Nguyen Phu Trong — simultaneamente secretário-geral do Partido Comunista — e a autoridade local na mais pequena aldeia do país. Num contexto de emergência pública, é a situação ideal para passar mensagens, mobilizar recursos, aplicar estratégias e punir, se for caso disso. Desde 14 de abril de 2020 que publicar, nas redes sociais, informação falsa ou distorcida, mentiras e calúnias passou a ser punido com multas. Para um país como o Vietname, que sente estar a travar mais uma guerra biológica, tudo vale para a vencer.

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2021

Polo de Renascimento Comunista em França ( PRCF) PROGRAMA mínimo e máximo

 

 

 

 Contra a repressão fascista policial

 3) Uma fascização desenfreada enraizada na história Durante anos, o PRCF denunciou e combateu a eurofascização na sociedade e nas instituições soberanas, em particular na polícia e no judiciário. Esta fascização, nem surpreendente nem nova - Bertolt Brecht já indicou que "o fascismo não é o oposto da [burguesa, devemos acrescentar] democracia, mas sua evolução em tempos de crise" - é encarnada pelo Prefeito Lallement, de quem Ele também mergulha na negação realidade e negação histórica ao proclamar: «As polícias da aglomeração de Paris não são violentas nem racistas: actuam no quadro do direito à liberdade de todos. Não permitirei que uma instituição cujo papel nos grandes momentos da história deste país tenha sido essencial seja manchada. “Entre esses“ grandes momentos da história ”pode-se destacar - uma lista que está longe de ser exaustiva: A caça aos pacifistas (essencialmente socialistas e sindicalistas) contrários à grande carnificina de 1914-1918; O crescente espancamento dos comunistas na década de 1930 - culminando com a proibição do PCF em setembro de 1939 - bem como a crescente perseguição de estrangeiros e judeus (apesar da exceção da Frente Popular em 1936); Colaboração - salvo exceções honrosas como a Rede de Polícia Honorária dentro da própria Prefeitura de Polícia de Paris - com a Alemanha nazista na luta contra os combatentes da resistência (especialmente os comunistas), os judeus, os "metics", etc., sob o regime de Vichy ; A feroz repressão aos trabalhadores em greve no outono de 1947 e novamente em 1948; A repressão selvagem por oponentes da guerra argelina, notadamente os comunistas assassinados na estação de metrô Charonne em 8 de fevereiro de 1962 - depois de uma ratonnade formal contra os partidários do FLN argelino em Paris em 17 de outubro de 1961; Violência policial perpetrada durante as principais manifestações de maio de 68; A morte de Malik Oussekine em 6 de dezembro de 1986, seguida mais recentemente pelas igualmente trágicas de Rémi Fraisse, Adama Traoré, Zineb Redouane, Steve Calico e Cédric Chouviat. A mídia online Basta! identificou 676 mortes perpetradas por policiais entre janeiro de 1977 e dezembro de 2019 na França! E nos últimos anos, o aumento da repressão dos euro-governos contra todos os líderes sindicais, progressistas e coletes amarelos recusando a destruição do Código do Trabalho, serviços públicos, pensões repartidas e, de forma mais geral, todas as conquistas sociais e democráticas lutou dura luta.

 Soluções:

 Um estado soberano reafirmado, um prelúdio para a República Socialista 

 As medidas emergenciais relativas aos setores soberanos são apenas o prelúdio para a constituição de uma sociedade comunista que resultaria do "declínio do Estado", implicando de antemão uma atuação em três direções concomitantes e complementares: 1) Luta contra todas as formas de ofensas e crimes Em primeiro lugar, uma luta feroz contra todas as formas de impunidade e corrupção, tanto nas instituições (em particular a polícia, justiça, exército e instituições políticas) e nas empresas (começando com as multinacionais), com um endurecimento da legislação contra a “delinquência de colarinho branco” . Sanção exemplar contra todas as delinqüências cotidianas que oprimem a vida dos trabalhadores e cidadãos, desde o rompimento de bens móveis (carros queimados) até espancamentos violentos que podem levar à morte, passando pelas lutas de clãs, gangues e bandos que discutem “territórios” isentos de qualquer forma de lei. Tolerância zero em relação ao tráfico, com dois alvos prioritários: o crime organizado ligado à corrupção da oligarquia capitalista euro-atlântica; delinquentes ligados ao tráfico de armas e drogas e à prostituição, que arruínam a vida de trabalhadores e cidadãos (especialmente em bairros populares). Uma luta feroz contra todas as forças que trabalham para desagregar a República una e indivisível, social e laica (ver medida de emergência nº 23). Pesadas penalidades contra violência verbal (especialmente racismo) e física perpetrada por representantes de serviços públicos soberanos e / ou contra sua pessoa. 2) A reafirmação dos serviços públicos soberanos, da presença dos serviços públicos em todos os territórios Revogação de todas as leis e medidas relacionadas com a “nova gestão pública”. Restauração dos serviços descentralizados do estado em todos os níveis dos territórios da República Dissolução de pseudo- “sindicatos” fascistas e racistas, notadamente na polícia, justiça e serviços penitenciários. Expulsão de todos os elementos reacionários, fascistas e racistas e proibição vitalícia de praticar em qualquer estrutura de serviço público. 

Fim da terceirização de tarefas soberanas para caixas privadas. Restabelecimento das alfândegas terrestres, marítimas e aéreas após a saída da UE, sob a forma de serviço público nacional de combate ao tráfico em particular. Recrutamento massivo com base no concurso interno para a função pública e em concursos nacionais na polícia, justiça, sector prisional e alfândega. Fim do congelamento do índice para funcionários públicos e aumento de salários para funcionários públicos. Estabelecimento de trabalhadores contratados no nível correspondente de qualificação e antiguidade após concurso de estabilidade e melhoria da condição dos trabalhadores contratados antes da posse, com o eventual desaparecimento da condição de contratado. 

Constituição de grande pólo público nacional responsável por florestas e espaços naturais, com severas penalidades contra apropriação privada de florestas estaduais. 

3) Serviços públicos servindo, e sob controle, cidadãos e trabalhadores Revogação da lei de "Segurança Global", da "lei anti-breaker" e das leis Sarkozy modeladas em modelos anglo-saxões que permitem pressão sobre o acusado, autorizando-o a se declarar culpado e condená-lo com base em depoimento anônimo . Dissolução do BAC, IGPN, CRS e todos os demais grupos como o BRAV, gozando de impunidade na repressão indiscriminada e indiscriminada. Estabelecimento de comitês de cidadãos contra a corrupção e para o controle de uma polícia e de uma justiça não "de classe", mas verdadeiramente republicana. Reforma da justiça removendo as disposições que permitem tratamento desigual em benefício da burguesia. Alteração do código penal para aumentar significativamente o número de alternativas à prisão. Reforma do sistema prisional que ponha fim a todo encarceramento em condições indignas, a todas as práticas humilhantes, e permitindo o encarceramento totalmente gratuito. Criação de centros de educação e trabalho (Cedtra), a fim de preparar uma reintegração efetiva dos infratores - se possível - na sociedade. Libertação de prisioneiros por ativismo de esquerda, cujas condições de detenção são inaceitáveis ​​e desumanas.

 Essas medidas devem abrir caminho para a constituição de um estado socialista, com base em: Eleição pela classe trabalhadora de representantes dessa classe para chefiar os setores policial, judiciário e penitenciário. Os advogados profissionais e os policiais formados no regime anterior devem usar suas habilidades técnicas para o serviço do novo aparato do Estado e da nova classe no poder, ou deixar seus cargos. A justiça da classe trabalhadora deve garantir e respeitar em todos os casos os princípios mais avançados da justiça burguesa, a saber, a presunção de inocência e a impossibilidade de condenar sem provas. Integração na polícia de possíveis comitês populares formados para lutar contra as tentativas contra-revolucionárias, voluntários mobilizados em defesa do instrumento de trabalho, etc. Com o estado socialista definido para definhar no comunismo, essas engrenagens do aparato estatal terão que estar cada vez menos nas mãos de profissionais, e cada vez mais diretamente controladas pela classe trabalhadora. A longo prazo, no direito comum, o recurso à prisão deve tornar-se escasso e as sentenças longas tendem a desaparecer, quando as violentas ofensivas contra-revolucionárias forem definitivamente eliminadas. O estado socialista deve, no entanto, manter em funcionamento um aparato repressivo que possa fortalecer rapidamente (aumento de pessoal, endurecimento das penas, simplificação de procedimentos, etc.) para se defender em caso de grave perigo contra-revolucionário ou guerra civil., e isso até o desaparecimento total do imperialismo no mundo.

2021

domingo, 21 de fevereiro de 2021

A ler completo em Academia.edu

 Ano 5, n°9, 201324Entre ruína e desesperoNegação e constituição do sujeito emRobert Kurz e Slavoj Žižek 

Cláudio R. Duarte Raphael F. Alvarenga

 Andrea SartiÉ tanto o ganho quando um só que seja levanta e diz NÃO!Bertolt Brecht, Vida de Galileu(1939) 

Todo protesto tem a sua fecundidade. O que é estéril é querer reduzir o homem ao seu protesto.Albert Camus, última entrevista (1959)

 Parece não haver dúvida que o conceito de sujeito é o mais controverso da crítica social contemporânea, dita pós-metafísica. O problema começa pela determinação precisa dos termos e do referente em debate. Afirmado e negado na teoria e na prática, arriscamo-nos a uma discussão entre surdos se não apontarmos, a cada passo, o sentido histórico da coisa mesma e de seus termos. Sobre esse ponto, em dois críticos do capitalismo avançado, temos posições diametralmente opostas: a afirmação incondicional do sujeito, no filósofo esloveno Slavoj Žižek, e a negação incondicional da forma-sujeito, no teórico alemão Robert Kurz, infelizmente falecido julho passado. Sem buscar uma falsa harmonização, talvez seja possível jogar um contra o outro a fim de revelar as unilateralidades e os passos em falso no campo da ideologia contemporânea. Voltando um pouco aos termos históricos da discussão, digamos então que no Marx da maturidade o conceito de sujeito não figura no primeiro plano,como fundamento a priori, mas é sempre pressuposto em cada ato dos agentes sociais (por isso mesmo são “suportes” das relações burguesas), referindo-se à esfera social da consciência, das necessidades e paixões, dos valores éticos e estéticos etc., em cada indivíduo moderno. Para Marx, sem dúvida, este se põe somente a partir do séculoXVIII, com a constituição interna dos pressupostos do modo de produção capitalista (propriedade privada dos meios de produção e produção mercantilizada). Mas, inversão suprema, o sujeito efetivo predominante era o próprio Capital como totalidade cega e negativa em movimento, o “sujeito automático” da valorização do valor. A crítica materialista pergunta-se não mais pelo sujeito burguês isolado e sua consciência, mas pela práxis social e as formas estruturais que a condicionam. Já em Marx, portanto, temos a crítica do sujeito moderno, este como parte da “ideologia alemã” e das “robinsonadas” da economia política clássica. No entanto, Marx não eliminava simplesmente o conceito. Porque também o proletariado era um “sujeito-sujeitado” a ser negado/conservado/elevado (aufgehoben), isto é, pressupostona práxis revolucionária da classe que suprimiriadialeticamente a dominação capitalista e a si mesma como classe. O que equivalia a uma posição do “homem” como indivíduo livremente associado a outros indivíduos, para além da “pré-história da sociedade humana”. Como tal, esse sujeito pressuposto(e que não tinha nada de um a prioritranscendental) era pouco problemático para Marx, pois, vivendo sob condições opressivas e miseráveis evidentes, ele parecia muito pouco sujeito à ideologia liberal da propriedade, da igualdade e da liberdade. O entrave principal era a construção da práxis comunista e menos a consciência ou o indivíduo que, além de ter de lutar para sobreviver (luta econômica), parecia propenso à luta pela emancipação social (luta política). Apesar de tudo, Marx em certos momentos pagou seu tributo ao otimismo do sujeito do Esclarecimento e à ilusão da História e do progresso irrefreável. É a partir de Lukács que a questão do sujeito retorna ao primeiro plano como problema, sob o contexto de noções opostas como reificação e consciência de classe revolucionária a “consciência imputável” ao proletariado através da práxis organizada pelo Partido leninista. A reificação, como falsa consciência e experiência degradada do trabalho capitalista, seria finalmente dissolvida pelo movimento social organizado. A reificação radical não eliminava a “alma” proletária, que parecia resistente emesmo “ontologicamente” revolucionária, ao modo do Espírito hegeliano, quando despertada pelo Partido e dirigida pelo Estado socialista. É claro que Lukács falava no calor da hora da Revolução Russa. Já nos anos 1930 e 40, Adorno e Horkheimer não alimentavam mais tal esperança no proletariado e muito menos no Partido como representante do sujeito revolucionário. Ainda se tratava de revelar o não-idêntico no mundo, mas não [-] www.sinaldemenos.orgAno 5, n°9, 201326era fácil “encontrá-lo” na práxis histórica, sistema soviético incluso, ou na racionalidade do indivíduo moderno, que se revela como parte de um sistema de total ofuscamento, virando membro da massa de trabalho reproduzida pela indústria cultural ou, no limite, conduzida ao delírio antissemita e a Auschwitz. Daí a busca do sujeito potencialsuprimido, conservado e elevado como momento na esfera da teoria crítica da sociedade e da obra de arte radical, como refúgios de experiência do não-idêntico e de contato com o possível “reino da liberdade” bloqueado pela produção fetichista, reforçada pela política e pela cultura administrada, do sistema social repressivo. Esta a atualidade, a nosso ver, da crítica marxiana e frankfurtiana, e que Kurz, em certo sentido, acompanha de perto: o sujeito por certo tem parte com a ideologia iluminista, é um suporte/apêndice da maquinaria social, mas também, na realidade, algo muito menos que isso quando se degrada a puro objeto, no limite ficando aquém do contrato social e toda lógica de reconhecimento como sujeito burguês no interior da sociedade civil,como massa “supérflua” e “sem valor”, administrada pelo “estado de exceção” mundial. Kurz, então, busca negar em bloco a forma-sujeito como parte integral e sem resto da lógica do valor. A tarefa de Žižek, por outro lado, é tematizar, com o auxílio do retorno a Hegel e à psicanálise lacaniana, um sujeito do inconsciente e da pulsão, que Marx e Kurz, talvez Adorno, pouco ou nada compreenderam, um sujeito supostamente além da coordenadas simbólicas e imaginárias da realidade atual, embora ele se preocupe relativamente pouco com as questões objetivas da economia política e da práxis social efetiva.Os dois autores avançam como ninguém pontos teóricos fundamentais a partir de Hegel, Marx, Freud, Adorno e Lacan. Nossa questão fundamental, como dito, é um confronto dialético entre os dois lados: o que parece faltar de “sujeito” a Kurz, falta de “objeto” a Žižek. De um lado, o diagnóstico da ruína, que parece levar a nada, a não ser por uma ruptura prática que pressupõe ainda alguma forma de “sujeito”, mas que infelizmente é reprimido como conceito, não dá as caras e não ousa dizer o seu nome; do outro lado,certo desespero, que parece redundar nas mesmas ruínas, mas com o perigo mortal de estetizá-las (...)»

sábado, 20 de fevereiro de 2021

 

As cores do racismo português: do colonialismo à actualidade

Como é que ao longo dos séculos o colonialismo português estabeleceu diferenças de estatuto social e cultural e de acesso à cidadania a partir da cor da pele? Que hierarquias se modularam a partir de um espectro cromático em que uns eram mais iguais do que outros?

Cena do filme "Chaimite" (1953) de Jorge Brum do Canto, Cinemateca Portuguesa

Existe racismo em Portugal. Tal é explicitado nos relatórios da secção portuguesa da Amnistia Internacional ou da SOS Racismo. O tema costuma ser evitado ou contornado. Parte-se do princípio de que não existe. Mas como explicar que seja tão estruturante? As respostas, encontrei-as no passado, na história do país. É óbvia a influência do colonialismo, do contacto com o Brasil, com os países africanos (hoje de língua oficial portuguesa) e com os territórios asiáticos. A pesquisa iniciou-se em finais do século XIX, na fase posterior à independência do Brasil, quando houve uma viragem para África e restantes territórios. Analisei a legislação, a produção de conhecimentos e a propaganda colonial. E ainda as exposições que Portugal organizou, ou em que participou, em que foram expostos seres humanos, se procurou mostrar o sucesso da colonização e as razões da sua existência.

Já nos séculos anteriores encontramos no Brasil diferenciações a partir da cor da pele, como mameluco (mistura de portugueses e índios), curiboca (mestiço de segunda geração), mulato (branco e negra), pardo (branco e mulata), cafuso (negro e índia), cabra (negro e mulata), mazombo (descendente de pai e mãe europeus) e crioulo (nascido no Brasil de pai e mãe negros/escravos). Mas a lógica de diferenciação, segundo a qual as cores da pele são evocadas em discursos, saberes, legislação e propaganda, surge de forma evidente na primeira metade do século XX. Como foi ela aplicada para organizar e governar as colónias? Houve espaço para matizações quando a cor não era facilmente identificável ou era subjectiva?

Um império uno, mas todos diferentes

Segundo o Acto Colonial de 1930, “é da essência orgânica da Nação portuguesa (…) possuir e colonizar domínios ultramarinos e (…) civilizar as populações indígenas que neles se compreendam. Este documento legislativo estabeleceu diferenças de direitos e deveres entre os nascidos na metrópole e nas colónias e entre assimilados e indígenas. Apesar de vozes contrárias, como a de Cunha Leal (governador do Banco de Angola), Norton de Matos (ex-governador de Angola) e Bernardino Machado (fundador da cadeira de Antropologia na Universidade de Coimbra em 1885), a diferença de direitos fundada na hierarquia racial foi aprovada e ingressou na Constituição de 1933.

Os princípios do Acto Colonial foram desenvolvidos noutros documentos, como o Código de Trabalho dos Indígenas das Colónias Portuguesas de África de 1928. Embora o trabalho forçado tenha sido abolido em 1938, foram impostas as culturas obrigatórias, isto é, a obrigatoriedade de trabalhar a terra, configurando uma forma de trabalho forçado, e só em 1961, depois do espoletar da guerra em Angola, foram extintas.

O decreto ministerial de 6 de Fevereiro de 1929 cria uma distinção entre os colonizados, separando os indígenas (“indivíduos de raça negra ou dela descendentes que, pela sua ilustração e costumes, se não distingam do comum daquela raça”) e não indígenas. Em 1926 o estatuto de indígena aplicou-se a Angola e Moçambique e no ano seguinte à Guiné e aos territórios das companhias de Moçambique e Niassa. A Carta Orgânica do Império Colonial Português de 1947 exclui explicitamente os cabo-verdianos da classificação de indígenas, assim como as populações do Estado da Índia (Goa, Damão e Diu) e de Macau. Embora o estatuto não vigorasse em São Tomé e em Timor, o indigenato só foi aí excluído pela Lei Orgânica do Ultramar em 1953, que antecedeu o Estatuto dos Indígenas da Guiné, Angola e Moçambique de 1954, que continuou a impor a segregação. Foi abolido apenas em 1961.

Descrições da humanidade

As bases do racismo científico no século XIX encontram-se em formulações anteriores de teorias raciais. Para o filósofo David Hume (1711-1776), os não brancos eram naturalmente inferiores. Naturalistas como Lineu (1707-1778) ou Georges Louis Leclerc, conhecido como “conde de Buffon” (1707-1788), consideraram que o branco era a cor real e natural do homem e os negros e as outras raças eram variações desta cor. Este último, embora contrário à escravatura, afirmou que os negros não tinham muito génio. Os frenologistas, que estudavam a forma do crânio, e os fisionomistas contribuíram para estas formulações.

Vários autores deste período dividiram a humanidade em raças, podendo o número variar entre três a várias dezenas. Para tal podia contribuir a forma do crânio, a língua, diferenças climáticas e geográficas, mas o elemento sempre presente foi a cor da pele. Por exemplo, a divisão do médico Johann Friedrich Blumenbach (1752-1840) em cinco variedades – caucasiana, mongolóide, etíope, americana e malaia – foi muito influente no século XIX.

Se num período inicial os filósofos ou os autores de livros de viagens elaboraram representações raciais, foram depois os médicos e os cientistas, especialmente antropólogos físicos, a contribuir para essa concepção.

Algumas das teorias raciais produzidas anteriormente e em outros países foram adaptadas às populações ultramarinas portuguesas. A política definiu categorias e a ciência engendrou estratégias para apoiar. As cores de pele escuras estiveram associadas ao feio e negativo e as claras ao bonito, inteligente e positivo. Umas foram identificadas com quem era dominado e outras com quem dominava.

A cada cor sua classe

Os autores portugueses basearam-se em várias escalas cromáticas. A escala do médico e antropólogo austríaco Felix von Luschan (1854-1924) foi utilizada pelo médico e antropólogo Germano da Silva Correia (1888-1967) nas populações da Índia portuguesa (1934), e a do médico e antropólogo francês Paul Broca (1824-1880) foi utilizada pelo militar Fonseca Cardoso (1865-1912) em Angola.

Outras escalas foram a Fisher-Saller, dos alemães Eugen Fischer e Karl Saller, para os cabelos, e a de Martin-Schultz, do suíço Rudolf Martin e do austríaco Bruno Schultz, para os olhos. Os portugueses tinham dificuldade em utilizar as escalas, pois não havia correspondência de números, nem todos utilizavam as mesmas tabelas e não havia equivalência entre escalas. Mas concordavam ser preferível usar as tabelas, em vez de termos vagos como loiro, ruivo ou castanho.

O biólogo José Antunes Serra defende no Congresso Nacional de Ciências da População de 1940 a classificação de raças a partir da pigmentação, tendo em conta uma nomenclatura internacional das côres. Estas remetiam, porém, para raças hierarquizadas socialmente, umas consideradas inferiores (de cor mais escura) e outras superiores (de cor mais clara).

Na prática, produziu-se legislação; fizeram-se estudos considerados científicos apresentados em congressos, como o de Antropologia Colonial, em 1934, ou os do Mundo Português, em 1940; os livros únicos do ensino básico e secundário tinham um objectivo claro: passar a mensagem do poder instituído; o mesmo na propaganda veiculada no cinema: incentivava-se a emigração portuguesa para África, onde o negro trabalharia para o branco como acontece nos filmes Feitiço do Império (1940) e Chaimite (1953).

Da máquina administrativa colonial fizeram parte, além do Ministério das Colónias, organismos como a Agência Geral das Colónias (1924-1951), depois Agência Geral do Ultramar (1951-1974), e o Secretariado de Propaganda Nacional (1933-1944), depois Secretariado Nacional de Informação, Cultura Popular e Turismo (1944-1974). O império foi divulgado através da imprensa (por exemplo, O Século); periódicos; revistas, incluindo as missionárias (Missões de Angola e Congo; O Pretinho); literatura colonial; sistema de ensino (livros, cruzeiros, intercâmbios escolares); expressão artística; exposições (como a Exposição Colonial de 1934, no Porto, e a Exposição do Mundo Português de 1940, em Lisboa); e rádio (com a Emissora Nacional). Todos os elementos divulgados eram previamente aprovados de acordo com a censura vigente.

Foto
Cartaz do filme Feitiço do Império (1940) de António Lopes Ribeiro Cinemateca Portuguesa

A ideia de evolução humana, associada a uma escala cromática chegou à consciência popular. Como os matizes das cores nem sempre eram passíveis de ser diferenciados, a expressão indígena albergava vários deles. Essa é uma das explicações para que no contexto das exposições todos os participantes fossem nomeados indígenas (em cartas, catálogos ou jornais), mesmo que não tivessem esse estatuto.

No estrato mais baixo surgiam os africanos (angolanos, moçambicanos e guineenses), depois os são-tomenses e os cabo-verdianos (considerados mestiços e representados como tendo incorporado elementos da suposta civilização – a europeia), depois os timorenses e por fim os habitantes da Índia e de Macau. Esta hierarquia não é estanque e existem exemplos de que estas posições foram alvo de resistência ao longo do tempo, mesmo entre os colonizadores, mas serve para evidenciar como a cor da pele ajudou a estruturar o império e foi um mote central da sua violência e desigualdade.

Foi aos negros angolanos, moçambicanos e guineenses, considerados superiormente robustos, que foi aplicado um regime de trabalho compulsivo. A cor da pele dos asiáticos, menos escura em geral do que a dos africanos, aproximou-os dos europeus. A mestiçagem, contudo, não foi estimulada pelo regime, nem vista como uma solução para o problema da assimilação.

Foto
Capa d’O Século, 16 de Outubro de 1948

Mudanças inacabadas

Com as pressões internacionais, sobretudo após a Segunda Guerra Mundial, o discurso altera-se. A ideia de raça é desacreditada cientificamente. As colónias passam a designar-se províncias ultramarinas a partir de 1951 e os discursos divulgam um país multicontinental, multirracial e onde a colonização tinha sido diferente.

Esta última ideia radica na tese luso-tropicalista de Gilberto Freyre, segundo a qual os portugueses, por terem recebido várias influências, inclusivamente do Norte de África, eram mais propensos a misturar-se amigavelmente com outros povos. Delineada nos anos 30, esta tese foi incorporada nos anos 50 pelo regime português, porque se tornou útil numa altura em que vários outros impérios deixavam de ter legitimidade para perpetuar a violência colonial com base racial.

Associada à universalidade da fé cristã, a disseminação desta tese foi alargada a gerações sucessivas e, apesar da falta de alicerces nos conhecimentos das ciências sociais, continua a ser reproduzida em meios menos informados.

Perduram no mundo e em Portugal fenómenos de discriminação racial e segregação baseados na cor da pele ou no grupo étnico. Em 2020, os assassinatos do afro-americano George Floyd, por um polícia branco nos Estados Unidos, e do actor português Bruno Candé, trouxeram o racismo à tona.

Em Maio de 2020 o movimento Black Lives Matter, surgido em 2013, ganhou nova expressão. Em Portugal há ainda quem negue estas evidências. Após o assassinato de George Floyd, houve quem defendesse que não se tratou de racismo, mas de violência policial excessiva e que Portugal era diferente. Além disso, a forma como por vezes são nomeados os negros continua a reflectir um paternalismo que se filia no período colonial.

Os debates públicos insistem em perguntar se temos ou não um problema de racismo, em vez de passar à discussão de políticas públicas e maneiras de reduzir os fossos sociais. Urge reconhecer este problema, compreender as suas origens e trabalhar no sentido de mudar as mentalidades.


Antropóloga, ICS – ULisboa


Investigação financiada pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia (SFRH/BM/2194/2000)


Viagem à Polónia

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Auschwitz: nele pereceram 4 milhôes de judeus. Depois dos nazis os genocídios continuaram por outras formas.

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Auschwitz, Campo de extermínio. Memória do Mal Absoluto.