«(...) O novo radicalismo de direita mobiliza
uma política refratária ao diálogo e à reflexão, que está profundamente
conectada ao caráter das redes sociais devido, por exemplo: à política
do engajamento da atenção que favorece a radicalização de conteúdos
produzidos e expostos na rede por meio da utilização de iscas de forte
apelo emocional; à capacidade de produzir a sensação de participação
política; à “liberdade” para veicular conteúdos preconceituosos sem
responsabilização jurídica, na maioria das vezes; à escolha por
algoritmos do que as pessoas consomem nessas redes, que produz
circularidade de conteúdos e exclusão de tudo que é diferente,
facilitando a formação de in-groups e out-groups (ver: Adorno, “A teoria freudiana e o padrão da propaganda fascista“).
Esses elementos, entre outros, retroalimentam um autoritarismo cujas
bases podem ser as mais variadas possíveis, dilatando-as a ponto de
torná-las significativas para a vida política.
Num mundo de precariedade econômica e
social que nos coloca num estado permanente de ansiedade, as redes
sociais se apresentam como um bálsamo para o sofrimento. Elas ocupam os
muitos espaços vazios, de espera e prometem nos livrar de nosso
sofrimento a cada mensagem, “meme”, vídeo, etc. Também assim elas
garantem maior engajamento que qualquer programa político-partidário. (...)» Bruna Della Torre, in Blogue da Boitempo
A memória
coletiva do povo cubano contempla cada vez menos os tempos anteriores a
1959 e as dificuldades que enfrentam hoje em dia foram atualizadas. A
Revolução, para continuar, precisa oferecer uma nova noção de futuro
para reformular a utopia.
Havana, Cuba, 30 de novembro de 2016 (Joe Raedle / Getty Images).
A Revolução Cubana foi um evento crucial do
século XX. Conta com várias provas da singularidade de suas vitórias:
derrotou o imperialismo norte-americano na América Latina pela primeira
vez (1961), alcançou na década de 1980 um índice de desigualdade
(coeficiente de Gini) de 0,24 e construiu – também para essa década – o
primeiro Estado de bem-estar da região.
Entre os temas centrais do século XX estavam as ideias de utopia e o
Estado-nação. A Revolução Cubana fez de ambos aspectos seus eixos
centrais. Por isso foi estudado por Jan Gustafsson
como uma das grandes “utopias sociais e políticas” daquele século, com
efeitos até os dias de hoje. A utopia é, em sentido crítico, inspiração e
potência para a transformação da ordem da vida, transformação dinâmica e
reflexão constante sobre os seus conteúdos. Um deles, com profundo
significado em 1959 até o presente, é o princípio da igualdade e da
justiça social. A partir daí, é possível repensar se essa utopia
sobrevive e de que forma.
Estamos interessados em falar sobre a utopia e seu conteúdo
igualitário em quatro períodos: a) os anos 1990 como fronteira da utopia
de igualdade e justiça; b) 2021 e a necessidade de reformulação dessa
utopia; c) o VIII Congresso do Partido Comunista de Cuba e a utopia da
igualdade e de justiça; d) um consenso nacional sobre a utopia da
justiça e de igualdade?
A fronteira da utopia: antes e depois dos anos 90
O mês de janeiro de 1959 dividiu um “antes e um
depois” da utopia revolucionária cubana que estava em construção desde a
primeira metade do século XIX. Sem dúvida, essa virada não foi a única
nos últimos sessenta e dois anos.
A mais conhecida e analisada, a partir dessa data, é a que ocorreu
nos anos 90, após a queda do campo socialista e a profunda crise que
enfrentou o governo e o povo cubano. Antes, o êxodo migratório de
Mariel, na década de 80, havia antecipado o estranhamento da “revolução
dos humildes” por grande parte dos humildes que formavam a base
principal dessa nova migração.
O Período Especial – nome oficial dado à crise – rompeu o discurso
utópico de 59. A partir dessa data, a narrativa do “desencanto” apareceu
na literatura, como uma espécie de melancolia crítica sobre a utopia
revolucionária, que só podia ser sentida por aqueles que viveram para si
mesmos; aqueles que não tinham – “mais novos”, “pós-novos” e etc. –
afirmavam que não pertenciam a lugar nenhum.
O cinema cubano interpretou a utopia com os filmes Alicia en el pueblo de maravillas, de Daniel Díaz Torres (1990), e com Fresa y Chocolate
(1993), de Tomás Gutiérrez Alea e Juan Carlos Tabío. Outros, mais
jovens, discutiriam posteriormente a utopia como uma reelaboração do
“revolucionário”, como um projeto reinclusivo que deveria persistir na
busca pela justiça e contra a desigualdade, como fez Conducta (2014), de Ernesto Daranas. Também se produziram críticas frontais à utopia, como La obra del siglo (2015), de Carlos Quintela, Utopia (2004), de Arturo Infante, e também distopias como Juan de los Muertos (2011), de Alejandro Brugués.
As artes plásticas cubanas registraram igualmente esse caminho. Em
2017, a maior mostra de arte cubana exibida nos Estados Unidos, cuja
magnitude só pode ser comparada a outra realizada em 1994, foi
intitulada justamente “Adeus utopia: sonhos e decepções na arte cubana desde 1950”. E algo semelhante aconteceu na arquitetura.
Esses discursos artísticos tinham fortes raízes sociais. As bases
sociais, culturais e políticas da sociedade cubana dos anos 1990
experimentavam, com as suas próprias linguagens, a crise da utopia
originária de 1959. O resumo de uma investigação
da época era que “(…) na memória e no imaginário social da utopia
cubana há uma fronteira no tempo que pode ser tão importante quanto as
do passado pré-revolucionário e talvez o futuro pós-revolucionário, e é a
fronteira dos anos 1990”. Nessa fronteira, o conteúdo igualitário da
utopia passou a integrar a memória ou a aspiração de futuro, mas deixou
de ser uma realização.
Um conjunto de entrevistas realizadas em 2012 para uma pesquisa
acadêmica informou que, naquela data, tanto a igualdade quanto a justiça
(entendida como garantia material de existência) continuavam a ser
conteúdos importantes da “desejada Cuba”. No entanto, as referências
eram diferentes: para os idosos implicava um retorno aos arranjos
anteriores à crise dos anos 90; para os jovens, a construção de uma
“nova Cuba”.
Da mesma forma, a referência a um país “para todos”, com o que isso
implica de uma utopia igualitária, continuou a ser vital. Esses
depoimentos expressam isso com clareza: “eu gostaria que houvesse uma
economia um pouco melhor, que houvesse mais possibilidades para nós,
jovens, que pudéssemos resolver com o nosso trabalho os problemas de
todos”.
Na verdade, Cuba havia mudado. A crise dos anos 90 chegou a um país
com baixíssimos índices de pobreza e desigualdade e transformou
radicalmente essa realidade. No início dos anos 2000, a pobreza urbana
era de 20%, e a rural deveria ser ainda maior, mas não havia dados
oficiais sobre isso. A desigualdade se ampliou: em 2016, a mídia oficial
divulgou
que o índice de Gini poderia ficar entre 0,40 e 0,45 – um aumento
drástico da desigualdade – e colocou Cuba em torno da metade da tabela
regional desta região neste indicador.
Desde o início do Período Especial, o poder político cubano tem
afirmado que as estratégias para enfrentar as sucessivas crises seriam
igualitárias e cooperativas: “ninguém ficará desamparado”, tem sido uma
declaração persistente. Antes que a pandemia devastasse o mundo, em
2019, a crise cubana estava em alta. Neste contexto, Raúl Castro anunciou
que, embora não seja como nos anos 1990, “a situação poderia agravar-se
(…) Temos sempre que nos preparar para a pior variante”.
Em 2020, a pandemia da COVID-19 agravou tudo. A crise se aprofundou em Cuba e no mundo. Para enfrentar-la, o governo anunciou reformas econômicas que deveriam intervir para melhorar as distorções da economia.
Foram retomadas medidas já enunciados ou parcialmente ensaiados em
momentos anteriores e foi prometido que “agora” seriam implementados.
2021 e a necessidade de reformulação da utopia de igualdade e justiça
Nas primeiras semanas de 2021, declarações
oficiais asseguraram que “se supõe que não haja grandes perdedores” e
que “ninguém vai ficar sem-teto”. O motivo desta vez para tais
declarações foi o início da “Tarefa de Ordenação” da economia cubana.
De janeiro a abril deste ano já haviam mudanças. E com o governo
Biden voltou a esperança de que se flexibilizariam as medidas de asfixia
dos Estados Unidos no embargo contra Cuba. Sem dúvida, não parece que
vai acontecer em um curto prazo. Cuba não é uma prioridade para esse governo.
O fato se soma ao endurecimento do bloqueio por parte de Donald Trump,
que piorou uma política que condiciona e estrutura o desempenho
econômico e social cubano.
A vida doméstica nacional também se transformou. A “tarefa de
ordenação” tem mostrado seus custos sociais. A crise econômica tem
aumentado e se expressa na piora da escassez do dia a dia, de produtos
básicos, com gravíssima escassez de medicamentos, desabastecimento de
anticoncepcionais, especialmente camisinhas, um aumento súbito do custo
de vida em maior proporção ao aumento de salários estatais, aumento
também súbito de desemprego devido a contração do setor privado como
consequência da pandemia.
Nesse processo, a violência de gênero aumentou. Muitos dos subsídios
universais e direcionados foram eliminados. Foi reintroduzida a
comercialização de diversos tipos de produtos, inclusive de alguns bens
de primeira necessidade, em moeda livremente conversível em parte do
comércio varejista e atacadista. A precarização, já muito difundida,
hoje está em alta e atinge setores que antes ficavam relativamente
protegidos (como os suprimentos de remédios).
Cuba enfrenta também uma crise de cuidados
previa a pandemia. O envelhecimento demográfico, as baixas taxas de
natalidade, o aumento dos lares mono parentais principalmente de
mulheres, a escassez de serviços públicos de cuidados infantis e para
populações adultas maiores com necessidades especiais.
Assim, em 2021, com uma crise global crescente, varias crises
nacionais se agravaram e um persistente bloqueio financeiro, econômico e
comercial por parte dos Estados Unidos, a declaração de que “ninguém
ficará desamparado” fica mais difícil de ser cumprida. O desamparo é um
fato para importantes grupos sociais. A medida em que o poder público se
responsabiliza, ou não, as (im)possibilidades de persistir na mesma
utopia dá urgência de pensar criticamente algumas questões sobre os
rumos do país.
O VIII congresso do PCC e a utopia da igualdade e a justiça
O recente VIII Congresso do Partido comunista de Cuba
(o partido – único – dirige o Estado e a sociedade por mandato
constitucional), onde tanto o ex-primeiro secretário, Raúl Castro, como o
presidente da República – agora também a frente do partido -, Miguel
Díaz Canel mantiveram o discurso repetido na última década: ninguém
ficará desamparado. Por sua importância para o programa político e para a
utopia, a declaração precisa ser examinada em suas consequências: que
significa, em concreto, que “ninguém ficará desamparado“?
O informe central
do Congresso afirmou “que as decisões na economia em nenhum caso podem
gerar uma ruptura com ideais de justiça e igualdade da Revolução”. Além
disso, assegurou que o partido “defenderá para sempre o princípio de que
em Cuba jamais se permitirá a aplicação de terapias de choque contra as
camadas mais humildes da população e por tanto ninguém ficará
desamparado”. Era de esperar que essas declarações contariam com
conteúdos específicos, em ao menos uma das comissões onde se trabalhou o
informe, que se ocupou do campo da socioeconomia. Contudo, uma agenda
social focada no problema das desigualdades e empobrecimento foi por
acaso o assunto menos comentado nos documentos, discursos e resoluções do Congresso.
Foi declarado que o programa principal para o socialismo é a justiça
integral. O informe especificou “que as principais missões do partido”
são “a economia nacional, junto a luta por paz e a firmeza ideológica”.
Esses parecem ser os núcleos duros do que o PCC entende como a utopia a
defender e não a luta contra a pobreza e a desigualdade.
O vocabulário empregado para falar dos custos sociais da crise atual
teve outro registro. Falaram da necessidade “de elevar o nível e
qualidade de vida com ênfase na segurança alimentar e energética, na
educação, na saúde, entre outros”. Foi apontada a necessidade de
“controle da correlação entre a dinâmica dos preços e os rendimentos
provenientes do trabalho, das pensões e as prestações de assistência
social” para “implementar novos programas e serviços sociais dirigidos
as pessoas e núcleos familiares vulneráveis. Porém, padrão de vida e
vulnerabilidade não são o mesmo que desigualdade, pobreza e crise de
reprodução da vida”.
Os riscos da “destruição do socialismo” e da “restauração
capitalista” se associaram principalmente aos pedidos de permissão de
importação privada e a demanda de algumas profissões de autorização para
seu exercício (por exemplo, profissionais de arquitetura) e a ameaça
externa, mas não a ampliação das brechas de equidade.
O Congresso também tematizou debates audíveis na sociedade civil
sobre a questão da igualdade e justiça. Destacam-se três entre eles: 1)
“direitos das mulheres”, “violência de gênero” e “preconceitos
associados à orientação sexual e identidade de gênero”; 2)
“discriminação racial”; e 3) “proteção do meio ambiente e dos animais”.
No entanto, a forma como as desigualdades de gênero e cor da pele
estruturam as desigualdades e o perfil da pobreza não aparece nesses
documentos públicos.
Cuba vive também, como já dissemos, uma crise de cuidado, com
consequências para a manutenção da vida e para a autonomia econômica das
mulheres que são, como em todas as partes do mundo, as principais
cuidadoras. No entanto, isso também não foi tratado pelo Congresso,
embora tenha sido incluído no Programa Nacional de Promoção da Mulher coordenado pela Federação das Mulheres Cubanas, entidade designada como “mecanismo que tem promovido a promoção da mulher”.
Quando a “baixa taxa de natalidade” e o “envelhecimento da população”
foram mencionados no Congresso, foi para falar de outro assunto: a
defesa do país em termos militares. O relatório fez essa alusão para
colocar na discussão política a possibilidade de instituir o serviço
militar obrigatório, que hoje é para homens, também para mulheres. A
questão gerou questionamentos sobre a própria existência dessa obrigação
para qualquer pessoa.
Em suma, em termos de igualdade e justiça social, o Congresso teve
mais ausências do que polêmicas. A ausência de atenção explícita a essas
questões deve ser motivo de grande preocupação. Eles mostram uma
identificação insuficiente dos problemas centrais da sociedade atual
para a reelaboração do consenso, dando-lhe uma nova centralidade. O
compromisso igualitário foi declarado apenas de forma retórica e não foi
concretizado nos acordos parlamentares.
Diante disso, é necessário propor soluções para o presente cubano com
a dimensão das mudanças ocorridas no país, da magnitude da
diversificação e das desigualdades que sua sociedade vivenciou dos anos
1990 até hoje e da diversidade dos discursos que deram representação a
essas mudanças.
Um consenso nacional sobre a utopia da justiça e da igualdade?
Cuba apresenta grandes diferenças, a seu favor, na gestão sanitária
da crise em relação a muitos países do mundo. No entanto, no cenário
atual, não parece suficiente repetir que a igualdade é a utopia
fundadora da Revolução. Nem é suficiente “morrer de sucesso” com o que
foi alcançado nesta esfera. Imaginar que a “utopia de 1959” está sempre
disponível da mesma forma despolitiza a história do que foi essa mesma
utopia, já que se naturaliza como se tivesse seguido um curso uniforme e
destemido ao longo da história.
Processar politicamente o horizonte crítico sobre o desencanto,
incompreensão ou rejeição da “utopia de 59” quando ela é tratada sem
mudanças a respeito de si mesma, requer ativismo social e a elaboração
autônoma dos sentidos políticos. Nesse campo, há grandes problemas: os
atores vinculados às demandas de raça, gênero e proteção animal e outras
disciplinas como os jovens, acadêmicos, o setor artístico e
intelectual, jornalistas, atletas e o campo religioso, foram
identificados no relatório do Congresso como alvo do “componente
subversivo da política dos Estados Unidos em relação a Cuba”.
A situação apresenta um dilema de peso: estabelece uma linha de
continuidade entre a ação cidadã em campos muito diversos e a gestão
intervencionista da política dos Estados Unidos. É real e historicamente
comprovada, mas não é abrangente nem subordinado a todo o tecido
realmente existente da sociedade civil nacional. Discernir entre uma
coisa e outra também deve ser o foco da discussão atual.
Entender a década de 1990 como a fronteira interna do processo
revolucionário é identificar as fraturas e transformações dentro da
história revolucionária. É entender que uma parte do campo social cubano
pensa o passado não como o anterior a 59 — o capitalismo dependente—,
mas como o anterior aos anos 1990 — a utopia materialmente realizada da
igualdade e da justiça social —, e que outras zonas sociais eles
construíram seus referentes críticos em resposta a esse “antes e depois”
ou, também, sem mais a memória dela no caso das gerações mais jovens.
Em seguida, afirmar que, se a Revolução for derrotada, Cuba pode
retornar à “república neocolonial” (1902-1958), que se partidos de
“direita” fossem permitidos, a nação estaria retrocedendo 60 anos em sua
história e que o horizonte comum da resposta política é a “restauração
capitalista”, pode-se interpretar mal a gama de comparações que
realmente existem nas gerações atuais e a natureza de algumas das
críticas ao desempenho do Estado cubano.
As gerações que convivem na Cuba de hoje têm em comum um passado que
se distancia cada vez mais de Cuba antes de 1959. Levá-lo em
consideração leva a reconhecimentos críticos: pode-se vivenciar um amplo
campo social que não enfrenta problemas que “ainda persistem” ou a
“vestígios que não puderam ser eliminados”, mas a problemas que também
foram criados, recriados e atualizados ao longo das suas vidas. Ou seja,
leva a confrontar a promessa da utopia revolucionária com sua própria
história, suas conquistas, suas dívidas e suas deficiências.
Este reconhecimento permite encontrar um fundo social de longo prazo
para as causas do atual aumento da crítica e oposição ao sistema
político, e permite identificar conteúdos da cultura política socialista
em Cuba a nível social, que o relatório central ao VIII Congresso
dificilmente nota, quando, por exemplo, afirma que a “alma da Revolução”
são as Forças Armadas Revolucionárias e não a mobilização do campo
popular.
Se o que foi dito acima for uma descrição plausível, relançar uma
“oferta ideológica” renovada com os princípios de igualdade (política e
social) e justiça social em seu centro pode ser uma forma essencial de
reconstruir o consenso em troca da lógica punitiva e repressiva que
promete controlar o conflito. E, com isso, oferecer uma nova noção de
futuro tanto para as gerações que viveram a utopia revolucionária
original, quanto para as novas gerações que apresentam demandas críticas
contra a desigualdade no contexto atual. Ou seja, uma reformulação da
utopia que politiza os conteúdos de justiça e igualdade e afirma
programas explícitos de sua realização na realidade.
Sem fazer isso, é provável que o atual momento cubano já implique uma
nova fronteira, diferente de 1959 e dos anos 1990, com consequências
políticas e culturais da importância das anteriores. Uma nova fronteira
que deixa para trás, como parte da política realizável, a utopia da
igualdade e da justiça.
“A agenda climática apocalíptica está a perder legitimidade”: Michael
Shellenberger, o ambientalista que diz que não estamos no fim do mundo
Numa entrevista por escrito, o autor de "Apocalipse Nunca" explica por
que acha contraproducente, e mesmo perigoso, exagerar a ameaça das
alterações climáticas. E, para ele, a solução encontra-se exatamente
onde muitos pensam que está o mal
Não
vem aí nenhuma extinção em massa, as alterações climáticas não vão
provocar fome, a desflorestação da Amazónia não tem efeitos drásticos
sobre a atmosfera, o aquecimento global não é responsável por grandes
incêndios florestais nos últimos anos. Para Michael Shellenberger, um
ambientalista de longa data que contesta aquilo que vê como alarmismo
desnecessário e até nocivo. é no desenvolvimento económico e tecnológico
- e em particular, na energia nuclear - que está a resposta mais
importante para os problemas ambientais. Essas ideias surgem no livro
"Apocalipse Nunca" (ed. Dom Quixote), a propósito de cuja recente edição
portuguesa o Expresso lhe enviou algumas questões.
O
seu livro é um apelo contra o alarmismo, ou uma narrativa apocalíptica,
se quisermos, que parece ter-se tornado a posição habitual em muitas
discussões sobre o ambiente. Quais dos seus aspetos o preocupam mais? É
verdade que as alterações climáticas podem tornar mais intensos alguns
eventos climatéricos extremos, e que os furacões são piores em nações
pobres do que nas ricas. O governo americano prevê, por exemplo, que a
intensidade máxima nas tempestades tropicais e furacões no Atlântico
aumentará 5% no século XXI. E isso sem contar as vidas potenciais que se
perdem com a menor produtividade agrícola, a doença e a subida do nível
do mar.
Mas não existe nenhum cenário
cientificamente válido que afirme que as alterações climáticas alguma
vez matarão 90 mil pessoas num único ano, muito menos só nos EUA. Embora
a intensidade dos furacões possa aumentar 5%, a mesma ciência prevê que
a sua frequência reduzir-se-á 25%. As mortes por desastres naturais
desceram 99% no Bangladesh e noutras nações pobres desde os anos 80,
embora o planeta tenha continuado a aquecer. Globalmente, o período de
cinco anos que terminou em 2020 teve o menor número de mortes em
desastres naturais de qualquer período de cinco anos desde 1980.
Nem
o Painel Intergovernamental sobre Alterações Climáticas das Nações
Unidas (IPCC) nem qualquer outro organismo científico reputado prevê uma
inversão da tendência de longo prazo para o declínio de mortes, mesmo
que as temperaturas subam significativamente. E relatórios tanto do IPCC
como da FAO (Organização das Nações Unidas para Agricultura e
Desenvolvimento) deixam claro que o crescimento económico e a tecnologia
existente deverão superar os impactos das temperaturas mais altas na
produção alimentar, nas doenças e nas subidas do nível do mar.
Contudo,
uma grande sondagem com 30 mil inquiridos pelo mundo fora descobriu que
cerca de metade acreditam que as alterações climáticas poderão
extinguir a humanidade. Profissionais de saúde mental veem-se agora
rotineiramente a lidar com ansiedade adolescente sobre o clima. Em
janeiro, soube-se que um em cada cinco crianças reportam ter pesadelos
sobre ele. É um disparate.
Pode
explicar um pouco melhor como os média contribuem para reproduzir o
alarmismo? É sobretudo uma questão de ignorância ou há mais em jogo? Tem
tido algum sucesso em ajudá-los a reparar no fenómeno? Em
parte, é para poderem usar os eventos mais visuais e dramáticos do
mundo, desde o furacão Sandy até aos fogos florestais da Califórnia,
para destacar o assunto junto dos eleitores. Se se reconhecesse que os
danos do furacão Sandy tiveram largamente a ver com o falhanço de Nova
Iorque em modernizar os seus sistemas de controle de inundações ou que
os incêndios florestais na Califórnia se deveram à acumulação de
combustível de madeira após décadas de supressão de fogos, os
jornalistas, cientistas e ativistas alarmistas ficariam privados dos
efeitos visualmente poderosos e dos "cabides noticiosos" de que precisam
para amedrontar as pessoas, angariar dinheiro e promover políticas
climáticas.
Acho que o objetivo do alarmismo é
simplesmente o próprio alarmismo. Não é reduzir as emissões de CO2, pois
aí ir-se-ia para o gás natural e a energia nuclear. Os grupos de
interesse do clima, porém, querem energia solar e eólica. Porquê? Por um
lado, porque as veem em harmonia com a natureza, e por outro, por
acharem que temos de fazer sacrifícios.
O alarmismo
climático não tem a ver só com dinheiro. Também com poder. As elites têm
usado o alarmismo climático para justificar esforços para controlar as
políticas alimentares e energéticas nos seus países de origem e pelo
mundo fora desde há mais de três décadas. Apenas na
última década, conseguiram desviar financiamento do Banco Mundial e
instituições similares que se destinava a fins de desenvolvimento e
orientá-lo para causas beneficentes, como painéis solares para aldeões,
que não potenciam o desenvolvimento. Quando a discussão
apocalíptica sobre armas nucleares chegou ao fim com o termo da Guerra
Fria, os medos seculares tiveram de arranjar algo diferente a que se
agarrarem. Mesmo as armas nucleares foram um substituto para
apresentações anteriores do apocalipse, incluindo o fascismo e o
comunismo. Além disso, no início dos anos 90, os medos do excesso
populacional esvaíram-se, pelo que os pensadores ambientais se viraram
para o clima.
A boa notícia é que a agenda climática
apocalíptica está rapidamente a perder legitimidade, e a falhar
politicamente. Isto não acontece apenas por os ativistas climáticos
encerrarem centrais nucleares e aumentarem as emissões, mostrando que as
suas motivações reais têm menos a ver com as alterações climáticas do
que com restringir o crescimento económico. Também é por as drogas
estarem a matar 300 vezes mais pessoas do que o clima, deixando claro
qual é a verdadeira emergência e qual não é.
Foi de alguma forma ostracizado por causa das suas opiniões? Houve críticas que tenha achado úteis? Embora
esperasse que o meu livro fosse controverso, não esperava que o
principal repórter climático da CNN o comparasse a um anúncio de tabaco,
ou que um jornalista ambiental com quase meio milhão de seguidores no
Twitter me acusasse de promover a "supremacia branca". E,
no entanto, sou um ativista do clima há 20 anos e um ativista ambiental
há mais de 30. Os governos, incluindo o congresso americano, pedem-me
regularmente que dê o meu testemunho enquanto especialista energético.
E, no ano passado, o IPCC pediu-me que fosse crítico especialista do seu
próximo grande relatório.
Mas como aponto factos
inconvenientes sobre o clima, as renováveis e o nuclear, atacam-me da
mesma forma que os heréticos sempre foram atacados. A sua esperança é
conseguir desviar a atenção do conteúdo, e denegrir o meu caráter.
Felizmente, não resultou. "Apocalipse Nunca" foi um best-seller. Está a
ser traduzido em mais de 15 línguas. Testemunhei seis vezes perante o
Congresso nos últimos 18 meses. E tenho mais dois livros em preparação
para a HarperCollins, um dos quais será publicado ainda este ano.
Menciona
o fundo religioso, por assim dizer, de muito desse pensamento
apocalíptico, embora aqui a entidade invisível superior seja a
'natureza', não Deus. Por vezes não é necessário um pouco desse tipo de
crença para se ser um ativista, ainda que secular - uma fé em algo que
nos transcende, ainda que não seja estritamente real? A
energia renovável e os movimentos ambientais constituem uma religião.
Há argumentos bíblicos que são usados: nós humanos, vivemos em tempo em
estado de harmonia com a natureza, e então ferimo-la, causámos-lhe dano,
violamo-la com conhecimento e tecnologia, com combustíveis fósseis e
nucleares.
Tombámos da natureza. Caímos, somos
culpados. Portanto, devemos parar de comer carne. Este é um ponto
central em muitas religiões: nada de carne, nada de prazer, nada de
viajar, ou o mundo perecerá. Como se diz no Livro da Revelação, o
apocalipse vem aí. O alarmismo climático é poderoso por ter
emergido como uma religião alternativa para pessoas supostamente
seculares, fornecendo muitos dos mesmo benefícios psicológicos da fé
tradicional. O alarmismo climático dá-lhes um propósito. Oferece-lhes
uma histórias que os apresenta como heróis e proporciona-lhes uma via
para encontrarem sentido nas suas vidas, retendo ao mesmo tempo a ilusão
de serem gente de ciência e razão, não de superstição e fantasia.
Não
há nada de errado na fé religiosa, e com frequência há muito de certo.
As religiões há muito tempo oferecem às pessoas o sentido, o propósito e
as consolações de que elas precisam para suportar os muitos desafios da
vida. As religiões podem ser um guia para comportamento positivo,
pró-social e ético. O problema com a nova religião
ambiental é que se tornou cada vez mais destrutiva. Leva os seus
aderentes a demonizar os seus opositores, e espalha ansiedade e
depressão sem satisfazer as necessidades espirituais mais profundas.
Na
sua opinião, quais foram as principais realizações do movimento
ambiental ao longo das últimas décadas? E que efeitos particularmente
negativos destacaria? Ao longo das últimas
décadas, o movimento ambiental criou globalmente áreas protegidas de
centenas de milhares de milhas. Isso é altamente significativo.
Mas a insensibilidade à necessidade que o Brasil tem de desenvolvimento
económico levou grupos ambientais, incluindo o Greenpeace, a defender
políticas que contribuíram para a fragmentação da floresta tropical e a
expansão desnecessária dos ranchos e da agricultura. Políticas
ambientais deviam ter resultado em "intensificação", cultivando mais
comida em menos terra. Em vez disso, resultaram em extensificação, e
numa reação política e por parte dos agricultores que levou à
desflorestação crescente.
O Greenpeace exigiu um
Código Florestal muito mais estrito do que o que foi imposto pelo
governo brasileiro. O Greenpeace e outras ONG ambientais exigiram que os
proprietários mantivessem uma grande parte dos seus terrenos, 50% a
80%, como floresta através do Código Florestal do Brasil.
O
Greenpeace tentou impôr restrições mais estritas da agricultura na
floresta da savana, conhecida como o Cerrado, onde muita da soja
brasileira é cultivada. "Os agricultores ficaram receosos de que
houvesse outra moratória dos governos às importações de soja do Brasil",
explica Nepstad. "O Cerrado é 60 por cento da cultura de soja da nação.
A Amazónia é 10 por cento. Assim, isto é um assunto bastante mais
sério".
A campanha da Greenpeace levou jornalistas,
políticos e o público a misturar a savana do Cerrado e a floresta da
Amazónia, fazendo crer que a expansão do cultivo de soja no Cerrado era o
mesmo que derrubar árvores na floresta tropical. Mas há
muito mais justificação económica e ecológica para a desflorestação no
Cerrado, que é muito menos diverso biologicamente, e tem solos mais
adequados ao cultivo de soja, do que a floresta tropical. O Greenpeace e
os jornalistas exageraram o problema, criando a impressão errada de que
os dois lugares tinham igual valor ecológico e económico.
Alguma
vez o inquieta que o que escreve possa ser usado por pessoas que não
são de forma nenhuma ambientalistas e querem apenas acabar com qualquer
tipo de limitações às atividades económicas? Toma algum tipo de
precauções contra isso, ou simplesmente não é uma questão? Trabalho
nesta área há 30 anos e nunca encontrei ninguém que corresponda à
caricatura que está a descrever. Essa caricatura foi criada por grupos
como o Greenpeace para estigmatizar opositores da sua agenda radical
como indiferentes ao ambiente, quando na realidade esses opositores
muitas vezes levantam questões económicas e ambientais sérias.
As
renováveis que dependem do tempo tornam cara a eletricidade. Veja as
redes elétricas: a oferta e a procura são melhor conciliadas em sistemas
com um pequeno número de grandes centrais. Se agora acrescentarmos as
energias renováveis, temos de acrescentar uma quantidade enorme de
equipamento, controles, empregados e agências do estado. É assim que se
geram custos e se obriga as pessoas a pagarem mais pela eletricidade.
Os
ambientalistas apocalípticos como Greta Thunberg alegam que combater as
alterações climáticas requer sacrifícios económicos, mas a história
desmente isso. As nações ricas têm vindo a reduzir as suas emissões
desde há décadas, ao mesmo tempo que crescem economicamente. Os
sacrifício só é necessário quando se utilizam renováveis. Mas se
avançarmos na direção do progresso, da madeira ao carvão ao gás natural e
à energia nuclear, nenhuns sacrifícios são precisos; pelo contrário,
criaremos mais prosperidade.
Nos EUA, as emissões de
dióxido de carbono caíram mais abruptamente desde 2000 do que em
qualquer outro país do mundo. Em comparação com 2005, a diminuição já
atinge 22 por cento. O objetivo de Paris era 17 por cento. Neste momento
já o excedemos, e por razões que nada têm a ver com o Acordo de Paris. A chave foi o fracking
(fraturamento) para obter gás natural. O gás natural provoca cerca de
metade das emissões de CO2 do carvão e essa mudança, que já está em
curso há algum tempo, traz um alívio considerável. Sob Trump, a mudança
aconteceu tão rapidamente como sob Obama, e as emissões ainda caíram a
um ritmo acelerado.
A descida do preço do gás
natural poupou aos consumidores custos de 100 mil milhões de dólares por
ano. Portanto ainda é mais dramático do que dizer que um provoca menos
custos do que o outro: reduzimos as emissões de CO2 tornando as energias
limpas mais baratas; por outras palavras, obtendo um lucro. Nada disto devia ser surpreendente. Salvamos a natureza através do crescimento económico, não do decrescimento.
A
inovação do petróleo, que criou imensa prosperidade, acabou com a
necessidade de os humanos matarem baleias pelo óleo de baleia, o que
salvou da destruição muitas dessas espécies. A criação do plástico pôs
fim à matança de tartarugas-marinhas pelas suas carapaças tipo plástico.
A inovação da energia nuclear pôde descarbonizar a rede elétrica e as
indústrias, oferecendo a eletricidade mais fiável do planeta e
estimulando o crescimento económico.
A sua
descrição da situação na Amazónia parece ser um exemplo do tipo de
compromissos (natureza vs. desenvolvimento económico) que acha que são
exagerados, e poderão mesmo ser falsos. Como vê as políticas de
Bolsonaro no último ano? Entre 500 e 1350, as
florestas passaram de cobrir 80 por cento da Europa ocidental e central a
cobrir metade disso. Os historiadores estimam que entre 800 e 1300 as
florestas de França se reduziram de 30 milhões de hectares para 13
milhões. As florestas cobriam 70 por cento da Alemanha em 900, mas
apenas 25 por cento em 1900.
E, no entanto, as
nações desenvolvidas, em particular as europeias, que enriqueceram
graças à desflorestação e aos combustíveis fósseis, procuram evitar que o
Brasil e outras nações tropicais, incluindo o Congo, se desenvolvam da
mesma forma. A maioria delas, incluindo a Alemanha, produzem mais
emissões de carbono per capita, incluindo pela queima de biomassa, do
que os brasileiros, mesmo tomando em conta a desflorestação da Amazónia.
A
desflorestação do Brasil voltou a aumentar em 2013 devido a uma severa
recessão económica e a uma reduzida aplicação da lei. A eleição de
Bolsonaro em 2018 foi tanto um efeito do aumento de procura por terra
como uma causa da desflorestação acrescida. Dos 210 milhões de
brasileiros, uns 55 milhões vivem na pobreza. Outros 2 milhões caíram na
pobreza entre 2016 e 2017.
Nada disto é para
sugerir que a subida das emissões de dióxido de carbono e as alterações
climáticas não implicam riscos. Implicam. Mas temos de compreender que
nem todos os seus impactos serão maus para o ambiente natural e as
sociedades humanas. Também nada disto significa que não
devemos estar preocupados com a perda de florestas antigas na Amazónia e
pelo mundo fora. Devemos. As florestas primárias oferecem habitats
únicos para as espécies. Embora o total de cobertura florestal na Suécia
tenha duplicado ao longo do último século, muitas das novas florestas
surgem em formas de explorações monoculturais de árvores.
Mas
se queremos proteger as florestas primárias que ainda restam, incluindo
na Amazónia, vamos ter de rejeitar o colonialismo ambiental e apoiar os
países nas suas ambições de desenvolvimento.
As
questões de utilização da terra são um dos seus focos, onde tem
opiniões que algumas pessoas acham surpreendentes. Até que ponto elas
são informadas pelas suas experiências pessoais? Sou
sensível aos comportamentos insensíveis dos ambientalistas do mundo
desenvolvidos, pois vivi com pequenos agricultores na América Latina e a
vida era extremamente difícil. A vida na Amazónia era em
muitos aspetos bastante mais dura do que na América Central, porque as
comunidades são muito mais remotas. Vivi em comunidades no Brasil que
praticavam a queimada. Começam com cortar árvores na floresta, deixar
secar a madeira e a biomassa, e então queimá-la. A cinza fertiliza os
campos. Então plantam-se as culturas, que dão um retorno escasso.
As
pessoas com quem trabalhei eram demasiado pobres para terem muito gado,
embora isso fosse o grau seguinte na escala económica. Cortar e queimar
era trabalho brutal. Os homens bebiam grandes quantidades de rum
enquanto o faziam. Passávamos tardes mais frescas e agradáveis a pescar
no rio.
No Brasil, como na Nicarágua, o meu
entusiasmo por cooperativas socialistas era com frequência maior do que
os dos pequenos agricultores que deveriam beneficiar delas. A maioria
dos pequenos agricultores que entrevistei queriam trabalhar o seu
próprio pedaço de terra. Podiam ser grandes amigos dos vizinhos, e até
ser seus familiares por via do nascimento ou do casamento, mas não
queriam trabalhar com eles. Não queriam ser explorados por alguém que
trabalhasse menos duramente, disseram-me.
A
ideia de que toda a gente deve passar a consumir menos, conforme nota, é
injusta para com aqueles no mundo que ainda se encontram muito longe
dos nossos próprios níveis de bem-estar. Mas o que acha de nós, no
chamado mundo rico, seguirmos essa instrução? Seria útil, e se sim, de
que formas? A covid-19 mostrou-nos as
limitações de consumir menos. Parámos a economia global e consumimos
muito menos do que o habitual. No entanto, as emissões de dióxido de
carbono caíram apenas 6 por cento. Isso mostra as limitações de consumir
menos, mesmo em países ricos.
O que lhe
diz a noção, promovida por Michael Pollan [escritor e jornalista
americano] e outros, de que o que é bom para a nossa saúde é geralmente
bom para o planeta, constituindo o peixe uma rara exceção? A
pobreza é o nosso pior problema ambiental. Os agricultores pobres usam
muito mais terra para produzir culturas do que as práticas agrícolas
altamente desenvolvidas, invadindo espaços protegidos e causando danos à
vida selvagem. Este tipo de pobreza também desencoraja a vida em
cidades, onde os impactos ambientais humanos são menores.
Em
relação ao peixe, ele é uma forma de proteína incrivelmente nutritiva, e
atualmente estamos a pescar demais no planeta inteiro. As culturas de
peixe, incluindo com peixe geneticamente modificado, diminuirão o
impacto ambiental de consumir peixe e reduzirão o seu preço, o que é bom
para nós e para o ambiente.
Num livro
recente, Bill Gates também coloca muita da sua ênfase em soluções
tecnológicas. Ele tem sido criticado, entre outras coisas, por
subestimar a importância dos comportamentos individuais. Qual é a sua
ideia sobre o valor de uma educação ambiental nas escolas, por exemplo? Uma
comparação da Alemanha com a França é extremamente interessante. Por
cada unidade de eletricidade, a França gera um décimo das emissões de
CO2 da Alemanha, e o preço da eletricidade em França é metade. Existe
algo do que Greta Thunberg propõe em termos de comportamento individual
que possa reduzir as emissões em 90%? Só recusando voar, conduzir e
comer carne. Os franceses mostram que se pode continuar a fazer todas
essas coisas e mesmo assim reduzir as emissões radicalmente mais do que a
Alemanha, e com metade dos custos.
Defino Ética como uma reflexão sobre a moral. Entendo moral o conjunto de determinados comportamentos sociais dos indivíduos. Estes são sempre historicamente concretos, por vezes regionais e locais, mutáveis, mas podem ascender a normas universais. A Ética é uma modalidade temática filosófica, orienta~se pelo modo de pensar filosófico, pelo património filosófico universal, pelos desafios que as normas morais provocam. Como tal, a Ética é diversa conforme a influência desta ou daquela corrente ou escola filosófica.
Entendo a Filosofia como uma luta entre uma linha materialista e uma linha idealista, entre outras origens e finalidades.
À investigação que os filósofos empreendem e a que chamo Ética, não são alheios, de modo nenhum, os acontecimentos que expressam as ideologias e as práticas sociais concretas ; portanto, a Ética é reflexão também no sentido dialéctico de expressar a historicidade das sociedades humanas. Tanto age sobre o mundo real presente, como é por ele influenciada. Assim se constituíram interpretações éticas diferentes no decurso das diferentes sociedades já extintas ou ainda presentes. O que significa que existiram diferentes normas morais, ou que ainda existem.
A moral distingue-se da política, das leis (jurídicas), da economia (podem existir normas com algum grau de autonomia relativamente às leis, que não são proibidas no regulamento jurídico concreto, mas que a sociedade censura).
O modo de produção capitalista assenta no direito à compra da força de trabalho e consumir o seu valor de uso com a finalidade de produzir valor. A mais-valia (o valor dinheiro realizado na venda de bens produzidos para além do tempo e do valor do salário recebido pela mercadoria (trabalho vivo) força-de-trabalho) não termina com o socialismo. A diferença está na forma de apropriação e secundariamente no modo como é usado esse lucro em dinheiro.
O Direito tem como finalidade principal (e fundante) legalizar a apropriação privada da mais-valia ; por isso, chamo burguês ou capitalista a este Direito ou regime jurídico. Sem esse direito (ou liberdade individual) nenhum indivíduo seria capitalista, nenhum indivíduo estaria interessado (interesse próprio) em investir uma certa soma de dinheiro, nem seque existiria o dinheiro como moderno equivalente universal que permite a troca no mercado.
Perguntamos então: a moral rege esse processo ou ele é exclusivamente económico? É ele moral ou imoral (ou amoral)?
A Ética pensa, teoriza, investiga este processo? Não sendo ele moral (por hipótese), qual a matéria em que essa Ética reflecte? Ou seja: cabe à Ética (também, juntamente com a Economia e o Direito) justificar ou injustificar este processo económico e jurídico?
Há no marxismo tradicionalmente uma certa tendência para enfatizar a determinação pela classe social (origem, pertença, consciência de classe "determinada" pelo interesse de classe) para as motivações individuais e colectivas dirigidas às lutas anticapitalistas, subestimando ou secundarizando os valores morais. Ora, os valores éticos ou morais que regem a conduta (interpretações, atitudes, acções) individual e colectiva são, em variadíssimos casos, igualmente determinantes; por vezes constituem os motivos primariamente determinantes. Particularmente nas camadas sociais intermédias e inclusivamente em indivíduos das classes dominantes. A indignação perante as injustiças sociais de que o indivíduo responsabiliza o Sistema, a sociedade capitalista (os monopólios e oligopólios, o neoliberalismo), a indignação perante invasões militares desencadeadas pelas grandes potências capitalistas, determinados boicotes económicos (contra o Iraque, que matou, segundo se apurou, quase um milhão de crianças), golpes de estados sangrentos que os EUA coordenaram conforme depois se demonstrou (como na Indonésia), e outros exemplos, empurram, digamos assim, não só indivíduos singulares para a luta antisistema, mas largos segmentos sociais (como se verificou em algumas revoluções do século passado). É a indignação moral que se torna indignação política e ambas vertentes compõem as coisas.
Os valores morais têm desempenhado um poderoso papel nas mobilizações de massas do século passado, mas isso já se verificava no século dezanove.
Indivíduos-família, privilegiados, das classes dominantes, envolvem-se nas lutas e filiam-se em partidos revolucionários; nalguns casos tornam-se os seus líderes, ou foram eles que iniciaram a organização da luta. Advogados, professores, jornalistas, grandes empresários inclusivamente se pensarmos em Engels...
As lutas estudantis contribuíram inegavelmente para o golpe militar de 25 de Abril que derrubou a ditadura fascista e, a seguir, desempenharam um papel não menos importante (nem sempre positivo, digo eu) no processo revolucionário; e quem eram os estudantes universitários ao tempo da ditadura, senão, na sua maioria, filhos da média e grande burguesia? Fizeram-no por interesses de classe, da sua classe originária e de pertença? Por consciência de classe??
Há, pois, que sublinhar o papel dos valores morais. Da chamada consciência moral. Há que estudar mais e melhor a Ética. Encontramos no Marx dos Manuscritos de 44, juvenis, largos e fecundos exemplos desta maneira de ver as coisas.
Criticamos determinadas "filosofias dos valores" que os desvinculam das classes sociais, dos modos de produção, das relações sociais historicamente concretas, mas não negamos a importância dos valores. Sejam eles morais ou estéticos. As lutas anticapitalistas necessitam de apelar para a indignação dos indivíduos que se regem por valores que o capitalismo espezinha e despreza. Valores que aprenderam na família, que os filósofos e os livros de doutrina liberal homenageiam, mas que na prática o capital nega. Valores que são mesmo incompatíveis com o império financeiro e o "livre" mercado.
Não são exclusivamente os interesses de classe (que os sindicatos operários defendem) que mobilizam a conduta. As lutas de classes são mais complexas.
Erik Olin Wright
Sociólogo
Erik
Olin Wright foi um sociólogo norte-americano, integrante do marxismo
analítico, professor da Universidade de Wisconsin-Madison. Seus
trabalhos mais influentes abarcaram a definição de classes sociais e a
teorização de alternativas ao capitalismo, o que ele chamou de utopias
reais.Wikipédia
O
caráter imperialista dos Estados Unidos é um dado indiscutível da
geopolítica contemporânea. A extensão desse qualificativo à China
suscita, por outro lado, debates apaixonados.
Nossa abordagem
ressalta a assimetria entre os dois adversários, o perfil agressivo de
Washington e a reação defensiva de Pequim. Enquanto a primeira potência
procura restaurar seu domínio mundial em declínio, o gigante asiático
tenta sustentar um crescimento capitalista sem confrontações externas.
Enfrenta também sérios limites históricos, políticos e culturais para
intervir com atos de força em escala global. Por estas razões, não faz
parte atualmente do clube dos impérios (Katz, 2021).
Esta
caracterização contrasta com as abordagens que descrevem a China como
uma potência imperial, depredadora ou colonizadora. Define também o grau
de eventual proximidade desse estatuto e que condições deveria
preencher para situar-se nesse plano.
Nosso ponto de vista também
mostra que a China deixou para trás sua antiga condição de país
subdesenvolvido e agora faz parte do núcleo das economias centrais. A
partir deste novo lugar, capta grandes fluxos internacionais de valor e
comanda uma expansão que lucra com os recursos naturais fornecidos pela
periferia. Por conta dessa localização na divisão internacional do
trabalho, não faz parte do Sul Global.
Nossa visão compartilha as
diferentes objeções que foram levantadas quanto à identificação da China
como um novo imperialismo. Mas questiona a apresentação do país como um
ator meramente interessado na cooperação, na mundialização inclusiva ou
na superação do subdesenvolvimento de seus parceiros.
Uma revisão
de todos os argumentos em debate ajuda a clarificar o complexo enigma
contemporâneo do estatuto internacional da China.
Comparações inadequadas
As
teses que postulam o total alinhamento imperial da China atribuem esse
posicionamento ao giro pós-maoísta iniciado por Deng na década de 1980.
Avaliam que esta guinada consolidou um modelo de capitalismo expansivo,
que reúne todas as características do imperialismo. Vêem na subjugação
econômica imposta ao continente africano uma confirmação desta conduta.
Também denunciam que nessa região a antiga opressão europeia se repete
com hipócritas dissimulações retóricas (Turner, 2014: 65-71).
Mas
esta caracterização não leva em conta as diferenças significativas entre
as duas situações. A China não envia tropas para países africanos –
como a França – para convalidar seus negócios. Sua única base militar,
numa encruzilhada comercial chave (Djibuti), contrasta com o enxame de
instalações que os Estados Unidos e a Europa criaram.
O gigante
asiático evita envolver-se nos processos políticos explosivos do
continente negro e sua participação nas “operações de paz da ONU” não
define um estatuto imperial. Inúmeros países claramente alheios a essa
categoria (como o Uruguai) contribuem com tropas para as missões da ONU.
A
comparação da China com a trajetória seguida pela Alemanha e pelo Japão
durante a primeira metade do século XX (Turner, 2014: 96-100) é
igualmente discutível. Não se trata de um curso corroborado pelos fatos.
A nova potência oriental tem evitado transitar até agora pelo caminho
belicista desses antecessores. Atingiu um impressionante protagonismo
econômica internacional, aproveitando as vantagens competitivas que
encontrou na globalização. Não compartilha a compulsão pela conquista
territorial que acometia o capitalismo alemão ou japonês.
No
século XXI, a China desenvolveu formas de produção mundializadas que não
existiam no século anterior. Essa novidade deu-lhe uma margem inédita
para expandir sua economia, com pautas de cautela geopolítica,
inconcebíveis no passado.
As analogias errôneas estendem-se também
ao que aconteceu com a União Soviética. Avalia-se que a China repete a
mesma implementação do capitalismo e a consequente substituição do
internacionalismo pelo “social-imperialismo”. Esta modalidade é
apresentada como uma antecipação das políticas imperialistas
convencionais (Turner, 2014:46-47).
Mas a China não seguiu a pauta
da URSS. Introduziu limites à restauração econômica capitalista e
manteve o regime político que colapsou no vizinho. Como um analista
assinala corretamente, toda a administração de Xi Jinping tem sido
guiada pela obsessão de evitar a desintegração sofrida pela União
Soviética (El Lince, 2020). As diferenças estendem-se, na atualidade, ao
setor militar externo. A nova potência asiática não empreendeu qualquer
ação semelhante à desenvolvida por Moscou na Síria, Ucrânia ou Geórgia.
Critérios errôneos
A
China também é colocada no bloco imperial, a partir de avaliações
inspiradas num texto conhecido do marxismo clássico (Lenin, 2006).
Afirma-se que a nova potência reúne as características econômicas
apontadas por esse livro. A gravitação dos capitais exportados, a
magnitude dos monopólios e a incidência dos grupos financeiros
confirmariam o estatuto imperialista do país (Turner, 2014: 1-4, 25-31,
48-64).
Mas estas características econômicas não fornecem
parâmetros suficientes para definir o lugar internacional da China no
século XXI. Certamente, o peso crescente dos monopólios, bancos ou
capitais exportados aumenta as rivalidades e tensões entre as potências.
Mas estes conflitos comerciais ou financeiros não explicam as
confrontações imperiais, nem definem o estatuto específico de cada país
na dominação mundial.
Suíça, Holanda ou Bélgica ocupam um lugar
importante no ranking internacional da produção, troca e crédito, mas
não desempenham um papel protagonista no âmbito imperial. Por sua vez, a
França ou a Inglaterra desempenham um papel importante neste último
domínio, que não deriva estritamente de sua primazia econômica. A
Alemanha e o Japão são gigantes da economia com intervenções vedadas
fora desse âmbito.
O caso da China é muito mais singular. A
preeminência dos monopólios em seu território apenas confirma a habitual
incidência desses conglomerados em qualquer país. O mesmo acontece com a
influência do capital financeiro, que gravita menos do que em outras
economias de grande porte. Ao contrário de seus concorrentes, o gigante
asiático conquistou posições na globalização prescindindo da
financeirização neoliberal. Além disso, não mantém qualquer semelhança
com o modelo bancário alemão do início do século XX que Lenin estudou.
É
verdade que a exportação de capitais – apontada pelo líder comunista
como um dado marcante de seu tempo – é uma característica significativa
da China de hoje. Mas essa influência apenas ratifica a conexão
significativa do gigante oriental com o capitalismo global.
Nenhuma
das analogias com o sistema econômico imperante no século passado ajuda
a definir o estatuto internacional da China. No máximo facilitam a
compreensão das mudanças observadas no funcionamento do capitalismo. O
que aconteceu na geopolítica global pode ser esclarecido com outros
tipos de reflexões.
O imperialismo é uma política de dominação
exercida pelos poderosos do planeta através de seus estados. Não
constitui uma etapa permanente ou final do capitalismo. O escrito de
Lênin esclarece o que aconteceu há 100 anos, mas não o curso dos
acontecimentos recentes. Foi elaborado num cenário muito distante de
guerras mundiais generalizadas.
O apego dogmático a esse livro
induz à procura de semelhanças forçadas do atual conflito entre os
Estados Unidos e a China com as conflagrações da Primeira Guerra Mundial
(Turner, 2014: 7-11). A principal disputa contemporânea é vista como
uma mera repetição das rivalidades inter-imperiais do entreguerras.
Essa
mesma comparação está sendo utilizada atualmente para denunciar a
militarização chinesa do Mar do Sul. Avalia-se que Xi Jinping persegue
os mesmos propósitos que a Alemanha mascarava para apoderar-se da Europa
Central, ou que o Japão disfarçava para conquistar o Pacífico Sul. Mas
omite-se que a expansão econômica da China tem sido consumada, até
agora, sem disparar um único tiro fora de suas fronteiras.
Também
se esquece que Lênin não pretendia elaborar um guia classificatório do
imperialismo, baseado na maturidade capitalista de cada potência. Apenas
sublinhava a catastrófica dimensão belicosa de sua época, sem
especificar as condições que cada participante desse conflito tinha que
reunir para ser inserido no universo imperial. Ele colocava, por
exemplo, uma potência economicamente atrasada como a Rússia dentro desse
grupo devido ao seu ativo protagonismo nos derramamentos de sangue
militares.
A análise de Lênin sobre o imperialismo clássico é um
acervo teórico de grande relevância, mas o papel geopolítico da China no
século XXI é clarificado com um conjunto diferente de ferramentas.
Um estatuto apenas potencial
As
noções marxistas básicas de capitalismo, socialismo, imperialismo ou
anti-imperialismo não são suficientes para caracterizar a política
externa da China. Estes conceitos fornecem apenas um ponto de partida.
Noções adicionais são necessárias para dar conta do rumo do país. A
simples dedução de um estatuto imperial da conversão do gigante oriental
na “segunda economia do mundo” (Turner, 2014: 23-24), não permite
elucidar os enigmas em jogo.
Mais acertada é a busca de conceitos
que registrem a coexistência de uma enorme expansão econômica da China
com uma grande distância da primazia estadunidense. A fórmula do
“império em formação” tenta retratar esse lugar de gestação, ainda
distante do predomínio americano.
Mas o conteúdo concreto desta
categoria é controverso. Alguns pensadores atribuem-lhe um alcance mais
avançado do que embrionário. Entendem que a nova potência se encaminha
de forma acelerada para a adoção de um comportamento imperial corrente.
Ressaltam a mudança introduzida com a base militar do Djibuti, a
construção de ilhas artificiais no Mar do Sul e a reconversão ofensiva
das forças armadas.
Esta visão postula que após várias décadas de
acumulação capitalista intensa, a fase imperial já começa a amadurecer
(Rousset, 2018). Tal avaliação aproxima-se do contraste típico entre um
pólo imperial dominante (Estados Unidos) e um pólo imperial em ascensão
(China) (Turner, 2014: 44-46).
Mas persistem diferenças
qualitativas muito significativas entre as duas potências. O que
distingue o gigante oriental de seu par norte-americano não é a
porcentagem de amadurecimento do mesmo modelo. Antes de embarcar nas
aventuras imperiais de seu rival, a China deveria completar sua própria
restauração capitalista.
O termo “império em formação” poderia ser
válido para indicar o caráter embrionário dessa gestação. Mas o
conceito só assumiria um significado diferente de maturidade crescente
se a China abandonasse sua atual estratégia de defesa. Essa tendência
está presente no setor capitalista neoliberal com investimentos no
exterior e ambições expansivas. Mas a predominância dessa fração
exigiria a submissão do segmento oposto, que privilegia o
desenvolvimento interno e preserva a atual modalidade do regime
político.
A China é um império em
formação apenas em termos potenciais. Administra o segundo produto bruto
do planeta, é o primeiro fabricante de bens industriais e recebe o
maior volume de fundos do mundo. Mas esta gravitação econômica não tem
equivalente na esfera geopolítico-militar que define o estatuto
imperial.
Tendências não resolvidas
Outra
avaliação considera que a China reúne todas as características de uma
potência capitalista, mas com um contorno imperial atrasado e não
hegemônico. Descreve o crescimento espetacular de sua economia,
apontando os limites que enfrenta para alcançar uma posição vencedora no
mercado mundial. Também detalha as restrições que enfrenta no setor
tecnológico em comparação com os concorrentes ocidentais.
A partir
desta situação ambígua, deduz a vigência de um “estado capitalista
dependente com características imperialistas”. A nova potência
combinaria as restrições de sua autonomia (dependência), com projetos
ambiciosos de expansão externa (imperialismo) (Chingo, 2021).
Mas o
registo correto de um lugar intermediário inclui, neste caso, um erro
conceitual. Dependência e imperialismo são duas noções antagônicas que
não podem ser integradas numa fórmula comum. Não se referem – como
centro-periferia – às dinâmicas econômicas de transferência de valor ou a
hierarquias na divisão internacional do trabalho. Por essa razão
excluem o tipo de misturas que a semiperiferia incorpora.
A
dependência supõe a vigência de um Estado submetido a ordens, exigências
ou condicionamentos externos, e o imperialismo implica o oposto:
supremacia internacional e um elevado grau de intervencionismo externo.
Não deveriam ser mesclados numa mesma fórmula. Na China, a ausência de
subordinação a outra potência convive com uma grande cautela na
ingerência em outros países. Não se verifica a dependência, nem o
imperialismo.
A caracterização da China como uma potência que
completou sua maturação capitalista – sem poder saltar para o degrau
seguinte do desenvolvimento imperial – pressupõe que o primeiro curso
não fornece apoio suficiente para consumar avanços em direção à
dominação mundial. Mas este raciocínio apresenta como dois estágios do
mesmo processo um conjunto de ações econômicas e geopolítico-militares
com signo diferente. Esta importante diferenciação é omitida.
Um
olhar semelhante sobre a China como um modelo capitalista concluído –
navegando no patamar inferior do imperialismo – é exposto por outro
autor com dois conceitos auxiliares: capitalismo burocrático e dinâmica
sub-imperial (Au Loong Yu, 2018).
O primeiro termo indica a fusão
da classe dominante com a elite governante e o segundo retrata uma
política limitada de expansão internacional. Mas uma vez que se supõe
que o país atua como uma superpotência (em competição e colaboração com o
gigante estadunidense), a passagem à plenitude imperial é vista apenas
como uma questão de tempo.
Esta avaliação sublinha que a China
completou sua transformação capitalista, sem explicar a que se devem os
atrasos na sua conversão imperial. Todas as limitações expostas neste
segundo terreno poderiam também ser apontadas no primeiro.
Para
evitar esses dilemas, é mais fácil constatar que as continuadas
insuficiências da restauração capitalista explicam as restrições ao
emblema imperial. Como a classe dominante não se ocupa dos meandros do
Estado, deve aceitar a estratégia internacional cautelosa promovida pelo
Partido Comunista.
Ao contrário dos
Estados Unidos, Inglaterra ou França, os grandes capitalistas da China
não estão acostumados a exigir a intervenção político-militar de seu
estado face à adversidade de um negócio. Não têm tradição de invasões ou
golpes de estado em países que nacionalizam empresas ou suspendem o
pagamento da dívida. Ninguém sabe quão rápido o estado chinês adotará
(ou não) estes hábitos imperialistas e não é correto considerar como
consumada essa tendência.
Depredadores e colonizadores?
A
apresentação da China como uma potência imperial é frequentemente
exemplificada pelas descrições de sua impressionante presença na América
Latina. Em alguns casos, postula-se que atua no Novo Mundo com a mesma
lógica depredatória implementada pela Grã-Bretanha no século XIX
(Ramírez, 2020). Em outras visões, são emitidos alertas contra as bases
militares que estaria construindo na Argentina e na Venezuela (Bustos,
2020).
Mas nenhuma destas caracterizações estabelece uma
comparação sólida com a ingerência avassaladora das embaixadas
estadunidenses. Este tipo de intervenção ilustra o que significa o
comportamento imperial na região. A China está a quilômetros de
distância de tal intromissão. Lucrar com a venda de bens manufaturados e
com a compra de matérias-primas não é o mesmo que enviar marines, treinar militares e financiar golpes de estado.
Mais
sensata (e discutível) é a apresentação do gigante oriental como um
“novo colonizador” da América Latina. Neste caso, estima-se que o hegemón ascendente tende a negociar um Consenso de Commodities
com seus parceiros na área, semelhante ao que foi criado anteriormente
pelos Estados Unidos. Esse entrelaçamento com Pequim complementaria o
que foi costurado por Washington e garantiria a inserção internacional
da região como fornecedora de insumos e compradora de produtos
elaborados (Svampa, 2013).
Esta abordagem retrata acertadamente
como a atual relação da América Latina com a China aprofunda a
primarização da região ou sua especialização nos elementos básicos da
atividade industrial. Pequim perfila-se como o principal parceiro
comercial do continente e usufrui dos benefícios desta nova posição.
A
América Latina, por outro lado, tem sido seriamente afetada pelas
transferências de valor em favor da poderosa economia asiática. Não
ocupa o lugar privilegiado que a China atribui à África, nem é uma área
de relocalização fabril como o Sudeste Asiático. O Novo Continente é
cortejado pela dimensão de seus recursos naturais. O esquema atual de
abastecimento de petróleo, mineração e agricultura é muito favorável a
Pequim.
Mas esta exploração econômica não é sinônimo de dominação
imperial ou de incursão colonial. Este último conceito aplica-se, por
exemplo, a Israel, que ocupa territórios alheios, desloca a população
local e confisca a riqueza palestina.
A migração chinesa não
cumpre um papel semelhante. Está dispersa por todos os cantos do
planeta, com uma especialização significativa no comércio varejista. Seu
desenvolvimento não é controlado por Pequim, nem obedece a projetos
subjacentes de conquista global. Um segmento da população chinesa
simplesmente migra, em estrita correspondência com os deslocamentos
contemporâneas da força de trabalho.
A China consolidou um
comércio desigual com a América Latina, mas sem consumar a geopolítica
imperial que continua sendo representada pela presença dos marines, da DEA, do Plano Colômbia e da IV Frota. A mesma função cumpre o lawfare ou os golpes de estado.
Aqueles
que desconhecem esta diferença costumam denunciar por igual a China e
os Estados Unidos como potências agressoras. Colocam os dois adversários
no mesmo plano e enfatizam sua prescindência neste conflito.
Mas
este neutralismo omite quem é o principal responsável pelas tensões que
abalam o planeta. Ignora que os Estados Unidos enviam navios de guerra
para a costa de seu rival e eleva o tom das acusações para gerar um
clima de conflitos crescentes.
As consequências desse
posicionamento são particularmente graves para a América Latina, que tem
uma história tempestuosa de intervenções estadunidenses. Ao equiparar
essa trajetória com um comportamento equivalente da China no futuro,
confunde realidades com eventualidades. Além disso, desconhece-se o
papel de um potencial contrapeso à dominação estadunidense que a
potência asiática poderia desempenhar numa dinâmica de emancipação
latino-americana.
Por outro lado, os discursos que colocam a China
e os Estados Unidos no mesmo plano são permeáveis à ideologia
anticomunista da direita. Tais diatribes refletem a combinação de medo e
incompreensão, que domina todas as análises convencionais do gigante
oriental.
Os porta-vozes
latino-americanos dessa narrativa costumam incluir saraivadas
simultâneas contra o “totalitarismo” chinês e o “populismo” regional.
Com a velha linguagem da Guerra Fria, alertam para o papel perigoso de
Cuba ou da Venezuela, como peões de uma próxima captura asiática de todo
o hemisfério. A sinofobia encoraja todo tipo de disparates.
Distante do Sul global
As
abordagens que acertadamente rejeitam a tipificação da China como
potência imperialista incluem muitos matizes e diferenças. Um amplo
espectro de analistas – que se opõem com razão à classificação do
colosso oriental no bloco dos dominadores – costuma deduzir desse
registo a localização do país no Sul Global.
Essa visão confunde a
geopolítica defensiva no conflito com os Estados Unidos com o
pertencimento ao segmento das nações economicamente atrasadas e
politicamente submetidas. A China tem até agora ignorado as ações
implementadas pelas potências imperialistas, mas esse comportamento não a
coloca na periferia, nem no universo das nações dependentes.
O
gigante asiático inclusive diferenciou-se do novo grupo de países
“emergentes” para atuar como um novo centro da economia global. Basta
notar que exportava menos de 1% de todos os produtos manufaturados em
1990 e agora produz 24,4% do valor agregado da indústria (Mercatante,
2020). A China absorve mais-valia através de empresas localizadas no
exterior e lucra com o fornecimento de matérias-primas.
Neste
marco, a ascensão do país ao pódio das economias avançadas está
consumada. Aqueles que continuam identificando o país com o conglomerado
do Terceiro Mundo desconhecem essa monumental transformação.
Alguns
autores mantêm a velha imagem da China como uma área de investimento
para as empresas multinacionais, que exploram a numerosa força de
trabalho oriental para transferir na sequência seus lucros para os
Estados Unidos ou Europa (King, 2014).
Essa drenagem esteve
efetivamente presente na decolagem da nova potência e persiste em certos
segmentos da atividade produtiva. Mas a China alcançou seu
impressionante crescimento nas últimas décadas retendo a maior parte
desse excedente.
Atualmente, a massa de fundos capturados através
do comércio e do investimento estrangeiro é muito maior do que os fluxos
inversos. Basta observar o montante do superávit comercial ou os
créditos financeiros para medir este resultado. A China deixou para trás
as principais características de uma economia subdesenvolvida.
Os
estudiosos que postulam a continuidade dessa condição tendem a
relativizar o desenvolvimento das últimas décadas. Costumam destacar
características de atraso que passaram a segundo plano. Os
desequilíbrios que a China enfrenta resultam de sobre-investimentos e
dos processos de superprodução ou de superacumulação. Deve lidar com as
contradições de uma economia desenvolvida.
O gigante oriental não
sofre dos típicos sufocos que atormentam os países dependentes. Está
livre do desequilíbrio comercial, da deficiência tecnológica, da
escassez de investimentos ou da asfixia do poder de compra. Nada na
realidade chinesa sugere que seu impressionante poder econômico seja uma
mera ficção estatística.
A nova potência conquistou posições na
estrutura econômica mundial. Não é correto colocá-la num patamar
semelhante às antigas periferias agrícolas, subordinadas às indústrias
metropolitanas (King, 2014). Essa inserção corresponde atualmente ao
enorme conjunto de nações africanas, latino-americanas ou asiáticas que
fornecem os insumos básicos para a maquinaria fabril de Pequim.
A
China é periodicamente classificada ao lado dos Estados Unidos no pódio
de um G2, que define a agenda estabelecida pelo G7 das grandes
potências. Esta avaliação é incompatível com a localização do país no
Sul Global. Nesse âmbito retraído, não poderia travar a batalha contra
seu rival norte-americano pela liderança da revolução digital. Nem
poderia ter desempenhado o papel protagonista que exibiu durante a
pandemia.
Após um desenvolvimento acelerado, a China foi colocada
na posição de economia credora, em conflito potencial com seus clientes
do Sul. Os sinais dessas tensões são numerosos. O medo da titularidade
chinesa dos ativos que garantem seus empréstimos gerou resistências (ou
cancelamentos de projetos) no Vietnã, Malásia, Mianmar ou Tanzânia
(Hart-Landsbergs, 2018).
A controvérsia sobre o porto Hambantota
no Sri Lanka ilustra este dilema típico de um grande credor. O não
pagamento de uma dívida elevada resultou, em 2017, no arrendamento por
99 anos destas instalações. Com base nessa experiência, a Malásia
revisou seus acordos e questionou os acordos que situam as melhores
atividades laborais no território chinês. O Vietnã levantou uma objeção
semelhante diante da criação de uma zona econômica especial, e os
investimentos que envolvem o Paquistão reavivam disputas de todo o tipo.
A
China começa a lidar com um estatuto contrário a qualquer pertencimento
ao Sul Global. No final de 2018, temia-se o eventual controle da China
sobre o porto de Mombasa caso o Quênia incorresse na suspensão dos
pagamentos de um passivo (Alonso, 2019). O mesmo receio começa a
emergir em outros países que possuem elevados compromissos de difícil
cobrança (Iêmen, Síria, Serra Leoa, Zimbábue) (Bradsher; Krauss, 2015).
Visões indulgentes
Outra
corrente de autores que registra o papel inédito da China nos dias de
hoje elogia a convergência com outros países e a transição virtuosa para
um bloco multipolar. Expõe estes cenários com simples descrições dos
desafios que o país enfrenta para manter seu rumo ascendente.
Mas
estes retratos bem-aventurados omitem que a consolidação do capitalismo
na China acentua todos os desequilíbrios já gerados pelas mercadorias
excedentes e pelos capitais excedentes. Essas tensões acentuam, por sua
vez, a desigualdade e a deterioração do meio ambiente. O desconhecimento
destas contradições impede-nos de perceber como a estratégia defensiva
internacional da China é minada pela pressão competitiva imposta pelo
capitalismo.
A apresentação do país como “um império sem
imperialismo” – que opera centrado em si mesmo – é um exemplo destas
visões condescendentes. Postula que a nova potência oriental desenvolve
um comportamento internacional respeitoso, de modo a não humilhar seus
adversários ocidentais (Guigue, 2018). Mas esquece que essa convivência
não é apenas corroída pelo assédio de Washington contra Pequim. A
vigência na China de uma economia cada vez mais orientada para o lucro e
para a exploração amplia esse conflito.
É verdade que o alcance
atual do capitalismo é limitado pela presença reguladora do estado e
pelas restrições oficiais à financeirização e ao neoliberalismo. Mas o
país já sofre com os desequilíbrios impostos por um sistema de
rivalidade e espoliação.
A crença de que no universo oriental rege
uma “economia de mercado” – qualitativamente diferenciada do
capitalismo e estranha às perturbações desse regime – é o equívoco
duradouro semeado por um grande teórico do sistema mundial (Arrighi,
2007: capítulo 2). Esta interpretação omite que a China não escapará das
consequências do capitalismo se consolidar a restauração inacabada
desse sistema.
Outras visões inocentes sobre o desenvolvimento
atual consideram frequentemente a política externa da China como
“mundialização inclusiva”. Destacam o tom pacífico que caracteriza uma
expansão baseada em negócios, e assentada em princípios de ganhos
partilhados por todos os participantes. Essas apresentações realçam
também a “aliança intercivilizacional” provocada pelo novo
entrelaçamento global de nações e culturas.
Mas será possível
forjar uma “mundialização inclusiva” no capitalismo? Como plasmar o
princípio de ganhos mútuos, num sistema regido pela concorrência e pelo
lucro?
Na verdade, a globalização implicou dramáticas brechas
entre ganhadores e perdedores, com a consequente ampliação da
desigualdade. A China não pode oferecer soluções mágicas para esta
adversidade. Ao contrário, aumenta suas consequências ao expandir sua
participação em processos econômicos regidos pela exploração e pelo
lucro.
Até agora, conseguiu limitar os efeitos tempestuosos desta
dinâmica, mas as classes dominantes e as elites neoliberais do país
estão determinadas em ultrapassar todos os obstáculos. Pressionam para
inserir Pequim nas crescentes assimetrias impostas pelo capitalismo
global. Fechar os olhos para esta tendência implica um auto-ocultamento
da realidade.
O próprio governo chinês elogia a globalização
capitalista, exalta as cúpulas de Davos e enaltece as virtudes do
livre-comércio com elogios vazios ao universalismo. Algumas versões
tentam conciliar esta reivindicação com os princípios básicos da
doutrina socialista. Afirmam que a Rota da Seda sintetiza as modalidades
contemporâneas de expansão econômica, como ponderava em meados do
século XIX o Manifesto Comunista.
Mas os críticos desta
interpretação insólita lembraram que Marx nunca aplaudiu esse
desenvolvimento (Lin Chun, 2019). Pelo contrário, ele denunciou suas
terríveis consequências para as maiorias populares de todo o planeta.
Com alquimias teóricas não se pode harmonizar o irreconciliável.
Controvérsias sobre a cooperação
Outra
visão complacente do rumo atual destaca a componente de cooperação da
política externa chinesa. Salienta que esse país não é responsável pelas
desventuras sofridas por seus clientes da periferia e ressalta o
caráter genuíno do investimento impulsionado por Pequim. Recorda também
que a pujança exportadora se baseia em incrementos da produtividade, que
em si mesmos não afetam as economias relegadas (Lo Dic, 2016).
Mas
esta idealização dos negócios omite o efeito objetivo da troca
desigual, que marca todas as transações realizadas sob a égide do
capitalismo mundial. A China capta excedentes das economias
subdesenvolvidas pela própria dinâmica dessas transações. Obtém grandes
lucros porque sua produtividade é superior à média desses clientes. O
que é apresentado num tom ingênuo como um mérito peculiar da potência
asiática é o princípio da desigualdade generalizada que prevalece no
capitalismo.
Ao afirmar que “a China não prioriza” seus parceiros
da América Latina ou da África, postula-se a responsabilidade exclusiva
do sistema mundial por esse infortúnio. Omite-se que a participação
protagonista da nova potência é um dado central do comércio
internacional.
Sugerir que a China “não tem culpa” pelos efeitos
gerais do capitalismo equivale a encobrir os lucros que obtêm as classes
dominantes desse país. Esses setores lucram por meio do aumento
ponderado da produtividade (com a utilização de mecanismos de exploração
dos assalariados) e materializam esses lucros na troca com as economias
atrasadas.
Ao elogiar uma expansão chinesa “mais assentada na
produtividade do que na exploração” (Lo, Dez, 2018), omite-se que ambos
os componentes retroalimentam o mesmo processo de apropriação do
trabalho alheio.
A contraposição entre a louvada produtividade e a
contestada exploração é típico da teoria econômica neoclássica. Essa
concepção imagina a confluência no mercado de diferentes “fatores de
produção”, omitindo que todos esses componentes se baseiam na mesma
extração de mais-valia. Tal expropriação é a única fonte real de todos
os lucros.
A mera reivindicação do perfil produtivo da China
também costuma destacar o contrapeso que introduziu à primazia
internacional da financeirização e do neoliberalismo (Lo Dic, 2018). Mas
os limites interpostos ao primeiro processo (fluxos especulativos
internacionais) não diluem o apoio dado ao segundo (atropelos
capitalistas contra os trabalhadores).
A reintrodução do
capitalismo na China foi o grande incentivo para a relocalização das
empresas e o consequente barateamento da força de trabalho. Essa mudança
contribuiu para a recomposição da taxa de lucro nas últimas décadas.
Para que o gigante asiático pudesse cumprir um papel eficaz de
cooperação internacional, deveria adotar estratégias internas e externas
de reversão do capitalismo.
Disjuntivas e cenários
A
China deixou para trás sua antiga condição de território dilacerado por
incursões estrangeiras. Já não atravessa a situação dramática que
enfrentou nos últimos séculos. Confronta o agressor norte-americano de
uma condição muito distante do desamparo predominante na periferia. Os
estrategistas do Pentágono sabem que não podem tratar seu rival como o
Panamá, Iraque ou Líbia.
Mas esse fortalecimento da soberania foi
acompanhado pelo abandono das tradições anti-imperialistas. O regime
pós-maoísta distanciou-se da política internacional radicalizada que
patrocinava a Conferência de Bandung e o Movimento dos Não-Alinhados.
Também enterrou qualquer gesto de solidariedade com as lutas populares
no mundo.
Esta mudança é a outra face de sua cautela geopolítica
internacional. A China evita conflitos com os Estados Unidos, sem
interferir nos atropelos de Washington. A elite governante enterrou
todos os vestígios de simpatia com as resistências ao principal opressor
do planeta.
Mas essa alteração enfrenta os mesmos limites que a
restauração e o salto para um estatuto internacional dominante. Está
sujeita à disputa não resolvida pelo futuro interno do país. O rumo
capitalista promovido pelos neoliberais tem consequências
pró-imperialistas tão fortes como o rumo anti-imperialista promovido
pela esquerda. O conflito com os Estados Unidos terá um impacto direto
nessas definições.
Quais são os cenários que se vislumbram na luta
com o concorrente norte-americano? A hipótese de uma distensão (e
consequente reintegração de ambas as potências) foi diluída. Os sinais
de uma luta duradoura são esmagadores e desmentem os diagnósticos da
assimilação da China à ordem neoliberal como parceiro dos Estados Unidos
que alguns autores postularam (Hung, Ho-fung, 2015).
O contexto
atual também dissipa as esperanças na gestação de uma classe capitalista
transnacional com membros chineses e estadunidenses. A escolha asiática
de um rumo diferenciado do neoliberalismo não é a única razão deste
divórcio (Robinson, 2017). A associação “chinamérica” – antes da crise
de 2008 – tampouco incluía amálgamas entre classes dominantes ou esboços
do surgimento de um estado partilhado.
A curto prazo, verifica-se
a forte ascensão da China diante de um evidente retrocesso dos Estados
Unidos. O gigante oriental está ganhando a disputa em todos os setores e
sua recente gestão da pandemia confirmou este resultado. Pequim
conseguiu controlar rapidamente o alcance da infecção, enquanto
Washington enfrentou um transbordamento que colocou o país no topo do
número de mortos.
A potência asiática também destacou-se por suas
ajudas sanitárias internacionais, diante de um rival que exibiu um
egoísmo arrepiante. A economia asiática já retomou sua elevada taxa de
crescimento, enquanto sua contraparte americana está lidando com uma
recuperação duvidosa do nível de atividade. A derrota eleitoral de
Trump coroou o fracasso de todas as operações estadunidenses para
submeter a China.
Mas o cenário a médio prazo é mais incerto e os
recursos militares, tecnológicos e financeiros que conserva o
imperialismo norte-americano tornam impossível antecipar quem sairá
vitorioso da confrontação.
Em termos gerais, poderiam ser
previstos três cenários diferentes. Se os Estados Unidos vencerem a
queda de braços, poderiam começar a reconstituir sua liderança imperial,
subordinando seus parceiros asiáticos e europeus. Se, por outro lado, a
China obtiver êxito com uma estratégia capitalista de livre-comércio,
consolidaria sua transformação numa potência imperial.
Mas uma
vitória do gigante oriental alcançada num contexto de rebeliões
populares modificaria completamente o cenário internacional. Esse
triunfo poderia induzir a China a retomar sua posição anti-imperialista,
num processo de renovação socialista. O perfil do imperialismo no
século XXI é decidido em torno destas três possibilidades.
*Claudio Katz é professor de economia na Universidad Buenos Aires. Autor, entre outros livros, de Neoliberalismo, neodesenvolvimentismo, socialismo (Expressão Popular).
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