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quarta-feira, 21 de julho de 2021

 

Fotografia

Um mergulho profundo na outra face de Cuba

O fotolivro Campesinos, do fotógrafo texano Richard Sharum, faz um retrato de uma Cuba que está fora dos roteiros turísticos. “Sabia que queria mergulhar profundamente na terra onde o sangue toca o solo e passar anos na companhia de pessoas que não vemos habitualmente retratadas.”

Fotogaleria
Las Tamaras, Julho de 2019 ©Richard Sharum

Sobre a cidade norte-americana de Corpus Christi, no Texas, pairou, em Outubro 1962, em plena Guerra Fria, a ameaça soviética de um ataque de mísseis balísticos provenientes de Cuba. Essa ameaça nunca foi esquecida por quem lá vivia e Cuba passou, desde então, aos olhos dos habitantes, a ser encarada como um inimigo visceral. O fotógrafo Richard Sharum cresceu em Corpus Christi a ouvir, repetidamente, histórias desse período. “Os cubanos odeiam a América”, escutava. “Durante a minha infância, essa história teve um impacto profundo sobre mim”, explicou ao P3. “Pensava muitas vezes que se aquela ameaça se tivesse cumprido, a minha família talvez não existisse.”

Por esse motivo, sempre sentiu curiosidade acerca de Cuba. “Sempre que encontrava imagens ou informação acerca do país eram sobre o Fidel Castro, os carros clássicos, o ambiente típico de Havana”, explica, reforçando a ideia de que esse ódio visceral permaneceria intacto após todos esses anos. “Cuba sempre foi, para mim, a ilha proibida.” Quando começou a dedicar-se profissionalmente à fotografia, em 2006, visitar Cuba tornou-se num objectivo a cumprir. Aquilo que pretendia ver no país, porém, não eram as coloridas ruas de Havana, as típicas imagens que todos produzem em Cuba. “Sabia que queria mergulhar profundamente na terra onde o sangue toca o solo e passar anos com pessoas que não vemos habitualmente retratadas.”

Entre Janeiro de 2016 e Novembro de 2019, Richard Sharum viajou por toda a ilha, de norte a sul, de este a oeste, e capturou a vida dos campesinos, os trabalhadores rurais de Cuba. O resultado dessas viagens está patente no fotolivro que irá publicar, pela Gost Books, em Setembro de 2021, intitulado, precisamente, Campesinos. “Queria compreender o seu modo de vida, compreender quem são, enquanto seres humanos”, explica. E como 85% da população do país vive em zonas rurais, foi essa franja que procurou retratar ao longo dos anos.

A vida no campo, em Cuba, é profundamente marcada pela sua manualidade, pelo recurso a força humana e animal. “Os campesinos são extremamente resilientes e têm uma capacidade extraordinária no que toca a arranjar soluções para problemas práticos”, descreve. “Vi-os fazer coisas incríveis com muito poucos recursos, a construir ferramentas com as próprias mãos com base em objectos que têm disponíveis.” Nas zonas rurais vive-se um período de êxodo dos jovens em direcção às grandes cidades. “São sobretudo os homens jovens quem abandona as aldeias cubanas em direcção aos centros urbanos”, descreve. “Os homens têm tendência a não ingressar no ensino superior e a migrar para as cidades em busca de trabalho. As mulheres jovens têm mais tendência a frequentar a universidade e a permanecer nas aldeias durante mais tempo.” Existe, por isso, um desequilíbrio que se tornará mais visível no futuro.”

Apesar das dificuldades da vida no campo, em muito relacionadas com o embargo norte-americano, que lhes veda o acesso a tecnologia que se tornou corriqueira em todo o mundo – como tractores e outra maquinaria que facilita os processos de cultivo e colheita de alimentos –, os campesinos pareceram-lhe pessoas felizes, pouco complicadas, extremamente generosas, hospitaleiras, emocionalmente inteligentes. “Em quatro anos de viagens, nunca assisti a uma discussão entre duas pessoas”, sublinha, com espanto. “O seu sentido de comunidade é extraordinário.”

Estará esse sentido comunitário relacionado com a existência de um regime comunista? “Quando lhes fiz perguntas acerca do regime, nunca ouvi coisas negativas. Salientaram sempre o facto de terem acesso a educação gratuita, a serviços de saúde – coisas que não tinham no período pré-revolução. Tinham 48% de iliteracia no país e agora todas as crianças frequentam a escola.” Não crê que, nos lugares mais remotos que visitou, existisse medo em abordar questões políticas. “Em Havana acredito que talvez exista mais resistência à crítica do Governo, mas nas zonas rurais senti que existia liberdade para conversar.” A crítica mais comum era direccionada ao embargo norte-americano e dos seus aliados. “Diziam-me, quase todos, que os governos dos EUA e de Cuba agem como crianças no que toca o embargo. E que era necessário ultrapassá-lo para que os cubanos pudessem aceder a bens e tecnologia. Querem ter acesso a ferramentas modernas para não se matarem, literalmente, a trabalhar no campo. O embargo tem um impacto negativo profundo na vida das pessoas.”

Na região de Sierra Maestra, a mais elevada cadeia de montanhas de Cuba, Sharon viveu algumas situações que tornaram esse prejuízo evidente. Numa pequena aldeia, conheceu uma família que não pode esquecer. “A filha mais pequena do casal adoeceu e vi o pai a levá-la, nos braços, para o interior de uma carrinha cheia de trabalhadores, para ser transportada para o hospital mais próximo”, descreve. “Nesse camião, em pleno Verão e sem ar condicionado, sem um anti-pirético disponível, ela ia em estado de letargia, cheia de febre.” Sharum, que costumava viajar com medicamentos de uso pessoal, não tinha nenhum na sua mala que pudesse valer à criança febril. “Soube, mais tarde, que a menina ficou paralisada de um lado da cara, que um dos seus braços perdeu a força e que ficou com lesões cerebrais devido à febre alta. Foi das poucas vezes que senti vontade de chorar quando me despedi da família.” A partir desse momento, sempre que viajava para Cuba levava sempre várias caixas de ibuprofeno para distribuir pelas famílias que encontrou.

Em dias de convulsão política e social, em Cuba, a questão do embargo tornou-se central. “Acredito que a população urbana de Cuba esteja, neste período em particular, a sofrer com escassez de bens e alimentos, mas essa representa 15% da população cubana. Não sei se será o suficiente para abalar os alicerces do regime.” Existem problemas que subsistem e que não estão relacionados com este período de crise e a história que partilhou vem confirmar isso mesmo. Ainda assim, Sharum rejeita que o seu livro contenha um retrato político do país, preferindo afastar-se do tema. “Nos Estados Unidos, actualmente, tudo é política e não quero que este seja um livro sobre o comunismo ou sobre o embargo, mas sim sobre a essência de homens e mulheres cubanos.” Richard acredita que a fotografia tem o poder de mudar mentalidades e que levar o seu retrato cubano até aos Estados Unidos poderá surtir um efeito positivo. “Quis ver os cubanos como são na realidade e o que vi tornou impossível a reconciliação com a memória do que aprendi sobre eles no passado.” São esses cubanos, essa Cuba, que Sharum quer mostrar aos seus compatriotas. E ao mundo.

La Perla, Março de 2019. Casal e duas filhas, que estão ao fundo. Uma das meninas tem um lado da face paralisada, um braço com pouca mobilidade e danos cerebrais que decorreram de uma febre alta que não foi atenuada por falta de medicamentos anti-piréticos na região.
Santo Domingo, Novembro de 2017
Santo Domingo, Novembro de 2017
Paso Malo, Novembro de 2019
Valle del Silencio, Janeiro de 2016
Santo Domingo, Novembro de 2017
Cayayal, Julho de 2019
Sierra Maestra, Novembro de 2019
Providencia, Novembro de 2019
Sierra Maestra, Julho de 2019. Homem recebe a última vacina contra a gripe de toda a aldeia.
Santo Domingo, Novembro de 2017
El Zarzal, Julho de 2019

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