J.A. NOZES PIRES
Crítica do Direito Burguês
Primeira Parte:
O que é o Espaço Público?
Dizendo de uma maneira inicial e genérica espaço público é tudo que não é espaço privado, entendendo-se este como o espaço da vida familiar ou individual. É discreto, em certos casos uma fortaleza de silêncio onde se desenrolam dramas que a vizinhança ignora. O direito comum garante esta privacidade. Até certo ponto.
Falamos em espaço não só físico, mas social. Compreende o livre pensamento, a livre orientação filosófica, religiosa, política, sexual. A vida privada. Contudo, sem a livre expressão no espaço público não se realizaria, não falaríamos sequer de liberdade. Portanto, as liberdades privadas, a sua realização, exigem o espaço público. Os direitos individuais têm de ser garantidos e protegidos por normas públicas. Quando isso não se verifica – por exemplo na ditadura fascista que foi derrubada em 25 de Abril de 1974- os indivíduos revoltam-se legitimamente contra as forças que reprimem o exercício dos seus direitos. O espaço público, portanto, não é pura abstração: é o conjunto dinâmico e potencialmente conflitual de estamentos ou classes sociais e das instituições económicas, políticas e ideológicas que o controlam ou nele se digladiam. Os direitos e liberdades modernas constituem conquistas civilizacionais, para as quais avulta o papel das lutas de classes. Nas doutrinas liberais que conformaram os Estados modernos de Direito distinguia-se a “sociedade civil” do Estado, não ficando claro se a “sociedade civil” era, ou é, constituída apenas pelo espaço privado (o espaço das atividades económicas) ou também pelo espaço público. Na realidade todo Estado, ontem e hoje, intervém no espaço público, seja através de consensos, seja pela força. Qualquer classe dominante tem necessitado até hoje de um poder administrativo centralizado e um conjunto de aparelhos de coerção e persuasão. O espaço público é, portanto, controlado por modos que se vão sofisticando e que dependem em primeiro lugar da corelação de forças e dos interesses dos sectores sociais que exercem a dominação. Se gozarem de força suficiente e se os seus interesses estiverem em perigo no confronto de classes, recorrem à violência e às ditaduras; se não, utilizam dispositivos menos coercivos, ou controladores por outros modos, dispondo sempre do monopólio da força (militar, policial).
Entre esses dispositivos aquele de que vos quero falar é o Direito. O Direito é uma criação do império romano. Foi esquecido na Idade das Trevas e em grande parte da Idade Média. Foi ressuscitado no século XVI para se adequar à nova “classe média”- a Burguesia- (caso da Holanda) e aos Estados absolutos de alianças de classes (Inglaterra). Tentativa de submeter ou organizar as sociedades à Lei, e não à tradição e à religião. Nesse afã o papel dos filósofos foi relevante: Jean Bodin (1530-1596), Hugo Grócio (1583-1645), Thomas Hobbes (1588-1679), John Locke (1632-1704). O que estava subjacente eram interesses económicos conflituantes expressos claramente como tal ou sob a moldura categorial filosófica. As disputas teológicas que acabaram por se confrontar em guerras prolongadas que alcançaram uma dimensão bárbara que convém não olvidar, foram expressão desses interesses em conflito, económicos e jurídicos. Na composição dos múltiplos adversários em confronto encontramos burgueses e aristocratas, príncipes, monarcas e chefes religiosos, ou seja, não existiram somente dois exércitos em presença: a burguesia e a nobreza feudal. A alta burguesia comercial competia com a alta burguesia entre países ou impérios diferentes, competia com a aristocracia feudal e com sectores da pequena e média burguesia e com os camponeses e artesãos. A nobreza dividia-se entre o sector que apoiava a centralização em monarquias absolutas e os grandes latifundiários feudais. Os resultados que perduraram mais de dois séculos avaliam-se pela correlação de forças: nuns casos monarquias absolutas que não facilitavam sempre o pleno desenvolvimento do capitalismo (assim sucedeu em Portugal), noutros casos parlamentos poderosos com influência burguesa (e alguns monarcas excecionais), como no caso inglês. E foi nas repúblicas burguesas (Itália, Holanda) e na Inglaterra que o Direito moderno mais depressa se constituiu. Os juristas e filósofos burgueses (refiro-me às opções de classe que os escritos deles refletiam) criaram as teorias e as normas que protegiam os interesses moventes no espaço privado face ao poder estatal na época em que não detinham o comando total. A partir da conquista deste passou-se à reorganização dos seus aparelhos constituintes, incluindo o aparelho jurídico e legislativo.
Os Estados Modernos (alianças entre as cortes e a burguesia) estabeleceram, por conseguinte, a separação entre o Estado e a “sociedade civil”. Dois planos de ação com diferentes finalidades e regras de funcionamento que se consolidaram com a hegemonia burguesa. No plano privado considerava-se que os indivíduos gozam de liberdade de agir segundo sua vontade e interesse; no plano público, os indivíduos, agora designados “cidadãos”, decidem de forma coletiva sobre assuntos de interesse geral.
Se o interesse predominante na relação jurídica se referir ao particular o domínio será do Direito Privado, se for público refere-se ao Direito Público. O Direito Público é composto de normas obrigatórias para todos; o Direito privado respeita a autonomia da vontade e os interesses dos particulares (na realidade não é tanto assim: a proteção dos direitos fundamentais é do Direito Público e não do Privado embora se referira a interesses particulares e no Direito Privado verifica-se obrigatoriedade de determinados contratos).
Esta incursão no Direito é útil porque nos permite recordar que os termos “espaço público” e “espaço privado” exprimem realidades objetivas de natureza social que adquiriram novos conteúdos a partir dos séculos XVI e XVII sob a influência dos grandes juristas da época que defendiam a constituição do Estado moderno, a centralização do poder nos monarcas contra os poderes tradicionais dos grandes proprietários fundiários. Protegendo-as protegiam os grandes negócios da expansão marítima, isto é, do colonialismo. Mais depressa ou mais devagar consoante a correlação das forças em presença, a práxis refletiu-se nas teorias jurídico-políticas e estas, logo que estabelecidas, estimularam as práticas sociais, garantindo-as. Ou seja, não foi o Direito que originariamente materializou as novas relações sociais – relações de produção – mas o invés. O desenvolvimento da classe dos artesãos, a libertação de jornaleiros relativamente às formas de servidão nos campos, a migração de populações para as cidades sob o efeito da expropriação a que foram sujeitos ou por outras razões, o desenvolvimento dos mercados, o fortalecimento da classe dos comerciantes, a crescente utilização do dinheiro (o saque do oiro e prata nas Américas), o comércio das especiarias e, em seguida, o tráfico de escravos para as plantações nas Américas. Em suma, antes da Revolução Industrial do século XIX, o capitalismo (comercial, bancário) já se encontrava firmemente implantado e, por isso mesmo, se verificou esse revolucionamento permanente das técnicas, a conversão dos artesãos e outros trabalhadores sem meios de produção em proletariado. Os filósofos da política, da economia, do direito, foram dando conta destes processos a que chamamos Modernidade. A civilização burguesa.
A separação entre os novos Estados e a sociedade civil, os interesses privados, foi um passo fundamental. À burguesia interessava esta separação, a legalidade dos seus contratos privados, o direito a constituírem negócio e a enriquecerem sem obrigações de pagamento de determinados impostos a que eram obrigados nos latifúndios e desobrigados nas cidades.
Foi a luta cada vez mais aguerrida, nalguns países muito prolongada (como sucedeu entre nós), pela conquista dos direitos civis e políticos da “classe média” europeia. Direitos que exprimiam os seus interesses particulares mas que se apresentavam pelas fórmulas dos filósofos como interesses universais, interesses da Razão. Interesses da esfera privada que pouco a pouco se convertiam em interesses da esfera pública (Rés-pública). Entenda-se: esfera (espaço) privada que ao Estado cabia proteger. Da conquista de uma esfera privada (a dos negócios) passou-se para a luta pela conquista do “público”, o Estado. A República – o Estado demoliberal- exprime esta reivindicação e realiza-a. A Revolução Francesa, conduzida pela pequena burguesia, é a expressão e realização do novo Direito. Então emancipador, então revolucionário. Por pouco tempo.
Ora, o direito de produzir, comprar, vender, distribuir, adquirir as fontes dos recursos, desde a criação de pastos e ovelhas para a lã, das oficinas manufatureiras, até ao comércio de longo curso e aos bancos, esse direito, dizia, exigia liberdades políticas: liberdade de pensar de modo diferente da tradição, sobrepondo-se a esta, e de exprimir novos valores (riqueza). E, sobretudo na fase em que a burguesia era ainda apenas a “classe média” (“terceiro estado”), exigia a discussão livre das ideias (filósofos, juristas), embora esta discussão “racional” não viesse a ser suficiente e a solução violenta e revolucionária veio a impor-se. Sempre que era a pequena burguesia democrática que conduzia a ação. A alta burguesia (comercial, manufatureira, bancária) nunca realizou, liderou ou desejou, revoluções e programas radicais em parte alguma. Quando se diz que «as revoluções costumam devorar os seus próprios filhos» também significa que foi aquela burguesia que, entretanto, enriqueceu, que eliminou os líderes radicais e esmagou a plebe.
Temos, assim, o século XVI de Lutero, Thomas More, Erasmo, Calvino, Jean Bodin; o século XVII, de Thomas Hobbes, de Baruch Espinosa, de John Locke, de Leibniz; o século XVIII, das Luzes ou da Ilustração, de Montesquieu,Voltaire, Turgot, D´Alembert, Diderot, Rousseau, Helvétius, no qual a influência inglesa foi determinante, isto é, de David Hume, Adam Smith e outros filósofos escoceses. Teríamos entretanto os filósofos da Revolução norte-americana, Thomas Jefferson e Thomas Paine. Tendo como referência as Constituições Políticas norte-americana e francesa irrompem pela América latina guerras de independência nacional. Na Europa difunde-se o código civil napoleónico, esteio das leis civis contemporâneas.
II. A consciência privada
Na doutrina burguesa o espaço privado era, e é, o domínio da subjetividade, do Eu, da vontade e da consciência. Esse algo inato ou apriorístico para as filosofias idealistas alemãs. Nas filosofias empiristas inglesas (nomeadamente David Hume), nos fundadores do liberalismo, a perspetiva era completamente diferente: a consciência mantem-se, é claro, como sendo do domínio subjetivo e totalmente privado, porém a mente era comparada a um papel em branco, ou um quadro preto escolar onde a experiência – as sensações e perceções- iam inscrevendo as impressões, uma espécie de tijolos das ideias. A experiência contra os apriorismos. Esta diferença sempre me surpreendeu. Acaso Kant e Fichte não eram adeptos do liberalismo burguês? Eram-no e contudo o idealismo germânico não se identifica de modo algum com o empirismo e com o utilitarismo. No caso das filosofias inglesas, que vão exercer uma profunda influência nos mais importantes filósofos do Iluminismo francês, a consciência privada, digamos assim, é, em grande parte, um produto social, dos hábitos e das experiências, tal como se pode constatar no grande filósofo escocês David Hume (Edimburgo, 1711-1776) ou em Helvétius (Paris,1715-1771).
Dizia eu que a subjetividade, ou o indivíduo, é o eixo sobre o qual rola a doutrina liberal. E tal se nota em particular em um dos seus mentores: John Stuart Mill (1806/1873). Prazer/sofrimento, felicidade/infelicidade, eis os pares antinómicos em que se apoia a sua doutrina. Um racionalismo que se tenta conjugar com sentimentos. Um bem particular, individual, que dificilmente se concilia com o bem público, fragilidade básica que sempre perseguiu o liberalismo. O útil remete-se à esfera puramente da consciência individual ou possibilita uma definição universal, um denominador comum? É a dificuldade, ou mesmo a contradição, em que se envolve a doutrina de Mill e, de maneira geral, o utilitarismo burguês. Ou resvala para o puro atomismo, individualismo quase associal ou, pelo menos, adverso a toda a instituição estatal externa, ou é ainda possível uma moral coletiva, o tal “bem comum” ou “rés publica” que pregavam os republicanos positivistas? O filósofo norte-americano John Rawls (1921/2002), numa época de menos otimismo que a de Mill, deu-se conta dessa dificuldade e tentou resolvê-la na sua célebre obra “Uma Teoria da Justiça”, donde resultou uma social-democracia mitigada à qual, segundo estudos recentes, se mostra favorável a maioria dos norte-americanos. Enfim, dessa contradição nas teorias liberais entre a esfera privada onde se movimenta o capital, e o Estado social, brotaram, no século XIX, doutrinas alternativas conhecidas de modo geral por socialistas.
III. O liberalismo
Que importa esta deriva para o assunto que aqui nos traz? Em primeiro lugar, para reafirmar o que se sabe: o liberalismo é uma doutrina originalmente inglesa, fecundada num novo modo de produção – o capitalismo- a que deu resposta e justificação; em segundo lugar, o sujeito (ou a subjetividade) de que se fala aí é o sujeito burguês, ainda que apresentado como universal e, sobretudo, natural. Este sujeito corresponderia à “natureza humana”, essa ficção engendrada genialmente por David Hume e seu amigo Adam Smith para fundar a suposta apetência natural pela mercadoria. Sujeito dotado de direitos, direitos naturais. Sendo, então, naturais, como se concilia esta tese com a descrição de uma mente à partida em branco? Julgo que esta contradição nunca foi inteiramente resolvida. Convinha aos filósofos intérpretes dos interesses burgueses, a começar pelo grande John Locke, a ideia de que a experiência social nos informa e forma, para combater as ficções das ideias inatas e outras substâncias, em que sempre se apoiou a filosofia clerical-feudal. Abria-se assim um novo caminho para legitimar a mudança social e os novos valores que a burguesia transportava. Para conquistar o mundo era necessário que o mundo fosse convertido à nova ideologia. Civilizações antiquíssimas foram literalmente arrasadas. Relações comunitárias, eliminadas. O tráfico de dez milhões de africanos tornou-se um negócio florescente, para o qual os portugueses contribuíram com metade do total.
IV. O espaço privado
Ora, pois, convinha aos seguidores que os direitos fossem de origem natural, portanto, legítimos e inalienáveis, fundados na natureza. Qual natureza? A branca, evidentemente, não a negra ou dos nativos americanos. Quais direitos? Obviamente em primeiro lugar o direito à livre iniciativa de utilizar a mercadoria- força de trabalho e, através dela, apropriar-se do excedente, isto é, da mais-valia. O excedente é o tempo que excede as horas necessárias para o trabalhador saldar a sua dívida: o salário, sem o qual não pode reproduzir indefinidamente a sua força de trabalho. Por conseguinte, esse tempo, composto das duas frações, da vida do trabalhador, é propriedade do capitalista, sob contrato de compra e venda ou sem contrato nenhum. O tempo restante do trabalhador, o chamado “tempo livre”, é o tempo do seu repouso e do consumo. Porém, não é inteiramente dele: irá comprar no mercado os bens que outros trabalhadores produziram, amarrado a esse círculo que lhe escapa da realização do capital. O seu tempo “livre” é, assim em grande parte senão mesmo na sua totalidade, o tempo do consumo. Posta a coisa em termos de liberdade, ele não é livre desde o começo até ao fim, contudo, o próprio capitalista também não o é inteiramente. O capitalismo tornou-se numa espécie de máquina gigantesca, abstrata, autónoma, que produz e reproduz contradições que transcendem as intenções dos seus intervenientes.
O espaço privado é, portanto, o espaço-tempo onde se exerceria a livre escolha que deu substância ao liberalismo até aos nossos dias. Livre escolha significa “vontade livre”. Decisão inteiramente pessoal onde nenhum poder externo pode intervir (essa conceção ilusionista que o filósofo Kant tão bem engendrou). Onde se manifesta politicamente? Nos processos eletivos. Expressão da vontade do povo, no qual reside, em primeira instância, a soberania. Sim, mas isso foi mais tarde. De início só votavam os burgueses e os aristocratas. O verdadeiro Povo, o restante, era apenas escumalha. “Vontade livre” sim, mas só burguesa.
V. O direito burguês
O que distingue a teoria marxista das outras teorias e filosofias na resposta à pergunta «Qual o fundamento do Direito?» é o seguinte: todo e qualquer direito possui uma natureza de classe da qual derivam as respetivas normas. As formações económico-sociais estando como sempre estiveram divididas em classes são atravessadas por desigualdades e conflitos no decorrer dos quais uma classe conquista o poder político, económico, cultural. Na formação capitalista a burguesia domina os principais meios de produção e as correlativas superestruturas. Domina a letra e a prática da Lei.A diversidade de normas entre países governados pelo modo capitalista de produção pode ser relativamente grande e, nuns casos, serem elas mais progressistas do que em muitos outros, que tal não altera o fundamento e a essência. De resto, existem mais do que uma forma de direito em determinados regiões e países.
A questão fundamental que devemos colocar relativamente ao direito de classe é, por conseguinte, caracterizar a sua função social (económica, política, ideológica). Uma outra questão consequente é saber distinguir o direito burguês fascista (ou com outro nome com que se disfarce), do direito burguês demoliberal. Por fim, quando revolucionado o modo de produção capitalista, eliminada a burguesia como classe possidente, se continuará a ser necessário o direito.
O direito é moldado conforme os interesses do poder hegemónico capitalista. Esse poder terá de ser fundamentalmente económico, podendo variar, dentro de certos limites, o regime ou a forma política. O regime ditatorial fascista que foi derrubado pela violência em 25 de Abril de 1974 e pela revolução popular nos meses subsequentes foi uma forma de regime capitalista que tinha o seu próprio direito, a sua própria Constituição. Nela constava um conjunto de direitos e liberdades formais que eram negados nos artigos seguintes. As polícias prendiam e os juízes julgavam conforme as leis elaboradas e aprovadas pelas instituições fascistas. Algumas leis eram meramente formais, de fachada, não se cumpriam; outras, eram claramente de teor fascista e colonialista. Este exemplo, tão vívido ainda na nossa memória, aplica-se ipsis verbis a todas as ditaduras nazi-fascistas do século passado desde a Europa às Américas e a outros continentes nos quais alcançaram tempo suficiente para se consolidarem e se rodearem de «legitimidade». Os liberais gostam de classificar o regime demoliberal de «Estado de Direito» para o distinguirem dos regimes ditatoriais. Na realidade, todos os regimes apressam-se a dotarem-se de leis e todas as leis são normas. As normas constituem o conteúdo do direito mas não o seu verdadeiro fundamento. A classe ou o sector de classe que gozar da maior força ou poder, impõe o direito que lhe convém. A vox populi, o senso comum, sabe avaliar esta asserção, patente nos seus vitupérios contra os «políticos» e os «ricos» com as suas leis talhadas à medida. A ditadura fascista de Salazar e Caetano não foi de facto exclusivamente deles obviamente. Já foram há muito identificados os capitalistas e latifundiários e outros sectores sociais que com ela beneficiaram. Não só beneficiaram como foram os artífices desse regime, forjando as suas leis e aplicando-as. Ao serviço deles tiveram todos os professores de direito e juízes que precisaram. A minoria de renitentes ou recalcitrantes era reprimida brutalmente. O país e os portugueses sofreram uma experiência que, de tão longeva e terrorista, é um manancial de lições básicas de política, economia, direito. Ou devia ser, se os tratados e manuais propiciassem aos estudantes factos e, sobretudo, uma reflexão sobre os factos. A natureza de classe do direito mostrar-se-ia com clareza; e é por isso que, nas academias e nos tratados os factos são omissos, outros inventados ou distorcidos, e um largo manto diáfano de abstrações neutraliza a potência subversiva de uma clarividente reflexão.
O Direito parece funcionar apenas na esfera da circulação do capital, de facto legaliza a produção e possibilita-a. É essa a sua função. O Direito institui e legaliza a propriedade privada no capitalismo, protege-a, justifica todas as ações punitivas que atentem contra ela e consensualiza-a de tal modo que nem sequer se discute como se fosse um direito natural. O que se aprende desde os bancos da escola é a narrativa: “todo e qualquer cidadão é livre de adquirir ou constituir a sua propriedade desde que cumpra os requisitos estabelecidos e todos os cidadãos encontram-se em igualdade nesta situação”.
Por conseguinte, o direito intervém na esfera da produção. Ajuda a criar novas relações sociais compatíveis com as relações de produção, ou pode contrariar caducas relações secundárias (no interior do próprio capitalismo) para introduzir folgas no processo de exploração, aumentar os meios de exploração, etc. A circulação, pelo seu lado, “realiza” a liberdade individual, a propriedade e a igualdade, isto é, a ideologia jurídica do capitalismo. A relação imaginária dos indivíduos com as relações sociais. É o espaço da Mercadoria, do feitiço que desta emana, da Ideologia.
VI. A esfera da circulação
O que é a esfera da circulação? É o lugar onde se realiza a troca. Todos os indivíduos que trazem para este “lugar” as suas mercadorias são livres. Se fossem escravos não possuiriam mercadorias. São, portanto, proprietários privados.
Os mercados (feiras, centros comerciais, etc.) enquanto realidades físicas são públicos ou privados. Cada vez mais o espaço é privatizado, as relações mercantis invadem todos os nichos em busca do lucro.
É nos espaços públicos (praças, jardins, feiras) ou privados (cafés, restaurantes, centros comerciais, bares, etc.) que se organiza a “Opinião Pública”. Porém, não é aí que esta se funda. É nos meios sociais onde a propaganda, os media e as escolas, os legisladores do direito, fabricam a “Opinião Pública”. O lar, através da televisão, tornou-se uma escola de formação da opinião pública (política).
Qual é a relação jurídica fundamental? A troca do equivalente entre dois sujeitos de direito. Onde se realiza e se exprime? Na esfera da circulação. Aí somos todos equivalentes, valores de troca, valores iguais. Reprodução tendencialmente infinita. Contudo, prenhe de contradições.
A ideologia jurídica é o corpo nuclear da ideologia burguesa. Oculta, disfarça e mistifica a realidade da sua função social: organizar, legalizar e legitimar a dominação sobre todas as esferas das nossas vidas.
Qual é a noção central da filosofia burguesa do direito? A noção de «homem». Isto é, «Homem», «Humanidade», «Indivíduo-cidadão livre». Portanto, direitos do cidadão livre ou direitos do homem. Belo humanismo! Sob esta cobertura (abstrata, mistificadora) reina o mercado, a exploração do homem pelo homem.
A fundamental esfera da vida social não é a circulação (realização do capital), mas a produção. É a produção de mais-valia que põe a nu a verdadeira essência das relações entre o capital e o trabalho. A circulação é indispensável claro está, mas sem produção não existiria a mais-valia (fonte do lucro) e, consequentemente, nem produção nem circulação de mercadorias e capitais. As duas esferas são como os dois planos numa cena de grandes filmes que fogem à regra: a mais próxima da câmara não é a fundamental, mas a que está em segundo plano, desfocada. A esfera da circulação aparenta e apresenta a esfera da produção, ao mesmo tempo que a oculta e mistifica. É precisamente na esfera da circulação que se organiza o espaço público.
VII. Espaço público
O espaço público normalizado e, portanto, vigiado, que é necessário pagar para usufruir. Taxado pelos municípios, capturado pelos centros comerciais e esplanadas, enxameado de cartazes publicitários.
Seria preciso que as cidades fossem sujeitos de direito, que o comum se tornasse sujeito de direito e se disseminasse.
A partir do século XVIII a expansão do espaço público está ligada ao alargamento da cidadania, às grandes praças e alamedas urbanas modernas, aos cafés e esplanadas, à proliferação da imprensa escrita. Organiza-se a separação dos espaços aristocráticos e burgueses, dos bairros operários.
Esses espaços públicos convertem-se em espaços físicos e ideológicos de encenação, representação, palcos do teatro burguês. A muitos espaços públicos não era permitido o acesso a negros, índios, orientais, ciganos. Nem às mulheres. A permissão para todas estas classes e minorias de usufruírem dos espaços públicos urbanos foi conquistada pelos próprios com sangue e lágrimas. Perversamente, viria a tornar-se lucrativa para os negócios. Os direitos são direitos de mercado.
O direito protege os indivíduos e os seus direitos que foram entretanto adquiridos, e não apenas o direito à propriedade dos meios de produção e ao lucro. É a contradição entre esses direitos e os direitos dos trabalhadores que estimula as lutas de classes. Nesse sentido, as lutas de classes (sindicais e políticas) desvelam a natureza de classe do direito.
O direito, apesar da sua natureza de classe, não é, contudo, coisa descartável, nem mero epifenómeno da infraestrutura, sem valor. Pode conter importantes conquistas das classes trabalhadoras e, portanto, constituir um programa para reivindicações sindicais, políticas, profissionais, de minorias, etc. É o caso do Estado-providência ou Estado social. As lutas por regimes democráticos contra os nazi-fascismos no século vinte, no mundo e em Portugal não foram irrelevantes, muito pelo contrário. No programa dos comunistas a conquista da democracia é, sempre foi, inseparável da luta pelo socialismo.
O direito é um conjunto de técnicas para reduzir os antagonismos sociais. É assim apresentado desde a Antiguidade clássica (a «prudência» aristotélica). Sempre foi mistificador desde as primeiras civilizações com se verificou na ficção da origem divina dos reis e faraós. O poder exclusivo da classe ou casta imperante ficava, assim, disfarçado, o que explica porque o terror que os poderosos inspiravam se misturava com a veneração.
Foram precisas mudanças, umas vezes lentas, outras vezes revolucionárias, no modo de produzir os bens, no regime de propriedade e, concomitantemente, nas formas de distribuição (que está na raiz da definição clássica de justiça: dar a cada um o que é seu, o que lhe é devido), para que as normas se alterassem e as velhas, as antigas, se revelassem como injustas e baseadas em ficções ou mentiras. Sempre assim sucedeu, por mais resistentes à mudança que tivessem sido as leis e os costumes. O direito burguês rodeou-se das mesmas mistificações de que acusava os privilégios feudais, forjando diferentes táticas e teorias. Foram precisas as lutas das classes trabalhadoras e a produção teórica de Marx e Engels para que o direito mistificado e mistificador fosse despido da sua aura. Seguir-se-iam as revoluções socialistas e as lutas vitoriosas dos povos colonizados que vieram alterar regras do direito em benefício dos povos e das classes trabalhadoras. Em muitos casos direitos conquistados e logo perdidos. Contudo, nunca perdidos definitivamente. Sempre lembrados, foram progressos da consciência social, são património da cultura e armas para novos combates.
A superestrutura não é um mero reflexo de espelho, não é isso (cópia, reprodução mecânica) que o termo utilizado por Marx significa. Compreende-se que haja sido mal interpretado (nos casos em que não houve má fé) o célebre Prefácio Para a Crítica da Economia Política (1859). Contudo, outros textos marxianos desfazem qualquer ambiguidade. A infraestrutura não «segrega» as ideologias (e as ciências) como o fígado segrega a bílis…A economia não “segrega” o Direito…Falemos antes de instâncias. (Instância corresponde a um grau de jurisdição na hierarquia do Poder Judiciário.)
O direito é uma instância superestrutural (não é uma relação de produção de mercadorias), não haja aqui qualquer ambiguidade, porém goza de autonomia relativamente às forças de produção e inclusivamente às outras instâncias (política, ciência, moral). Pode dispor de grande força interventiva sobre todas as outras instâncias (sobre a moral por exemplo) e sobre a própria infraestrutura (as relações de produção). Pode tanto estimular como bloquear inovações técnico-científicas com impacto sobre o desenvolvimento das forças produtivas. Se assim não fosse não desempenhava o papel preponderante que desempenha atualmente. Essa autonomia ativa fornece-lhe eficácia, capacidade de obter consensos e poder “legítimo” de se fazer obedecer. Marx assim como não forneceu combustível para as conceções deterministas (refiro-me a oportunismos de má fé e a economicismos messiânicos), também não rejeitou o potencial de lutas de classe que o direito comporta (por exemplo, a nossa Constituição, pesem embora e muito os cortes que sofreu). Contudo, em parte alguma Marx considerou que o Direito deste ou daquele país, pudesse conter normas universais (para todo o género humano) e eternas, na prática. Por exemplo: os direitos da Mulher são conquistas no interior do direito burguês, mas somente na sociedade socialista serão efetivos (equidade com os homens) e muito mais avançados (em normas jurídicas, políticas, éticas). Nas sociedades comunistas não fará sentido falar em direitos. A liberdade individual e coletiva, a igualdade concreta, serão como o ar limpo que então se respirará.
O direito burguês assenta na ideia de igualdade jurídica. Por isso é burguês. Um direito mais justo deveria assentar na ideia de desigualdade (K. Marx). Quando vier a assentar nesta ideia, o Direito será a garantia jurídica de relações de produção socialistas, antecâmara do comunismo.
VIII. O Direito de Mercado
Porque é necessário que todos os indivíduos sejam sujeitos de direito? Para instituir a supremacia absoluta das relações de Mercado.
Para legitimar a posse dos modernos atos de apropriação económica, foi necessário (continua a ser pelo mundo fora) despossuir uma classe social para que a força de trabalho se convertesse em mercadoria. Mas o operário (camponês despojado da terra) também possui uma propriedade: a sua força de trabalho, o trabalho vivo. O capitalista compra-a para consumir o valor de uso da capacidade de trabalho vivo e apropriar-se legalmente da mais-valia (tempo excedentário no qual o trabalhador produz valores de troca). Propriedade real e igualdade formal: coração e cabeça do Direito burguês.
«Declarar que todos os homens são sujeitos de direito livres e iguais não constitui um progresso em si, mas tão-somente que o modo de produção da vida social mudou.[…] Não é «natural» que todos os homens sejam sujeitos de direito. Isto é o efeito de uma estrutura social bem determinada: a sociedade capitalista. Mas, então, porque é que isso é necessário nesta sociedade? Precisamente para permitir a realização das trocas mercantis generalizadas.» «O modo de produção capitalista supõe como condição do seu funcionamento a «atomização», quer dizer, a representação ideológica da sociedade como um conjunto de indivíduos separados e livres. No plano jurídico, esta representação toma a forma de uma instituição: a do sujeito de direito.» (Michel Miaille)
Diz-se que o homem vem dotado de livre-arbítrio por via natural. Embuste superlativo, sacralizado pelas teologias e filosofias idealistas: supostamente livre para escolher conscientemente ser operário ou capitalista, explorado ou explorador! O núcleo da ideologia jurídica burguesa é uma fraude, uma impostura, uma mistificação. Uma noção histórica (e geográfica) que tal como começou também pode acabar. Nem universal, nem natural.
O Estado moderno nasceu para impor (através do monopólio da força e de um reportório de técnicas para obter consensos) e perpetuar as contradições fundamentais que separam e opõem as classes trabalhadoras da classe capitalista.
Faça-se um reparo às conceções instrumentalistas do Estado: o Estado não é um instrumento passivo nas mãos dos capitalistas, particularmente nas ditaduras fascistas. As instituições estatais gozam da sua própria autonomia (os três órgãos de poder, uma complexa e larga gama de serviços e numerosos funcionários), às vezes recuam e cedem perante as forças populares, gerem os interesses ferozmente concorrentes dos capitalistas da indústria, da agricultura, do comércio, da banca e dos serviços. Os governos eleitos do Estado podem ocasionalmente oscilar mais para a direita ou para a esquerda (episodicamente para a esquerda e por duração e medidas limitadas) conforme a correlação de forças e propósitos táticos (eleitoralismo); porém, no fundamental, o Estado na formação económico-social capitalista é o Estado da classe dominante. Prova-se a toda a hora nas políticas do Trabalho e na legislação laboral. O Estado que serviu a alta burguesia pode temporariamente ser ocupado por classes e camadas pequeno-burguesas e operárias como sucedeu na República espanhola e nos países que se libertaram dos impérios coloniais; nos casos em que não foi destruído e substituído a derrota chegou depressa. Quando os marxistas por vezes afirmam que o Estado é o quartel-general da classe dominante, tal afirmação não significa que os direitos e liberdades democráticas não devam ser reivindicadas ou defendidas no interesse dos trabalhadores; aliás, foram quase sempre, senão sempre, conquistados pelo povo com enormes sacrifícios e contumazes recusas dos capitalistas. Não cabe aqui contar e resumir o percurso ao longo dos séculos XIX e XX dos avanços e recuos da democracia burguesa. Tem sucedido recorrentemente (por períodos ou ciclos) que alguns dirigentes e militantes de partidos comunistas abandonam o partido ou procuram alterar o programa e o nome do respetivo partido, argumentando com as transformações dos Estados capitalistas europeus; O Estado ter-se-ia levantado acima das classes e o direito ter-se-ia transfigurado em coisa completamente independente e neutral. Ou seja, o direito teria alcançado uma forma e uma prática justas. A tese que eu exponho e defendo neste artigo não teriam deles a mínima concordância. Já não seria necessário destruir o Estado (afinal, democrático) para enveredar pelos caminhos violentos da construção de uma economia e de uma sociedade socialista... O que a experiência tem demonstrado é que a teoria marxista-leninista do Estado permanece atual (para além das ilusões oportunistas cíclicas) e que os defensores da tese “democrática” acabaram habitualmente instalados em lugares de prestígio ou de chefia da classe que, antes, havia combatido. O que é grave não é que hajam desertado da luta política (cada um é livre de mudar de opinião e de partido), o mais grave é procurarem convencer os antigos camaradas de que a teoria marxista-leninista sobre o Estado se desatualizou completamente e que eles é que são os verdadeiros comunistas. Com tais teorias prestaram, e prestam, um carinhoso serviço àqueles que exploram os outrora camaradas operários. O que provavelmente já não incomoda a muitos à sua nova consciência. Essas teorias não são recentes, no fundo. São um eco, embora distante, de conceções que começaram a circular nos finais do século dezanove. No livro, lamentavelmente esquecido, de F. Engels e K. Kautsky, O Socialismo Jurídico, os autores criticam as teses reformistas que se iludem com as possibilidades de reformas profundas do capitalismo e dos seus Estados por meio do subsistema jurídico. A democracia é incompatível com o capitalismo. As provas históricas são inúmeras. Os regimes democráticos são o palco de contínuas lutas de classes. Enquanto perdurar e onde perdurar a legalidade da exploração da força de trabalho para obtenção de um lucro privado a democracia está sempre ferida de morte.
IX. O Público privado
A propriedade privada gerou a Lei, contudo o Direito não existiu sempre, como vimos: o proprietário de escravos não era Senhor porque representasse um sistema normativo igualitário obviamente; era-o pela força bruta que o costume vinha depois justificar; o senhor feudal da Alta Idade Média não era obedecido por camponeses «livres» através de um Direito, relação jurídica ou contrato. A sociedade feudal não reconhecia a separação do privado e do público, o senhor era simultaneamente proprietário privado e autoridade pública. Somente no capitalismo se estabeleceram contratos e vínculos normativos entre entidades privadas (nas manufaturas e no comércio), distintas da esfera pública. As sociedades comerciais que surgiram na Europa nos finais da Idade Média criaram o Direito. O contrato é a marca distintiva do direito moderno, i. é, burguês.
No regime monárquico o Rei absoluto era o dono do espaço público, o dono do país, que governava sobre vassalos os quais podiam a cada momento perder os títulos e os privilégios (palavra esta que deriva de privado). A sociedade era constituída por estamentos e os indivíduos possuíam ou não status. A palavra Estado deriva de status. O rei detinha o status supremo. Existiam portanto os superiores e os inferiores. O direito burguês vem eliminar estas distinções formalmente.
No feudalismo, portanto, não existia propriamente falando direito público. Ou seja, praticamente tudo era direito privado (as portagens nos caminhos, as pontes, os cursos de água). A fundação das novas cidades, feiras e mercados, o crescimento urbano, originou formas de um novo direito público que se desenvolve ao lado, às vezes contra, a tutela senhorial. O direito público distinto do direito privado foi, por conseguinte, uma conquista da burguesia. O Estado viu-se encarregado de novos deveres e serviços (pagos pelos contribuintes) sociais, públicos, cada vez mais abrangentes e complexos (até chegarmos ao Estado Social). Entretanto, intervém cada vez mais na esfera da vida privada dos cidadãos, isto é, nos espaços e nos tempos ditos “públicos”, enquanto, simultânea e recentemente, privatiza, alargando o domínio privado, ao qual são entregues cada vez mais deveres que eram do Estado (vigilância e segurança, prisões, etc.). Cada vez mais o que é, ou era, comum, passa a ser pago, isto é, mercadoria (a água das fontes engarrafada). A luta pelo que ainda é comum, pelo alargamento da esfera (da propriedade) comum, pública, é uma frente atualíssima de luta nas cidades. É, no fundo, o direito à cidade. E é isto que este ensaio pretende retratar.
A ideologia da classe dominante- a burguesia – é uma ideologia jurídico-política.
«Alors, on peut dans l`idéologie du droit […] que l`essentiel, ce sont les échanges, et que les échanges réalizent l`Homme; que les formes juridiques qu`impose la circulation sont les formes mêmes de la liberte et de l´égalité; que la Forme Sujet déploie la réalité de ses déterminations dans une pratique concerte: le contrat; que la circulation est un procès de sujets.» ( Bernard Edelman)
O Direito possibilita a produção capitalista (as relações de produção), a formação da propriedade do tipo capitalista e seu desenvolvimento histórico, a divisão do trabalho, as hierarquias de comando e, ao mesmo tempo, oculta a expropriação e a exploração que lhe está na base. Esta é a sua verdadeira natureza, a sua única natureza (possibilitar e legalizar a extorsão da mais-valia e o roubo dos territórios e recursos por todo o planeta), por mais avanços e inflexões democrático-liberais que a letra e o conteúdo possam vir a conter por força das derrotas, dos compromissos e dos interesses de classe.
Na letra e na prática do ordenamento jurídico e dos atos normativos (particularmente no que se refere às leis do trabalho e aos benefícios fiscais ao grande capital) se vê a ideologia ou os interesses reais dos partidos social-democratas ou da Direita.
Marx demonstrou que os indivíduos estão confinados a determinadas classes sociais que lhes determinam a posição nas relações sociais (capitalista ou trabalhador) e não como declara enfaticamente a ideologia burguesa «cada um é um». Possuindo muito embora cada um de nós caraterísticas que nos identificam, somente pelas classes sociais se explica a política, o Direito, o Estado, a moral, etc. Até à tomada do poder a burguesia dizia que a razão universal estava na cabeça e a moralidade no coração de cada um. Hegel dizia que o Estado era a Razão objetiva e realizada. Na realidade, eram as ficções que a burguesia engendrava pela cabeça dos seus ideólogos eminentes. Pode um governante que tomou o poder absoluto pela força armada ou pelo voto ter com isso afastado a burguesia do poder e, apesar disso, governar mantendo intacto o poder efetivo da burguesia? Pode, Marx demonstrou-o no seu livro O 18 de Brumário de Luís Bonaparte. Pode até um regime político ser dos trabalhadores e todavia conservar-se a sociedade capitalista…Não é o Estado que faz a sociedade, as relações de produção, mas o invés. E isto não é determinismo nem economicismo. É a realidade histórica. Para se construir uma sociedade socialista é necessário destruir o Estado e construir uma outra forma de administração das coisas (não das pessoas!) adaptada à economia socialista que a defenda, legitime e impulsione.
O direito à greve é um direito das classes trabalhadoras dentro do direito burguês. Não cai fora dele. Foi com certeza absoluta uma conquista histórica (sempre em perigo) arrancada aos capitalistas e é uma arma fundamental contra a exploração de que são vítimas. As autarquias governadas por partidos comunistas são instituições democráticas insertas no quadro normativo do direito que legitima o modo de produção capitalista e o modo de sociabilidade dominante. Não caem fora dele. E todos os direitos são passíveis de serem perdidos. Todas as conquistas de teor democrático são boas no interesse dos trabalhadores. Não perder de vista, porém, que podem vir ao encontro dos interesses do capital. Reza a História que determinadas reivindicações de cunho democrático foram primeira e longamente reprimidas a ferro e fogo pela grande burguesia; admitidas, por fim, converteram-se em meios aproveitados por ela para seu exclusivo benefício. A classe dominante pode, inclusive, permitir uma certa margem de folga aos trabalhadores (sindicatos, partidos, etc.), ao trabalho vivo, para que este melhor se reproduza, ande alienado e produza novos lucros.
X. O sujeito do direito
A qualidade (formal) do Direito burguês é a subjetividade, isto é, baseia-se na noção de sujeito de direito, igualdade de todos perante a lei universal e os chamados direitos universais inalienáveis do Homem.
Mas o Direito não se reduz a uma mera mentira, ocultação e distorção: cria ou ajuda a criar relações sociais e legaliza-as, funda instituições com os seus funcionários imbuídos de poder, com hierarquias e rituais, e toda uma simbologia que não é meramente formal ou virtual. É Poder.
O trabalhador produz-se a si próprio como capacidade de trabalho. Antes de ser absorvido pelo capital (trabalho morto) o trabalho tem uma existência subjetiva, contra a qual o capital se defronta para manter a sua valorização, capturá-lo e transformá-lo em capacidade de trabalho (valor de troca). A força de trabalho é uma propriedade do operário, fator de desassossego, bom para ser confinado aos bairros operários, mais tarde aos bairros sociais, porém naqueles e nestes sempre alfobre de rebeliões; melhor ainda se essa força estranha mas indispensável estiver contida no interior do lar, encapsulada em centros comerciais, novo espaço público.
Para o marxismo o núcleo central do direito não é a norma mas o sujeito do direito (crítica de Pachukanis à ideologia do sistema normativo como centro do direito): o modo como o sujeito, o indivíduo, se apresenta (voluntariamente) como vendedor da sua mercadoria força de trabalho a um outro que está no seu direito igual de lha comprar por um determinado preço estabelecido socialmente ou por contrato. É o direito que permite que o indivíduo circule como mercadoria na esfera da circulação das mercadorias. O direito é a forma própria do capitalismo.
«Ao lado da propriedade mística do valor, surge um fenómeno não menos enigmático: o direito. Ao mesmo tempo a relação unitária e total [ou seja: as relações dos homens no processo de produção] reveste dois aspetos abstratos e fundamentais: um aspeto económico e um aspeto jurídico.» «O fetichismo da mercadoria é completado pelo fetichismo jurídico» (Pachukanis)
O direito não se explica por si mesmo. Possui uma história dentro de outra história, teve um território natal e um percurso sinuoso de quase cinco séculos.
As categorias jurídicas do direito burguês são: sujeito de direito, norma jurídica, relação jurídica, liberdade, igualdade, autonomia da vontade.
Para os juristas burgueses (sobretudo positivistas da escola de Hans Kelsen) o que importa é a validade da norma. De facto, houve um tempo em que para uma classe média (burguesia) desejosa do poder, era vital libertar o Direito de tutelas religiosas, morais «históricas» (isto é, das aristocracias). Daí ser “progressista” a reivindicação por um Direito que a forma (lógica, racional) validava e a política viria legitimar (pela revolução nalguns casos).
Os «direitos do homem» podem-se ler hoje na fórmula «direitos humanos». Qual o fundamento? Na ficção setecentista iluminista do direito natural, isto é, a-históricos? Ou direitos que se impõem pela força (por quem possuir mais força), conforme a tese de Kelsen? A Declaração Universal do Direitos do Homem (1948) funda-se apenas na validade formal ou funda-se nas terríveis experiências da humanidade? Sim, permanece letra morta quando o capitalismo explora selvaticamente a vida humana. As interpretações dos direitos universais são diversas e não independem dos negócios das multinacionais.
O direito privado não se dirige apenas à proteção ou prossecução dos interesses individuais, acrescem os valores coletivos (família, segurança coletiva, etc.), o direito civil e o direito comercial. A autonomia da vontade é o princípio em que se baseia o direito privado (liberdade, consciência, responsabilidade); para o direito público é a legalidade no sentido estrito. Na realidade, o desenvolvimento do direito dependeu sempre do desenvolvimento e complexificação da divisão do trabalho.
O direito é um «sistema de comunicação formulado em termos de normas para permitir a realização de um sistema determinado de produção e de trocas económicas e sociais» (Miaille). Este sistema é composto por três níveis: o nível ideológico, o institucional e o prático. O nível ideológico reúne em uma conceção comum homens e coisas, dando-lhes nomes, qualificando «precisamente os fenómenos, as instituições, os mecanismos que se apresentam no jogo social». A Ideologia oculta os fundamentos materiais do direito. Podemos criticar o direito burguês, denunciar os dois pesos e medidas que a sua aplicação revela, e, contudo, não saímos do direito burguês e capitalista. Podemos lutar por reformas democráticas e maior vigilância sobre os executores do direito, que esses progressos não alteram a essência.
O jurista bolchevique Evguiéni Pachukanis considerava justamente que no socialismo a planificação e gestão pública e cooperativa da economia, os novos regimes de propriedade e a participação de todos na governação, substituiriam progressivamente o direito.
O direito acompanhou (umas vezes na dianteira, outras, atrasado) as transformações das economias capitalistas nestes cinco séculos da história europeia. Foi reivindicativo, passou em seguida a conservador. Impulsionou o comércio e as revoluções industriais, justificou (palavra adequada: persuadiu de que era justíssima a destruição em nome do progresso e outras tretas) a destruição de outros modos de produzir, outros modos de viver, ser feliz, comunicar. Se conhecermos estas transformações na economia, na política, vemos com clareza as articulações com as ideologias, as ciências, as filosofias, as morais, o direito, e qual foram as funções que estas instâncias desempenharam, cada uma, no interior da totalidade, i. é, da formação económico-social. Umas vezes em sincronia, outras com contradições.
Um método para compreender a natureza e as funções sociais do direito burguês é compará-lo com o direito desenvolvido nos países que já foram revolucionários e socialistas, ou naqueles que se conservam. Tendo em conta as grandes diferenças entre eles é evidente um fundo comum do qual os regimes se reivindicam. «A figura do processo social de vida, i. é, do processo material de produção, só se desfaz do seu místico véu de nevoeiro quando estiver, como produto de homens livremente socializados, sob o seu controlo consciente e planificado.» (MARX)
XII. Da democracia burguesa
O valor da “moeda” liberdade está na confiança que nós, cidadãos, lhe outorgamos. Não é garantida por um depósito em ouro. Tal como as lotarias, o sistema bancário, os políticos e as eleições, as marcas e modelos de consumo, é a confiança que outorgamos. Quando essa confiança é na acumulação compulsiva de dinheiro é fanatismo. Quando é dedicada à classe que nos explora, é alienação. Quando as classes «de baixo» perdem a confiança nos «de cima» abre-se um período revolucionário.
«É apenas a relação social determinada entre os próprios homens que toma aqui para eles a forma fantasmagórica de uma relação de coisas. Assim, para encontrarmos uma analogia temos de nos escapar para a região nevoenta do mundo religioso. Aqui, os produtos da cabeça humana parecem figuras autónomas, dotadas de vida própria e estando em relação entre si próprias e com os homens. O mesmo se passa no mundo das mercadorias com os produtos da mão humana. Chamo a isto feiticismo, que se cola aos produtos de trabalho logo que eles são produzidos como mercadorias e que, por isso, é inseparável da produção de mercadorias.» (MARX)
Como nos atrevemos a afirmar que não somos realmente livres nestas sociedades com liberdades de expressão e reunião, com eleições livres, com normas justas para ambas as partes nos contratos voluntários e conscientes? A resposta a esta questão deve interessar a todos os intelectuais, ideólogos, militantes, da esquerda revolucionária anticapitalista. Responder com argumentos atuais e factuais é prioritário nos exames com que avaliamos publicamente as sociedades onde o capitalismo reina absolutamente através da economia e do direito. Na verdade, reafirmamos o que se tem vindo a afirmar desde o século XIX: as sociedades burguesas capitalistas trazem na boca a liberdade e a igualdade, e na cabeça a ganância do sobrevalor arrancado aos trabalhadores que se submetem porque não são livres para o recusar. Mas a falta de liberdade ( «o homem nasceu livre e por toda a parte vive acorrentado», na celebérrima expressão de Jean-Jacques Rousseau), começando na exploração económica do assalariado, vai mais longe, mais largo, até cercar e envolver completamente o assalariado e o cidadão. Suga-lhe a energia física e mental, o tempo e o salário, a vida toda até ao dia em que deixa de ter qualquer valor de uso.
Os marxistas prezam os valores da liberdade e os direitos humanos. Todavia, os valores não brotam espontaneamente no céu dos passarinhos, mas sim de condições materiais concretas, de interesses das classes sociais nas sociedades divididas. Parecem sedutores os valores “altruístas” burgueses, porém de facto é o puro egoísmo que se disfarça com máscaras pintadas como as dos comediantes. Sem cair no exagero digo que os valores (éticos, jurídicos) possuem uma determinada cotação no mercado dos valores. E sob a capa dos «direitos humanos» invadem-se países, massacram-se os povos.
Estamos agarrados (o termo adequado) à cola do papel mata-moscas. Raciocinamos com um modelo-padrão heurístico (a maneira de pensar) e um modelo-padrão hermenêutico (formas de descodificar os códigos e os próprios códigos) que nos impingiram para que víssemos a justiça onde está a exploração cínica, a igualdade onde está a dominação de classe e o colonialismo. É a Ideologia no sentido marxiano restrito da noção: relação imaginária dos indivíduos com o Estado e o modo de produção. Ou seja: com a sociedade de mercado.
«Do ponto de vista social, a classe operária é, portanto, mesmo fora do processo imediato de trabalho, tanto um acessório do capital como o instrumento morto do trabalho. Até mesmo o seu consumo individual, dentro de certos limites, é apenas um momento do processo de reprodução do capital.» Marx
O direito burguês assenta na ideia de acordo. É a base do direito económico. O conceito de vontade é, portanto, primacial. O empresário (o ora chamado empreendedor) acorda com um operário (ora chamado colaborador) sugá-lo até à medula. Os avanços e recuos do Direito do Trabalho demonstram qual a substância do acordo.
XIII. Conclusões
Destes capítulos retiro as seguintes conclusões:
1ª- Os avanços progressistas no Direito (nacional e internacional) exprimem conquistas civilizacionais que opomos à barbária imperialista e às suas soluções supranacionais ou neofascistas. Não é repudiando todo o direito porque ele na sua essência é burguês que damos qualquer ajuda às lutas revolucionárias, pelo contrário. O direito contem normas que são efetivamente universais (na Declaração Universal dos Direitos Humanos), que podem permanecer numa sociedade socialista e que hoje constituem motivo suficiente para as lutas de classe.
2ª As teses de E. Pachukanis, pelo radicalismo com que foram expostas, conduziram-no a um beco sem saída: na etapa socialista (a qual depende completamente das condições concretas de cada país) não se deve construir um novo direito? E, portanto, um novo Estado? Como se organizam os múltiplos poderes mais ou menos espontâneos, impedindo-se a anarquia (que é o egoísmo à solta) e o caos? A que meios ofensivos-defensivos recorrer para defender-se uma revolução democrática? Quais as normas para regulamentar a autogestão nas fábricas e nas cooperativas? Como organizar os processos eletivos em todas as esferas que não seja por normas universais e fiscalizadas? Quem fornece serviços sociais gratuitos e universais? Da compreensão destes problemas, na sua solução, depende em muito a aceitação hoje do marxismo-leninismo como teoria justa do mundo e da vida, e a explicação do porquê dos modelos adotados no passado. Uma coisa é incontornável no marxismo: o Estado e o direito devem ir desaparecendo nas etapas que preparam as sociedades comunistas. Portanto, a administração das pessoas é substituída pela mera administração das coisas. O socialismo é incompatível com a ausência da mais ampla e profunda democracia nas esferas pública e privada. Todo o Direito é sempre burguês ou é possível e necessário um Direito socialista? Se bem interpreto o pensamento de Marx e Engels o direito é um instrumento político decisivo da produção-reprodução do capital e o centro da ideologia burguesa, o qual desaparecerá na transição do socialismo para o comunismo.
3ª A burguesia teceu uma formidável armadilha com o Direito. Nela podemos cair facilmente. “Marxistas erráticos”, “moderados”, “democráticos”, social-democratas, e outros cidadãos mais ingénuos que aqueles fazem por ignorar os fundamentos do Direito que se encontram nas relações sociais de produção e circulação mercantis, na para mergulhar a pique nos braços maternais do capital. Devíamos proceder como Montesquieu que em O Espírito das leis (1748) analisa o pior dos regimes (no caso, o Despotismo) em vez de começar por expor o melhor, como era usual. Claro que o direito burguês não poder ser mau em tudo, pois que os burgueses também têm as suas reivindicações e o Mercado tende a uniformizar mas necessidades, e a universalizá-las. O que beneficiou grandemente o direito burguês foi o insucesso da URSS e aquela espécie de NEP da pujante economia chinesa. A ideologia jurídica criou a convicção de que o direito é suficientemente elástico para acolher todas as adaptações necessárias e o máximo de civilização identifica-se com o máximo de Estado de Direito. Na realidade, com os mesmos princípios jurídicos se rege o código penal e a invasão de um país soberano inimigo. Com os mesmos princípios jurídicos se condena um ministro corrupto e se ordena o diretório financeiro ditatorial da União Europeia. A ideia de que a democracia burguesa – o direito- possui válvulas de segurança e de escape para recorrer ao diálogo e à negociação é um dos argumentos sacrossantos dos nossos liberais; esquecem-se graciosamente de incluir as polícias de choque. Permite-se formas de participação das populações através da difusão inegável de comunidades locais, mas jamais se permitiria um efetivo controlo operário.
XIV. O papel mata-moscas e as moscas
Finalizemos retomando o tópico do “feiticismo da mercadoria”. A produção de mercadorias constitui uma relação social entre produtores, tal relação aparece aos produtores (à sociedade em geral) como relação entre os produtos do seu trabalho e não entre os próprios produtores das coisas. Essa relação existe de facto, mas oculta a relação entre produtores. Há, pois, uma dicotomia entre aparência e realidade (essência) ocultada. O feitiço, a magia que emana das mercadorias, impregna então todas as relações, tanto quanto o capitalismo se foi desenvolvendo como sociedade de mercado, de marketing. Como Midas, o capitalista de tudo faz negócio e por todo o lado gera negociantes: nas religiões, nas artes, nos lazeres, nos espaços públicos. A mercadoria e o dinheiro exercem essa atração quase demoníaca, porém não monstruosa nem feia, mas de aparência fascinante, que nos domina, que nos promete todas as felicidades, e que são a matéria de que são feitos os sonhos despertos do comum dos cidadãos. Desejamos ter e usar no espaço público. Pagamos pela coisa e pelo símbolo, pagamos pelo real e pelo virtual. Pagamos para ser. Magia que reproduz a força primitiva dos mitos, uma espécie de xamanismo moderno. “Ingerir” a mercadoria é ingerir a poção mágica, simulacros das esplendorosas aventuras de Jasão e o Tosão d´oiro. Platão está vivo na nova alegoria da Caverna onde se tomam as cópias pelas únicas verdades. Os mitos ressurgem sob novas roupagens. Os filósofos e cientistas sociais Horkheimer e Adorno demonstraram a seu tempo a criação de novas mitologias a que tem procedido a Modernidade, particularmente o Iluminismo (ou Esclarecimento) desde o século XVIII, mas sem a genuinidade das antigas e com uma função sócio-ideológica agora depravada.
«A burguesia, onde ascendeu ao poder, destruiu todas as relações feudais, patriarcais, idílicas. Rasgou sem compunção todos os variegados laços feudais que prendiam o homem aos seus superiores naturais e não deixou outro laço entre homem e homem que não o do interesse nu, o do insensível “pagamento em dinheiro”[…] Resolveu a dignidade pessoal no valor de troca, e no lugar de um sem-número de liberdades legítimas e estatuídas colocou a liberdade única, sem escrúpulos, do comércio.», lê-se no Manifesto Comunista.
O Manifesto foi escrito em 1847. Nas obras que a seguir Marx escreveu ficou claro como e porque a burguesia produziu uma poderosa alienação e um invisível véu de ocultação. Que se viria a verificar terrivelmente eficaz. Ao lado da categoria de alienação do trabalhador descoberta na juventude consolidou cientificamente as categorias de reificação e de feiticismo. Pensemos nesta hipótese de trabalho: em que é que se distinguem determinadas crenças fideístas, desta nova “religião” (Walter Benjamim) a que o feiticismo da mercadoria deu forma e conteúdo, com os seus rituais que me trevo a classificar de esquizofrénicos ou histéricos, “religião” que nos comanda e coloniza a vida, nos converte numa espécie de Zômbis circulando no espaço público com o olhar nas montras e no teclado de smartphones, em títeres do Outro no nosso espaço privado, todos uniformizados, com idênticas compulsões de apetites e desejos? Feiticismos antiquíssimos, submersos sob camadas de culturas extintas, que ressurgem sob novas formas? Ou as duas faces de Juno? O Capital que com uma face oculta a sua fonte que é a apropriação legal da mais-valia; o trabalho abstrato (o trabalho socialmente útil) que oculta a exploração do trabalho vivo; e, com a outra face, enfeitiça com a mercadoria que oculta a relação entre produtores concretos (isto é, pessoas), e o dinheiro que se apresenta como um ídolo fantasmático e antropófago, que canibaliza todas as relações humanas: estas categorias fundamentais constituem a dinâmica do capitalismo. “A produção de valores de uso não é senão uma espécie de consequência secundária, quase um mal necessário.” Tal e qual se aplica aos próprios trabalhadores: constituem quase um mal necessário. A força de trabalho vivo possui um valor de uso distinto das outras mercadorias porque produz um sobrevalor para o proprietário dos meios de produção. Essa é a fonte da Lei, o Primeiro Mandamento da ideologia jurídica burguesa. No acordo “livre”, “igualitário”, “voluntário”, e “democrático”, entre explorados e exploradores, reside a primeira das armadilhas.
O feiticismo da mercadoria, a partir do lado abstrato do trabalho e do lado abstrato do dinheiro, que Marx descobriu, oferece-nos o caminho para chegarmos a compreender a transformação contemporânea do espaço público, controlado pelo Estado e invadido pelo mercado. Ambos têm vindo a ocupar o espaço privado, isto é, a privacidade, a subjetividade, a vontade e a consciência, essas categorias veneradas e venerandas do direito burguês. Reitero a afirmação: a esfera preciosa e fundamental, a Consciência, reduto que os filósofos iluministas resguardavam como inexpugnável, essa intimidade que Jean-Jacques Rousseau projetou para a Modernidade e Consciência cidadã simultaneamente singular e social, esse núcleo privado do sujeito de direito, foi capturada.
Contudo, o que é capturado também se pode libertar. Se em O capital, Marx revela-nos o veneno deletério do capital, as contra-tendências e as recuperações possíveis deste, os seus encantos letais, também abriu caminhos de insurreição na trama das contradições insanáveis.
J. A. NOZES PIRES
Torres Vedras, 9 de Abril 2016- 26 Abril 2018
BIBLIOGRAFIA
K. Marx,
Contribuição para a crítica da filosofia do direito em Hegel: Introdução (1844). A questão da separação da sociedade civil do Estado. Classes sociais e Estado.
Manuscritos Económico-filosóficos (1844) Estes textos de juventude conservam uma enorme beleza, profundidade e atualidade. Formulação genial da categoria de Alienação.
A Ideologia Alemã (1845-1846) com F. Engels. (o direito é uma ideologia e uma forma de alienação do proletariado)
O 18 de Brumário de Luís Bonaparte (1852) (ou como uma forma de governo pode submeter a burguesia e o proletariado)
Crítica ao Programa de Gotha (ou como o direito há de vir a ser “desigual”)
F. Engels,
A origem da família, da propriedade privada e do estado (capítulo IX. Barbárie e civilização)
Da Autoridade (neste mês de Maio em que se recorda o MAIO de 68, vem bem a propósito este texto contra os disparates anarquistas, como aquela idiota palavra de ordem: «É proibido proibir!»)
Anti-Dühring (livro fundamental de exposição rigorosa do pensamento de Marx, com a contribuição do grande pensador que foi F. Engels. Sem esta parceria de profunda amizade Marx não seria Marx.)
O Socialismo Jurídico (edição já referida pela Editorial Boitempo, São Paulo)
Ernst Bloch, Derecho Natural y Dignidad Humana, editora Dykinson (clássicos Dykinson), 2011.
P. I. Stutchka, Direito e luta de classes (1921), edição brasileira esgotada, julgo eu.
Evguiéni B. Pachukanis, Teoria Geral do Direito e Marxismo, Ed. Académica, disponível on-line; nova edição pela Boitempo, 2017, referida por mim no corpo do texto.
Andrej Vychinskij, The Law of the Soviet State (o autor ocupou altos cargos no período da chefia de Estaline, tendo sido, por isso, artífice principal do direito soviético; criticou as teses de Pachukanis o que contribuiu para a desgraça deste)
Karl Renner, Les institutions du droit privé
Jürgen Habermas, Mudança estrutural da Esfera Pública
Bernard Edelman, Le droit saisi par la photographie, Editora Flammarion, Paris, 2001 (existe edição em castelhano); A Legalização da Classe Operária, Editora Boitempo, São Paulo, 2016; textos no blogue LavraPalavra.
Michel Miaille, Introdução Crítica ao Direito, Editorial Estampa, Lisboa,2005.
Boaventura de Sousa Santos, A Crítica da Razão Indolente, 1º v., Edições Afrontamento, Porto, 2002.
Daniel Fabre, Marx e a tradição crítica do direito; artigos no blogue LavraPalavra.
China Miéville, Coerção e forma jurídica: política, direito (internacional) e o Estado. Ambos os artigos encontram-se no blogue LavraPalavra.
Umberto Cerroni, Teoria Política e Socialismo, Publicações Europa-América, Lisboa, 1976 e ainda O Pensamento Jurídico Soviético. Cerroni está entre os mais argutos críticos das teses de Pachukanis, que acusa de reduzir o direito à esfera da circulação (da relação mercantil).
Alysson Mascaro, Filosofia do Direito, Editorial Boitempo, São Paulo, 2018.
Márcio Bilharinho Naves, Marxismo e Direito, um estudo sobre Pachukanis, Editorial Boitempo, São Paulo, 2000.
Sobre a categoria de ALIENAÇÂO as duas obras mais fecundas contemporâneas, em minha opinião, são:
Ontologie de l´être social, l´idéologie, l´aliénation, de Georges LUKÁCS, Éditions Delga, Paris, 2012
Aliénation et émancipation, de Lucien SÈVE, Éditions La Dispute, Paris 2012
J. A. NOZES PIRES
2018
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