
As alianças e a questão dos compromissos
Trecho da apresentação a "Esquerdismo, doença infantil do comunismo", oitavo volume da coleção Arsenal Lênin e livro de janeiro de 2025 do Armas da Crítica – o clube do livro da Boitempo.

Retrato de Lênin com um livro de Púchkin, por Kuzma Petrov-Vodkin (WikiCommons).
Por Atílio O. Borón
Lênin inicia
seu texto com um diagnóstico que será redefinido ao longo das páginas
que compõem o livro. Na sua primeira formulação, o “esquerdismo” é a
expressão da pequena burguesia, que nos países europeus constitui uma
classe social muito numerosa, que tende a reagir com uma “mentalidade
ultrarrevolucionária” contra a opressão do capitalismo e a rápida
deterioração de suas condições de existência. Porém, ele observa, esse
ímpeto é caracterizado por sua inconstância e volatilidade. O
“pequeno-burguês enfurecido” tem veleidades revolucionárias, mas carece
de “espírito de organização, disciplina, firmeza” e estas podem
rapidamente ser trocadas por apatia e submissão a novos sujeitos
políticos que reorientam a sua fúria em uma direção exatamente oposta à
anterior. Esse diagnóstico antecipa precocemente o que o fascismo
italiano logo iria confirmar de modo categórico. Tanto Lênin
como
alguns outros dirigentes da Terceira Internacional (Leon Trótski, Clara
Zetkin, por exemplo) não deixaram de notar esse perigo que pouco depois
se tornaria realidade.
As considerações anteriores sobre a mentalidade pequeno-burguesa levam o revolucionário russo a tratar um dos temas centrais de toda a obra: a problemática das alianças e o “compromisso” exigido pelo avanço dos processos revolucionários. Isso pressupõe admitir que as revoluções, longe de serem acontecimentos pontuais que simplesmente ocorrem quando as condições objetivas e subjetivas para a sua realização convergem, são, na verdade, processos prolongados, complexos e contraditórios nos quais é impossível avançar sem selar compromissos com forças que, sem compartilhar o projeto revolucionário, podem, pontual e transitoriamente, oferecer uma oportunidade para juntar forças e fazê-lo avançar.
Lênin
exemplifica essa posição com as teses sustentadas, por certo tempo, por
Karl Radek e Mikhail Bukhárin sobre a Paz de Brest-Litovsk, que
posteriormente seriam abandonadas tanto por Radek como por Bukhárin.
Lênin disse que essa paz “era um compromisso com os imperialistas,
inadmissível por princípio e prejudicial ao partido do proletariado
revolucionário. Foi, de fato, um compromisso com os imperialistas, mas
do tipo que, em tais circunstâncias, era obrigatório”. E exemplifica da seguinte forma:
imagine
que “seu automóvel seja parado por alguns bandidos armados. Você lhes
dá o dinheiro, o passaporte, o revólver e o automóvel. Em troca, você se
livra da agradável presença dos bandidos. Trata-se, sem dúvida, de um
compromisso. ‘Do ut des’ (‘dou o dinheiro, a arma e o automóvel
para que você me dê’ a possibilidade me retirar são e salvo”. Só um
louco, diz Lênin, poderia declarar que tal compromisso é “inadmissível
por princípio” e denunciar a pessoa que o fez como cúmplice dos
bandidos. E termina o seu discurso dizendo que “o nosso compromisso com
os bandidos do imperialismo alemão foi semelhante a esse”. Ou seja, algo
imposto pelo peso das circunstâncias concretas, quer dizer, pela
correlação objetiva de forças existentes naquele momento e lugar.
A conclusão de Lênin é que “negar compromissos por princípio […] é uma infantilidade tal que é difícil até levar a sério”. Em outras passagens da obra ele qualifica como “absurda” a política de “elaborar uma receita ou uma regra geral (‘nenhum compromisso!’) para todos os casos”. O que fazer então? A resposta é que uma liderança revolucionária digna desse nome deve saber distinguir entre os diferentes tipos de compromissos: há aqueles que expressam uma política de oportunismo e de traição à revolução, mas há também aqueles que possibilitam o avanço da causa do proletariado. E, voltando ao seu exemplo anterior, recomenda que se deve “aprender a distinguir a pessoa que deu aos bandidos o dinheiro e a arma para diminuir o mal causado por eles e facilitar sua captura e execução da pessoa que dá aos bandidos o dinheiro e a arma para participar da partilha do saque”. Portanto, existem compromissos e compromissos. A Paz de Brest-Litovsk teve de ser assinada após fracassarem todas as tentativas de selar “uma paz entre todos os povos” e uma vez que se tinha certeza do fracasso da revolução na Alemanha. Não havia alternativa senão assinar essa paz.
A existência de uma situação pré-revolucionária ou pré-insurrecional deve, segundo Lênin, colocar
todas as forças em tensão e aproveitar, obrigatoriamente com o maior zelo, cuidado, prudência e habilidade qualquer “brecha”, mesmo a menor, entre os inimigos, qualquer contradição de interesses entre a burguesia dos diferentes países, entre os diferentes grupos ou categorias da burguesia no interior de cada país; há que aproveitar igualmente qualquer possibilidade, por menor que seja, de conseguir um aliado das massas, ainda que temporário, vacilante, instável, pouco seguro, condicional. Quem não compreendeu isso, não compreendeu nem uma palavra do marxismo nem de socialismo científico contemporâneo em geral.
E lembra, mais uma vez, que “o marxismo não é um dogma, mas um guia para a ação”.
A citação anterior é tão enfática e eloquente que torna qualquer comentário redundante. É uma síntese exemplar de como a esquerda deve fazer política na vida prática, com os pés no barro da história, ou nessa dura e implacável “guerra entre deuses contrapostos”, tal como definida por um contemporâneo de Lênin: Max Weber. A recomendação do revolucionário russo se encontra em aberta contraposição ao modo como atuam os diversos “infantilismos” que, tanto há um século como hoje, imaginam que estão “fazendo política” ao se moverem em um mundo diáfano e platônico de ideias puras, cartesianamente “claras e distintas”. Nesse mundo, as coisas, os processos políticos e os atores aparecem nitidamente como participantes de uma polifonia de forças e situações políticas em um cosmos de essências imutáveis onde a única forma de construir poder é insistir incansavelmente na imutabilidade do dogma e onde qualquer aliança, por mais transitória e circunstancial que seja, se torna uma heresia e o primeiro passo para uma traição imperdoável.
Encontramos esse desejo com muita frequência nas organizações de esquerda, mas, lendo Lênin e opinando a partir de Lênin, podemos dizer, sem medo de se equivocar, que esse “jogo de linguagem” é tudo menos política. Seria mais apropriado chamá-lo de “apostolado messiânico”, porque não existe em seu horizonte o ânimo de construir poder político, mas de pregar “as boas-novas” e ganhar a fidelidade e a lealdade de um punhado de prosélitos em ardorosa espera pelo advento do “dia decisivo”. Até que aconteça, todo o resto será traição. É dizer, ocorre uma transição quase imperceptível, mas fatal, da política para a religião, do inferno onde lutam deuses contrapostos para o paraíso onde, para dizer em uma chave pós-moderna ou habermasiana, a política se converte em um torneio no qual discursos e textos são mensurados, completamente apartado do mundo real.
Oitavo volume da coleção Arsenal Lênin, Esquerdismo, doença infantil do comunismo é um ensaio publicado pela primeira vez em 1920 e escrito às vésperas do II Congresso da Internacional Comunista. Na obra, Lênin aborda diretrizes para o futuro da Revolução e critica o que chama de “esquerdismo”, tendência dogmática de alianças e transição linear para o comunismo, defendida por várias tendências de partidos comunistas europeus e repudiada pelo autor. A obra conta também com o anexo “Sobre a doença infantil do ‘esquerdismo’ e o espírito pequeno-burguês”, texto de 1918 escrito para o jornal Pravda que antecipa a argumentação de Lênin sobre o assunto.

A guerra civil
travada na Rússia após 1917 e o fim da Primeira Guerra Mundial marcavam o
cenário conturbado da época. Na esteira da criação da Terceira
Internacional, a obra tornou-se um guia para as forças políticas que
aspiravam fazer parte do grupo. Lênin aborda em que condições se deve ou
não fazer alianças, a participação nos parlamentos burgueses e os
acordos possíveis com as mais variadas tendências políticas.
Com tradução direta do russo, Esquerdismo, doença infantil do comunismo é
uma leitura que enriquece o debate atual sobre alianças pragmáticas. Há
passagens na obra em que Lênin aborda a instabilidade dos sentimentos
de revolta e como isso pode sucumbir em um cenário totalmente oposto,
como foi o caso do fascismo na Itália, que se consolidou na década de
1920: “O pequeno burguês ‘enfurecido’ pelos horrores do capitalismo é,
tal como o anarquismo, um fenômeno social característico de todos os
países capitalistas. A instabilidade desse revolucionarismo, a sua
esterilidade, a característica de se transformar rapidamente em
submissão, em apatia, em fantasia, mesmo num entusiasmo ‘furioso’ por
uma ou outra corrente burguesa ‘da moda’ – tudo isso é de conhecimento
geral”.
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