A interpretação dos risos: do chiste ao humor em uma aulinha sobre Freud, por Gabriel Peters
Clique aqui para pdfPor Gabriel PetersRisos e psiquê
Por que rimos? Freud explica. Naturalmente, para entender sua explicação, é preciso partir do retrato da psique humana pintado pelo pai da psicanálise. Como não quero ser esmagado por uma biblioteca inteira, não mergulharei nos detalhes de tal retrato aqui. Também não tratarei da gradual evolução desse modelo do psiquismo humano ao longo das décadas em que o doutor Sigmund, trabalhador prodigioso, foi publicando suas ideias. Finalmente (e daí paro com as negações preliminares, juro), não me embrenharei na selva de leituras variadas e conflitantes que o homem recebeu em escolas diversas de psicanálise, como os clãs em torno de Klein ou Lacan (kleinicos e laclânicos respectivamente). Tudo isso dito, quando se trata de juntar a teoria freudiana do riso à sua concepção da psique, cabe lembrar que a principal obra de Freud sobre a “graça” e o “engraçado”, O chiste e sua relação com o inconsciente ([1905], 1976a), foi publicada bem antes da sua “tópica” ([1923] 1976b) mais famosa do psiquismo: aquela que divide a psique em “id”, “ego” e “superego” (na tradução anglófona que lemos primeiro no Brasil) ou “isso”, “eu” e “supereu” (na tradução do alemão, mais próxima da linguagem coloquial do autor). Felizmente, ninguém menos do que o próprio Freud (1974: 189) sublinhou a compatibilidade entre aquela tópica madura e as conclusões a que ele chegara um tanto antes em seu ensaio sobre os “chistes” ou "piadas" - se entendermos o termo em sentido amplo, referente a construções verbais feitas para fazer rir (por exemplo, um dito espirituoso no meio de uma conversa), para além do sentido mais restrito de narrativas pré-fabricadas (p.ex., "um francês, um inglês e um brasileiro entram num bar..."). É em nome do pai que podemos, assim, dar um trato “sincrônico” a esses diferentes textos.
Uma criatura internamente divididaOs contornos essenciais da “metapsicologia” de Freud são bem conhecidos (Freud, 1976b: 33-54). A psique humana seria palco de um drama mais ou menos intenso, mais ou menos “(a)normal”, envolvendo as relações de conflito e “compromisso” entre três personagens: o id, o ego e o superego. (Ficarei com os termos da tradução inglesa porque me acostumei com eles). A primeira instância constitui o repositório de impulsos sexuais e agressivos inconscientes que pressionam insistentemente a psique em busca de imediata gratificação. As pulsões selvagens do id que clamam por satisfação se chocam com a oposição firme do superego, o sítio psíquico em que as restrições que o meio social impõe aos indivíduos tornaram-se interiorizadas, em um processo de socialização cujo cerne é o Complexo de Édipo. Finalmente, o ego opera como o locus da atenção e da consciência, mediante o qual o indivíduo se adapta aos contextos práticos do mundo, isto é, às demandas e limites do “princípio de realidade”. A instância egoica também é a mediadora entre os impulsos eróticos e agressivos do id, de um lado, e as exigências e proibições morais internalizadas no superego, de outro. Como mediador desse conflito estrutural que habita nossa psique, o ego busca soluções negociadas ou “formações de compromisso” entre aquelas partes conflitantes, formações das quais resultam fenômenos psíquicos como os sonhos, os atos falhos e os sintomas neuróticos. Freud elucida essa concepção dinâmica da psique em uma passagem que indica, de lambuja, o percurso biográfico de diferenciação interna por meio do qual aquelas instâncias psíquicas se desenvolvem umas a partir das outras: “Se o ego fosse simplesmente a parte do id modificada pela influência do sistema perceptivo, o representante na mente do mundo externo real, teríamos um simples estado de coisas com que tratar. Mas há uma outra complicação. As considerações...nos levaram a presumir a existência de uma gradação no ego, uma diferenciação dentro dele, que pode ser chamada de...‘superego’. O amplo resultado geral da fase sexual dominada pelo Complexo de Édipo pode, portanto, ser tomado como sendo a formação de um precipitado no ego...(...) O superego, contudo, não é simplesmente um resíduo das primitivas escolhas objetais do id; ele também representa uma formação reativa enérgica contra essas escolhas” (Freud, 1976b: 42; 49). Os impulsos inconscientes que intensamente cobram satisfação à psique são os mesmos cuja realização, ainda que apenas fantasiosa, provocaria uma angústia insuportável para o ego e o superego. Um sonho no qual o id realizasse abertamente o impulso edipiano inconsciente do indivíduo em ter relação sexual com sua mãe, por exemplo, não seria prazeroso, mas traumático para as outras partes da psique, justamente aquelas que interiorizaram a proibição do incesto. Levando em consideração os ditados do superego, o ego lança mão, então, de uma série de mecanismos de defesa dentre os quais o mais famoso é a repressão (“Verdrändung”), graças à qual aqueles impulsos são subtraídos à consciência (Freud, 1976c: 265). As pulsões inconscientes que moram no id estão lá, portanto, não porque foram meramente “esquecidas”, mas porque para lá foram banidas. Mais do que isso: elas ali permanecem mantidas e vigiadas pela agência repressiva do superego. Coagidos e vigiados, aqueles impulsos, entretanto, não desistem nunca. Eles continuam exercendo sobre a psique uma pressão contínua para escapar, perfazendo caminhos tortuosos para driblar a vigilância (super)egoica e encontrar uma satisfação, nem que seja apenas parcial. Para Freud, essa teoria da estrutura e da dinâmica do psiquismo oferece a chave de decodificação dos significados profundos ou “latentes” disfarçados sob a aparência “manifesta” de fenômenos psicológicos como sonhos, atos falhos e sintomas neuróticos. Os sonhos, por exemplo, resultam de uma “formação de compromisso” em que um desejo inconsciente é satisfeito sob uma forma disfarçada, da qual derivam os estranhos “significados manifestos” de uma experiência onírica. Esse disfarce simbólico ou hermenêutico permite ao desejo escapar parcialmente ao monitoramento do ego, mas também garante que o mesmo desejo continue escondido, em princípio, do próprio indivíduo em que ele habita. O impulso edipiano de ter relações sexuais com a mãe pode aparecer, por exemplo, em um sonho no qual o indivíduo adulto se vê carregado no colo por uma carinhosa senhora idosa. Graças ao mecanismo onírico do “deslocamento”, a senhora idosa (conteúdo manifesto) aparece como uma representação figurada da mãe (conteúdo latente). Mediante uma operação de “condensação”, por sua vez, os atos envolvidos na consumação do impulso sexual se agrupam na ação em que a senhora carrega o sujeito no colo – ato cuja inocência “manifesta” é um modo de satisfação indireta e parcial do desejo “latente”. Mutatis mutandis, poderíamos dar exemplos similares de interpretação psicanalítica tanto de sintomas psicopatológicos quanto do que Freud chamou de “atos falhos”. Os últimos são lapsos (de escorregadas verbais até lacunas de memória) que o autor tomava não como meros erros cognitivos, mas como irrupções momentâneas de impulsos do id, fossem sexuais stricto sensu (p.ex., alguém tenta dizer que vai chutar o pau da barraca e acaba dizendo “vou chupar o pau da barraca”) ou agressivos (“quando um de nós morrer”, diz um homem à sua esposa, “vou me mudar para Paris”, comentário que Freud interpreta como expressão de um desejo agressivo inconsciente de enviuvar [1974: 337]). Freud não se surpreenderia se alguém achasse graça de tais atos falhos, os quais ele discutiu em Sobre a psicopatologia da vida cotidiana [1901], publicado alguns anos antes de seu livro sobre a graça. Riso como alívio
A pintura antropomórfica que Freud faz das instâncias psíquicas, pintura na qual elas agem intencionalmente como “minipessoas” dentro da psique, não deve ser, obviamente, tomada em sentido literal. Trata-se de uma maneira didática pela qual esse escritor de mão cheia apresentava processos cuja realidade ele compreendia, de maneira abertamente biologizante, em termos de economia energética do cérebro (Freud, 1976c: 266). A hipótese de que aquelas relações entre id, ego e superego poderiam ser biologicamente traduzidas em fluxos de energia nervosa é relevante, ademais, à visão freudiana sobre “os chistes e sua relação com o inconsciente” (1976a). Freud formulou, nas suas próprias categorias, uma tese que já havia sido aventada por Herbert Spencer: a risada é uma liberação de energia nervosa. Utilizando-se de recursos semióticos (i.e., de construção de sentido) similares aos da composição onírica, como a condensação e o deslocamento, os chistes permitiriam uma via indireta de expressão e gozo de impulsos agressivos e sexuais cuja realização direta se encontra bloqueada. O montante de energia psíquica normalmente requisitado para sustentar a inibição de tais impulsos é tornado desnecessário diante do que “é só uma piada” (pelo menos para quem ri, é claro), e o excesso energético resultante encontra na risada um caminho de extravasamento. A liberação fisiológica de energia acarretada pelo riso é experimentada como prazerosa, diz Freud, porque associada à satisfação momentânea dos desejos evocados, mesmo que de modo disfarçado, pelo gracejo (p.ex., uma piada pré-fabricada, um comentário espirituoso etc.). Um dos aspectos mais interessantes da teoria freudiana do riso como alívio é o fato de que ela não abandona, mas integra a si duas teorias anteriores da risada, condensadas nas noções de superioridade (ou agressão) e incongruência. De Platão (s/d: 38) e Aristóteles (1966: 73-74) até Hobbes (2002: 49), a compreensão do riso como expressão de um sentimento súbito de superioridade foi hegemônica durante umas duas dezenas de séculos. Do ponto de vista sociopolítico, tais risos incluem tanto aqueles do opressor frente ao oprimido (p.ex., em piadas racistas, sexistas etc.) quanto os que exprimem a resistência dos dominados em relação aos dominantes (p.ex., a sátira como arma de crítica da dominação de classe, gênero, raça etc.). Ainda que visões alternativas à do riso agressivo já existissem desde a Antiguidade, foi sobretudo nos séculos XVIII e XIX, segundo a história padrão, que se desenvolveu uma segunda explicação influente do que faz os seres humanos rirem (Billig, 2005). A ideia de que o riso emerge em resposta à percepção de uma incongruência pode ser retraçada, no mínimo, até o iluminista escocês Francis Hutchenson no século de 1700. Desde então, tal teoria pôde ser encontrada em Kant (1993: 177-181), Schopenhauer (2001: 68) e Kierkegaard ou ainda, mais perto de nós, em Henri Bergson (2007), Arthur Koestler (1964) e Peter Berger (1997). Segundo tais visões, a experiência do cômico derivaria de uma disjunção entre nossas crenças e expectativas, de um lado, e o que descobrimos frente ao acontecimento humorístico, de outro. Não é difícil reconhecer que algumas manifestações do riso se prestam melhor, ao menos à primeira vista, a uma ou outra interpretação teórica. Piadas racistas, por exemplo, envolvem uma reivindicação de superioridade identitária. Um trocadilho erudito evidenciaria um prazer puramente intelectual diante de uma incongruência cognitiva. Um happy hour com conversas recheadas de palavrões, termos escatológicos e referências sexuais pode ser experimentado por um indivíduo como alívio: uma oportunidade relaxante para neutralizar parte do autocontrole exigido por suas atividades profissionais. Isto dito, duas ressalvas cabem. Por um lado, não devemos deslizar para a afirmação preguiçosa de que toda e qualquer manifestação da graça pode ser “classificada” sob uma e apenas uma daquelas etiquetas (“isso é superioridade”; “aquilo é incongruência”; “aquele outro é alívio”; etc.). Em diversos casos, é mais proveitoso pensar naquelas grades de interpretação como recursos analíticos com os quais podemos, em princípio, capturar diferentes aspectos de uma mesma situação engraçada - isto é, engraçada para alguém. Por outro lado, a ressalva anterior “em diversos casos” indica que também não precisamos ir ao outro extremo, deduzindo que toda e qualquer manifestação cômica carregaria, necessariamente e no mesmo grau, os componentes de superioridade, incongruência e alívio. Pensemos no riso diante do vídeo em que um chefe de estado leva um tombo em meio a um pomposo rito oficial. Ele pode ser lido sob o aspecto do sentimento momentâneo de superioridade que sentimos em relação a ele - tanto mais satisfatório como compensação pelo fato de que, na maior parte das circunstâncias, é ele quem tem mais poder sobre nós. Mas a risada também pode ser resposta à súbita incongruência entre a pompa do ritual, de um lado, e o ruinoso tombo que mostrou o governante como um corpo tão vulnerável quanto outro qualquer, de outro. Na medida em que Freud conectou o alívio cômico à satisfação de impulsos agressivos, ele já cavara um caminho para as teorias do humor como “sentimento de superioridade”. Por exemplo, a expressão humorística de reivindicações chauvinistas de superioridade em relação a outro grupo social (p.ex., em uma piada homofóbica) poderia oferecer um alívio momentâneo quanto às próprias inseguranças do piadista (p.ex., seus desejos homossexuais enrustidos). Por outro lado, Freud também notou que, mesmo quando um sentimento agressivo é a motivação de uma piada, ela ainda pode depender, no seu conteúdo linguístico, de um mecanismo cognitivo de incongruência (p.ex., uma palavra de duplo sentido). O pai da psicanálise foi sensível, portanto, às complexas misturas possíveis entre diferentes teorias do humor. Riso e brincadeiras infantisComo Freud se situa em relação à tradição intelectual que explica o riso como resultado de incongruência? Em primeiro lugar, ainda que a satisfação de impulsos reprimidos seja o núcleo da teoria freudiana do riso, o pai da psicanálise também registrou a existência de chistes que não estavam relacionados a pulsões sexuais e agressivas. O prazer oriundo de tais piadas “inocentes” ou “não tendenciosas” resultaria do fato de que as manobras cognitivas nelas envolvidas permitiriam que aliviássemos as exigências lógicas e racionais dos “processos secundários”, experimentando um estilo mais infantil de pensamento: - A plantinha passou mal durante a madrugada. Foi levada ao hospital, mas não foi atendida. - Por quê? - Porque só tinha médico de plantão.
Era uma festa apenas para astericos. Controlando a entrada, o segurança vê chegar um ponto final e fala: - Opa, amigo, você não pode entrar. Essa festa é só pra asteriscos. - Mas eu sou um asterisco. É que tô usando gel. Na sua obra de 1905, Freud também menciona formas não verbais da graça, como o paradigmático tombo na casca de banana e a comicidade física praticada por palhaços de circo ou exibida nos filmes mudos de Chaplin. Os tropeços e quedas associados ao cômico evocam formas de comportamento infantil. Por isso, o prazer experimentado com essas formas cômicas é explicado por Freud como um gozo momentâneo do mundo perdido da infância, ainda que ele admita que elas também possam dar ensejo, é claro, à satisfação de impulsos inconscientes, como o regozijo agressivo diante da dor e/ou humilhação de um sujeito que tomba. O grau de sadismo envolvido em alguns desenhos animados dirigidos (supostamente) a crianças dá testemunho dessas misturas entre o inocente e o não inocente. Falando nisso... Para além das incongruências inocentes
Voltemos às piadas da plantinha e do asterisco. Por que elas soam bobinhas? Em boa medida, diria um freudiano, porque suas incongruências são inocentes. Freud sugeriu que as incongruências que mais satisfazem nossos impulsos são, a bem da verdade, justamente aquelas que opõem o inocente ao não inocente. Dois amigos solteiros se encontram: - Então, você estava indo passar uma semana no acampamento de nudismo. Como foi? - Muito duro nos primeiros dias, mas depois fiquei mais habituado. O prazer da piada, para quem acha graça, não deriva somente de que “duro” pode ser entendido em dois sentidos diferentes, mas também de que um dos sentidos introduz uma possibilidade erótica como alternativa ao sentido inocente. De modo similar: Ao ser perguntada se era a favor do sexo antes do casamento, Linda Porter respondeu: - Por que não? Desde que não atrase a cerimônia. O duplo sentido implicado na noção de “antes de casamento” envolve, por óbvio, uma acepção restrita e uma acepção ampliada do “antes”, bem como os significados de “fenômeno prolongado” e “cerimônia festiva” que podem ser atribuídos ao termo “casamento”. Mas o gozo intrínseco dessas duplicidades de sentido se soma à satisfação em observar a passagem do “puro” ao “impuro”, a transmutação de preocupações puritanas em uma sexualidade liberta. O mesmo mecanismo retórico pode aparecer em piadas com conteúdo agressivo, mesmo quando tal conteúdo é menos direto e mais relacionado a alguma subversão de expectativas oriundas de nossa hierarquia habitual de preocupações morais: – Alô, Doutor Fulano? É a Sicrana, mãe do Pedrinho. Estou ligando porque ele acaba de engolir minha caneta. - Você já chamou uma ambulância? - Sim, mas o que devo fazer enquanto espero? - Escreva com um lápis. O consolo supergoico: humorEm uma breve palestra de 1928, mais de duas décadas após a publicação de seu livro sobre os chistes, Freud discutiu mais uma categoria do risível, a que deu o nome, em uma acepção restrita, de “humor”. No léxico freudiano, o humor é uma espécie de operação anestésica ou analgésica: circunstâncias que normalmente evocariam afetos negativos, como temor ou tristeza, são apresentadas sob uma perspectiva que as torna risíveis. A percepção humorística de situações perturbadoras não apenas previne ou alivia emoções dolorosas, mas também oferece um prazer associado à liberação da energia nervosa que estaria atada àquelas emoções: Alguns minutos antes da execução do prisioneiro condenado, o carrasco oferece a ele um último cigarro, ao que o prisioneiro responde: - Não, obrigado. Estou tentando parar. Freud sublinhou que o tipo de libertação adquirida através do humor - i.e., dessa espécie particular da graça - possui um halo de “grandeza e elevação” ausente nas satisfações agressivas ou eróticas presentes nos chistes. Tal halo derivaria da... “...afirmação vitoriosa da invulnerabilidade do ego. O ego se recusa a ser afligido pelas provocações da realidade, a permitir que seja compelido a sofrer. Insiste em que não pode ser afetado pelos traumas do mundo externo; demonstra, na verdade, que esses traumas para ele não passam de ocasiões para obter prazer” (1974: 190). Como um recurso para lidar com o sofrimento, o humor freudiano pode ser elencado entre os mecanismos de defesa da psique: “a extensa série de métodos que a mente humana construiu a fim de fugir à compulsão para sofrer – uma série que começa com a neurose e culmina com a loucura, incluindo a intoxicação, a auto-absorção e o êxtase” (Ibid.: 191). Em contraste com outras formações defensivas, entretanto, Freud atribui ao humor a dignidade especial de afirmar o princípio do prazer, contra as frustrações exigidas pela realidade, de uma forma que não ultrapassa “os limites da saúde mental” (Ibid.; grifos meus). O pai da psicanálise se debruçava sobre uma modalidade da graça praticada desde Demócrito até Machado de Assis, mas estava aparelhado para trazer algo novo à análise desse fenômeno: a analogia entre a postura do humorista que ri da própria insensatez angustiada, de um lado, e a posição de uma figura paterna que “sorri da trivialidade dos interesses e sofrimentos que parecem tão grandes” a uma criança, de outro (Ibid.). De modo similar ao que ocorre quando os pais consolam risonhamente a criança em seu berreiro angustiado diante de aflições que consideram minúsculas, como um pirulito não comprado, o humor seria um fenômeno em que o superego, justamente a instância psíquica que interiorizou o papel das figuras paternas, intervém para confortar um ego ansioso e aflito. Segundo a reinterpretação humorística do superego, o mundo que o ego julga ser tão perigoso “não passa”, no fim das contas, “de um jogo de crianças, digno apenas de que sobre ele se faça uma pilhéria” (Freud, 1974: 194). O textículo de Freud sobre o humor possui um interesse mais geral para a teoria psicanalítica, portanto, na medida em que complexifica a caracterização do superego, o qual aparece, na maior parte dos escritos de Freud, como um senhor duro e punitivo a vigiar implacavelmente os movimentos do ego – por exemplo, no famoso ensaio sobre Luto e melancolia ([1917] 2010) ou nas partes finais de O mal-estar na civilização, escrito pouco depois daquela palestra de 1928 ([1930] 1974). Isto dito, como ocorre com a sublimação dos impulsos pelo investimento da libido em atividades como a arte e a ciência, a capacidade de apreciar e produzir o humor, nesse sentido específico, é tida por Freud em uma chave bastante elitista, isto é, como um dom possuído apenas por uma minoria de indivíduos afortunados. Empíricos unidos: testes da “hidráulica” freudiana da psique na psicologia estadunidenseSe o prazer experimentado diante de um gracejo erótico ou agressivo vem da liberação da energia psíquica até então mobilizada para reprimir impulsos inconscientes, o gozo resultante seria tanto maior, supõe-se, quanto mais alto fosse o montante energético contido pela repressão. Os psicólogos que se dispuseram a testar tal predição empírica acarretada pela teoria psicanalítica do riso não encontraram, entretanto, uma confirmação dela. O psicólogo Rod Martin (2006: 38) faz um relato de diferentes pesquisadores norte-americanos que desenharam protocolos experimentais de avaliação das hipóteses de Freud. Tais pesquisadores descobriram que os indivíduos rotulados, por si próprios e por outros, como mais abertos na expressão de impulsos hostis eram precisamente aqueles que mais se divertiam com formas agressivas de humor. O mesmo acontecia no que toca à correlação entre desinibição sexual, de um lado, e nível de prazer diante da graça de feitio erótico, de outro. Os resultados colhidos nesses estudos seriam inconsistentes, portanto, com a “hidráulica da psique” apresentada por Freud. Aqueles achados soam mais facilmente explicáveis por uma teoria de condicionamentos comportamentais ou disposições duráveis fortalecidas por "reforços" vivenciais positivos. Tiradas humorísticas de conteúdo agressivo ou sexual engendram e reforçam, pela experiência reiterada, propensões conscientes da mesma natureza. Às vezes, um charuto é só um charuto; e, às vezes, quem mais ri de uma piada agressiva é o sujeito mais aberta e conscientemente agressivo. No mais, uma perspectiva oriunda das ciências sociais, diante do modelo da piada como estratagema para a expressão autorizada de temas sujeitos ao tabu e à censura, pode extrai-lo do plano intrapsíquico e projetá-lo no próprio domínio da interação social (Mulkay, 1988). Desse ponto de vista, sobretudo em um contexto “pós-vitoriano”, os indivíduos podem saber muitíssimo bem, obrigado, o quão intensamente investidos eles são em preocupações sexuais ou hostilidades pouco nobres. O que esses indivíduos encontrariam em contextos de piada não seria tanto uma válvula de escape para confessá-las a si próprios, mas um meio para partilhá-las com outras pessoas de modos socialmente aceitáveis e menos disponíveis no discurso normal e sério. ConclusãoUm/a psicanalista engenhosa/o poderia muito bem questionar as pesquisas mencionadas acima. Seja como for, no que toca ao riso assim como a outras questões relativas à alma humana, não é preciso comprar o sistema teórico da psicanálise freudiana in toto para reconhecer nele um tesouro de insights valiosos e penetrantes. Dentre os vários desses insights que foram incorporados a perspectivas teóricas distintas sobre a subjetividade humana, podemos mencionar, por exemplo, a ideia de interações cooperativas ou conflituosas entre instâncias “intra-subjetivas” diferenciadas. Um leitor que conecte Freud a Machado de Assis e aos moralistas franceses também reconhecerá o valor analítico da noção de “mecanismos de defesa”: expedientes pelos quais camuflamos, para nós próprios, alguns dos traços mais assustadores, mesquinhos, repugnantes etc. de nossas psiques. A maior parte das abordagens não psicanalíticas que se apropriam da noção de mecanismos de defesa tende, no entanto, a situar tais mecanismos não em zonas psicológicas marcadas por rígidas fronteiras, mas em um continuum cinzento de áreas de consciência, semiconsciência e inconsciência (Elster, 2008). Finalmente, a tese de que o humor (isto é, o gracejo anestésico ou analgésico, não o sádico) constitui um mecanismo de defesa construtivo, um recurso psicológico que ajuda os indivíduos a enfrentarem situações desconfortáveis de um modo “compatível com a saúde mental” (Freud, 1974: 191), goza de ampla credibilidade na comunidade científica. Por isso, pedindo desculpas por repetir uma citação poética neste blog, encerro com um dos meus exemplos prediletos de humor no sentido freudiano: “Febre, hemoptise, dispneia e suores noturnos. A vida inteira que podia ter sido e que não foi. Tosse, tosse, tosse.
Mandou chamar o médico: -Diga trinta e três. -Trinta e três...trinta e três...trinta e três... -Respire.
- O senhor tem uma escavação no pulmão esquerdo e o pulmão direito infiltrado. - Então, doutor, não é possível tentar o pneumotórax? - Não. A única coisa a fazer é tocar um tango argentino.”[i] (Pneumotórax, Manuel Bandeira [2006: 18]). P.S.1: Feliz ano novo a você que chegou até aqui! Que ele seja um pedaço importante da vida inteira que ainda pode ser e será! Aqui vai uma música festiva da gringa cantada por um ruivo talentoso e polimorfo: P.S.2: Agradeço a Danilo Manoel Farias e Moisés Mendes, os quais se tornaram, pela leitura e aprovação deste texto, corresponsáveis por qualquer piada cringe que você tenha encontrado nele. Notas[i] Repare que o poema contrasta a intensificação gradativa da tensão no relato dos sintomas de tuberculose, de um lado, com a evaporação repentina dessa tensão no último verso, de outro. Eis um dos traços mais frequentes na retórica humorística, semelhante ao estouro súbito de um balão depois de uma demorada sessão de lufadas de ar. O contraste entre a longa narrativa prévia e sua abrupta conclusão cômica ajuda a explicar a importância do timing na fala humorística: o controle prático sobre continuidades e pausas no discurso. Nesse sentido, o poema ilustra um desenlace cômico inesperado não somente pela incongruência em relação ao conteúdo grave e até trágico dos versos anteriores, mas também porque o elemento cômico do final não foi sequer sugerido pelo poeta. Manuel não deu bandeira de que faria piada. ReferênciasBerger, Peter. Redeeming laughter: the comic dimension of human experience. New York/Berlin, Walter de Gruyter, 1997. Bergson, Henri. O riso: ensaio sobre a significação da comicidade. São Paulo, Martins Fontes, 2007. Billig, Michael. Laughter and ridicule: toward a social critique of humour. London, Sage, 2005. Elster, Jon. Explaining social behavior. Cambridge, Cambridge University Press, 2008. Freud, Sigmund. Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud. Vol.XXI (1927-1931): O futuro de uma ilusão, O mal-estar na civilização e outros trabalhos. Rio de Janeiro, Imago, 1974. ________Edição Standard das Obras Completas de Sigmund Freud. Vol. Os chistes e sua relação com o inconsciente. Rio de Janeiro, Imago, 1976a. ________Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud. Vol.XIX (1923-1925): o ego e o id e outros trabalhos. Rio de Janeiro, Imago, 1976b. ________Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud. Vol.XII (1911-1913): O caso Schreber, artigos sobre técnica e outros trabalhos. Rio de Janeiro, Imago, 1976c. Kant, Immanuel. Crítica da faculdade do juízo. Rio de Janeiro, Forense Universitária, 1993. Koestler, Arthur. The act of creation. New York, Macmillan, 1964. Martin, Rod. The psychology of humor: an integrative approach. Elsevier Academic Press, 2007. Mulkay, Michael. On humor: its nature and place in modern society. New York, Basil Blackwell, 1988. Schopenhauer, Arthur. O mundo como vontade e representação. Rio de Janeiro, Contraponto, 2001.
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