Ano 5, n°9, 201324Entre ruína e desesperoNegação e constituição do sujeito emRobert Kurz e Slavoj Žižek
Cláudio R. Duarte Raphael F. Alvarenga
Andrea Sarti–É tanto o ganho quando um só que seja levanta e diz NÃO!Bertolt Brecht, Vida de Galileu(1939)
Todo protesto tem a sua fecundidade. O que é estéril é querer reduzir o homem ao seu protesto.Albert Camus, última entrevista (1959)
Parece não haver dúvida que o conceito de sujeito é o mais controverso da crítica social contemporânea, dita pós-metafísica. O problema começa pela determinação precisa dos termos e do referente em debate. Afirmado e negado na teoria e na prática, arriscamo-nos a uma discussão entre surdos se não apontarmos, a cada passo, o sentido histórico da coisa mesma e de seus termos. Sobre esse ponto, em dois críticos do capitalismo avançado, temos posições diametralmente opostas: a afirmação incondicional do sujeito, no filósofo esloveno Slavoj Žižek, e a negação incondicional da forma-sujeito, no teórico alemão Robert Kurz, infelizmente falecido julho passado. Sem buscar uma falsa harmonização, talvez seja possível jogar um contra o outro a fim de revelar as unilateralidades e os passos em falso no campo da ideologia contemporânea. Voltando um pouco aos termos históricos da discussão, digamos então que no Marx da maturidade o conceito de sujeito não figura no primeiro plano,como fundamento a priori, mas é sempre pressuposto em cada ato dos agentes sociais (por isso mesmo são “suportes” das relações burguesas), referindo-se à esfera social da consciência, das necessidades e paixões, dos valores éticos e estéticos etc., em cada indivíduo moderno. Para Marx, sem dúvida, este se põe somente a partir do séculoXVIII, com a constituição interna dos pressupostos do modo de produção capitalista (propriedade privada dos meios de produção e produção mercantilizada). Mas, inversão suprema, o sujeito efetivo predominante era o próprio Capital como totalidade cega e negativa em movimento, o “sujeito automático” da valorização do valor. A crítica materialista pergunta-se não mais pelo sujeito burguês isolado e sua consciência, mas pela práxis social e as formas estruturais que a condicionam. Já em Marx, portanto, temos a crítica do sujeito moderno, este como parte da “ideologia alemã” e das “robinsonadas” da economia política clássica. No entanto, Marx não eliminava simplesmente o conceito. Porque também o proletariado era um “sujeito-sujeitado” a ser negado/conservado/elevado (aufgehoben), isto é, pressupostona práxis revolucionária da classe que suprimiriadialeticamente a dominação capitalista e a si mesma como classe. O que equivalia a uma posição do “homem” como indivíduo livremente associado a outros indivíduos, para além da “pré-história da sociedade humana”. Como tal, esse sujeito pressuposto(e que não tinha nada de um a prioritranscendental) era pouco problemático para Marx, pois, vivendo sob condições opressivas e miseráveis evidentes, ele parecia muito pouco sujeito à ideologia liberal da propriedade, da igualdade e da liberdade. O entrave principal era a construção da práxis comunista e menos a consciência ou o indivíduo que, além de ter de lutar para sobreviver (luta econômica), parecia propenso à luta pela emancipação social (luta política). Apesar de tudo, Marx em certos momentos pagou seu tributo ao otimismo do sujeito do Esclarecimento e à ilusão da História e do progresso irrefreável. É a partir de Lukács que a questão do sujeito retorna ao primeiro plano como problema, sob o contexto de noções opostas como reificação e consciência de classe revolucionária –a “consciência imputável” ao proletariado através da práxis organizada pelo Partido leninista. A reificação, como falsa consciência e experiência degradada do trabalho capitalista, seria finalmente dissolvida pelo movimento social organizado. A reificação radical não eliminava a “alma” proletária, que parecia resistente emesmo “ontologicamente” revolucionária, ao modo do Espírito hegeliano, quando despertada pelo Partido e dirigida pelo Estado socialista. É claro que Lukács falava no calor da hora da Revolução Russa. Já nos anos 1930 e 40, Adorno e Horkheimer não alimentavam mais tal esperança no proletariado e muito menos no Partido como representante do sujeito revolucionário. Ainda se tratava de revelar o não-idêntico no mundo, mas não [-] www.sinaldemenos.orgAno 5, n°9, 201326era fácil “encontrá-lo” na práxis histórica, sistema soviético incluso, ou na racionalidade do indivíduo moderno, que se revela como parte de um sistema de total ofuscamento, virando membro da massa de trabalho reproduzida pela indústria cultural ou, no limite, conduzida ao delírio antissemita e a Auschwitz. Daí a busca do sujeito potencial–suprimido, conservado e elevado como momento –na esfera da teoria crítica da sociedade e da obra de arte radical, como refúgios de experiência do não-idêntico e de contato com o possível “reino da liberdade” –bloqueado pela produção fetichista, reforçada pela política e pela cultura administrada, do sistema social repressivo. Esta a atualidade, a nosso ver, da crítica marxiana e frankfurtiana, e que Kurz, em certo sentido, acompanha de perto: o sujeito por certo tem parte com a ideologia iluminista, é um suporte/apêndice da maquinaria social, mas também, na realidade, algo muito menos que isso quando se degrada a puro objeto, no limite ficando aquém do contrato social e toda lógica de reconhecimento como sujeito burguês no interior da sociedade civil,como massa “supérflua” e “sem valor”, administrada pelo “estado de exceção” mundial. Kurz, então, busca negar em bloco a forma-sujeito como parte integral e sem resto da lógica do valor. A tarefa de Žižek, por outro lado, é tematizar, com o auxílio do retorno a Hegel e à psicanálise lacaniana, um sujeito do inconsciente e da pulsão, que Marx e Kurz, talvez Adorno, pouco ou nada compreenderam, um sujeito supostamente além da coordenadas simbólicas e imaginárias da realidade atual, embora ele se preocupe relativamente pouco com as questões objetivas da economia política e da práxis social efetiva.Os dois autores avançam como ninguém pontos teóricos fundamentais a partir de Hegel, Marx, Freud, Adorno e Lacan. Nossa questão fundamental, como dito, é um confronto dialético entre os dois lados: o que parece faltar de “sujeito” a Kurz, falta de “objeto” a Žižek. De um lado, o diagnóstico da ruína, que parece levar a nada, a não ser por uma ruptura prática que pressupõe ainda alguma forma de “sujeito”, mas que infelizmente é reprimido como conceito, não dá as caras e não ousa dizer o seu nome; do outro lado,certo desespero, que parece redundar nas mesmas ruínas, mas com o perigo mortal de estetizá-las (...)»
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