Rapidez e robustez: as duas armas com que o Vietname ‘encaixotou’ o vírus
Encostado à China, o Vietname é um caso de sucesso no combate à covid-19. Do governo autocrático à experiência acumulada em contextos de epidemias, a estratégia vietnamita passa essencialmente por antecipar-se aos problemas e atuar com rapidez
26 Fevereiro 2021 9:36
O Vietname, com quase 100 milhões de habitantes, tem dos registos mais eficazes no combate à pandemia de covid-19. Com uma fronteira de cerca de 1300 quilómetros com a China — onde tudo começou —, o país conseguiu contornar os piores cenários verificados em países mais desenvolvidos e com mais meios.
Este país do Sueste Asiático comunicou o seu primeiro caso positivo no longínquo 23 de janeiro de 2020 — uma vietnamita de 35 anos que passou dois meses em Wuhan, numa viagem de negócios —, e as duas primeiras mortes a 30 de julho seguinte. Até esta sexta-feira, segundo a contagem da Universidade Johns Hopkins, contabilizava apenas 2426 casos de infeção e 35 mortes por covid-19.
O facto de o Vietname ter um Governo autocrático pode levantar suspeitas sobre a credibilidade dos números. O infeciologista Guy Thwaites, diretor da Unidade de Pesquisa Clínica da Universidade de Oxford, em Ho Chi Minh (antiga Saigão), garante ao Expresso: “Os números estão corretos. O Governo não está a esconder nada”.
O Vietname é um país jovem, com uma média de idades a rondar os 30 anos, e tem uma taxa de obesidade (fator de risco para a covid-19) extremamente baixa. Mas o que verdadeiramente fez a diferença em relação a países com mais e melhores meios foi, sobretudo, a resposta rápida e robusta com que conseguiu “encaixotar” o vírus.
Da experiência acumulada na gestão de epidemias passadas até uma estratégia de testagem direcionada, há dez pilares do modelo vietnamita que — combinados — têm protegido o país de um cenário de caos.
1. SISTEMA DE SAÚDE DESENVOLVIDO
O Muro de Berlim ainda não caíra, mas no Vietname, governado pelo Partido Comunista, já havia a noção de que algo teria de mudar. Em 1986 um conjunto de reformas económicas que ficaram conhecidas como “Doi Moi” visaram a transformação de uma economia planificada centralizada para uma economia de mercado de orientação socialista. O sector da saúde foi dos que beneficiaram de forte investimento. Entre 2000 e 2016 os gastos com a saúde pública aumentaram em média 9% por ano, per capita. A capacidade do sistema de saúde vietnamita possibilita que, atualmente, todos os casos positivos de covid-19 sejam hospitalizados, independentemente dos sintomas do paciente, sem que os hospitais entrem em rutura.
2. EXPERIÊNCIA ACUMULADA
O Vietname tem experiência de combate a epidemias — a Síndrome Respiratória Aguda Grave (SARS, em 2003-3004), a gripe das aves (2004-2005) e o Zika (2016) — que agora se revelou preciosa para atacar o SARS-CoV-2. Em 2003, o país tornou-se mesmo o primeiro a ser retirado pela Organização Mundial de Saúde (OMS) da lista de territórios afetados pela SARS. Decorrente de todas estas emergências, o Vietname está hoje dotado de um centro nacional de operações de emergência de saúde pública, equipado com epidemiologistas, e um sistema nacional de vigilância de saúde pública. Tudo contribui para que as autoridades atuem com conhecimento de causa e a população reconheça e obedeça.
3. DADOS CENTRALIZADOS
Há cerca de dez anos, o Vietname transferiu para a Internet o seu robusto sistema de recolha e cruzamento de dados de entidades de saúde pública, agilizando a reação aos problemas. Desde 2016, os hospitais são obrigados a reportar determinadas doenças a uma base central num período de 24 horas. Isto permite ao Ministério da Saúde acompanhar uma crise epidemiológica em tempo real.
4. VIGILÂNCIA DE PROXIMIDADE
O Vietname tem um programa de vigilância comunitária que capacita professores, farmacêuticos, líderes religiosos, responsáveis comunitários e até curandeiros para relatarem situações suspeitas. Os alertas são dados, por exemplo, perante aglomerados de pessoas com sintomas semelhantes que possam indiciar a emergência de um surto.
5. TESTES DIRECIONADOS
Se o Vietname tem uma testagem à covid-19 per capita relativamente baixa, lidera destacadíssimo a lista dos países que mais testam por caso positivo. Em vez de realizar testes em função dos sintomas da população, o Vietname optou por testar com base na exposição ao risco, priorizando as pessoas identificadas no rastreamento de contactos dos casos positivos e acorrendo com rapidez a edifícios ou bairros onde se registavam surtos.
Esta estratégia passou por um amplo rastreamento em redor de cada caso positivo (F0) envolvendo quem contactou com a pessoa infetada nos 14 dias anteriores (F1). Se F1 testasse positivo era hospitalizado, se testasse negativo ficava 14 dias de quarentena num centro administrado pelo Governo. Contactos próximos de um paciente F1 (F2) ficavam em isolamento em casa durante duas semanas. E assim sucessivamente até ao grau F5.
6. CONFINAMENTOS RIGOROSOS
Cerca de um mês antes de a OMS classificar a epidemia de covid-19 como “pandemia” (o que aconteceu a 11 de março de 2020) e apelar à adoção de “ações urgentes e agressivas” para inverter o rumo da situação, já as autoridades vietnamitas confinavam localidades. Em meados de fevereiro, Son Loi foi isolada durante quase um mês quando se descobriu que seis dos seus cerca de 10 mil habitantes estavam entre os 16 casos de covid-19 detetados no país.
Outro tipo de confinamento rigoroso aconteceu em abril seguinte, quando a localidade de Dong Van (7600 habitantes) ficou confinada 24 horas enquanto aguardava pelo resultado de testes à covid-19 feitos a moradores suspeitos.
Na fase inicial da pandemia, as autoridades vietnamitas lidaram com o problema com rédea muito curta, mais ainda quando foram detetados casos importados. As medidas passaram não só pelo isolamento de pessoas que tinham contactado com pessoas infetadas, ou que viviam na mesma rua, ou que tinham viajado no mesmo avião. Muitos passageiros oriundos de países fortemente afetados pela pandemia ficaram duas semanas de quarentena nos centros do Governo. E os voos internacionais foram desviados dos aeroportos onde partiam e chegavam voos domésticos.
7. TECNOLOGIA INTRUSIVA
A resposta vietnamita à covid não dispensou a tecnologia. Com a doença no país há menos de dois meses, o Ministério da Saúde lançou a aplicação móvel (app) NCOVI, que ajuda a montar sistemas de vigilância de bairro: nela os cidadãos podem não só notificar diariamente o seu estado de saúde como fornecer informação sobre casos suspeitos nas suas áreas de residência. Esta app inclui um mapa dos casos detetados que permite que os utilizadores observem o movimento em tempo real de pessoas colocadas em quarentena. Sem valorizar as questões da privacidade, para muitos vietnamitas, os fins justificam os meios.
Pouco depois, a 15 de abril de 2020, foi lançada outra app, a Bluezone, que funciona através de bluetooth e notifica os utilizadores de uma possível exposição ao vírus a dois metros de distância. A Bluezone foi descarregada mais vezes do que apps populares como o Messenger e o TikTok.
8. COMUNICAÇÃO CLARA
O primeiro aviso do Ministério da Saúde à população sobre os perigos da doença foi feito a 9 de janeiro de 2020, quando ainda não tinha sido ainda detetado qualquer caso de covid-19 fora da China. Desde então o Governo de Hanói não mais parou de comunicar com o público, em espaços públicos, enviando sms, aproveitando as redes sociais (só o Facebook tem 64 milhões de utilizadores no Vietname) ou adaptando a letra de um popular tema musical vietnamita, agora intitulado “Ghen Co Vy” (Coronavírus Ciumento).
A comunicação frequente — sob o lema “Lutar contra a epidemia é como lutar contra o inimigo” — contribuiu para criar um espírito de comunidade em que cada cidadão se sente motivado a cumprir a sua parte, seja usando a máscara ou tolerando confinamentos.
“Cada cidadão é um soldado, cada casa, aldeia, área residencial é uma fortaleza na luta contra a pandemia.”
Nguyen Xuan Phuc
primeiro-ministro do Vietname
9. RAPIDEZ NA ATUAÇÃO
O Vietname não esperou pela confirmação do primeiro caso positivo dentro de portas para aplicar confinamentos e limitar a mobilidade de quem lá vive. As escolas foram encerradas quando apenas havia notícias de uma “grave pneumonia” na China. Por vezes, as autoridades associaram à rapidez decisões drásticas. Quando, a 25 de julho de 2020, foi detetado o primeiro caso de transmissão local no país, na estância turística de Da Nang, o local foi rapidamente evacuado, o que obrigou à transferência de 80 mil pessoas, a maioria turistas locais. Foi nesta cidade, a 31 de julho, que se registou a primeira vítima mortal no país.
10. GOVERNO AUTORITÁRIO
O regime de partido único e, consequentemente a ausência de oposição política, torna possível uma cadeia de comando única desde o Presidente Nguyen Phu Trong — simultaneamente secretário-geral do Partido Comunista — e a autoridade local na mais pequena aldeia do país. Num contexto de emergência pública, é a situação ideal para passar mensagens, mobilizar recursos, aplicar estratégias e punir, se for caso disso. Desde 14 de abril de 2020 que publicar, nas redes sociais, informação falsa ou distorcida, mentiras e calúnias passou a ser punido com multas. Para um país como o Vietname, que sente estar a travar mais uma guerra biológica, tudo vale para a vencer.
Sem comentários:
Enviar um comentário