A servidão do trabalhador segundo as leis da economia política
Leia trechos dos Manuscritos económico-filosóficos, de Karl Marx, publicados em O essencial de Marx e Engels (Organização de Marcello Musto, tradução de Jesus Ranieri com revisão da tradução de Nélio Schneider).
O texto teórico mais relevante do “jovem Marx”, redigido entre maio e agosto de 1844, documenta sua descoberta da economia política e contém uma primeira exposição crítica da lógica da sociedade capitalista.
Publicado em 1932, um ano antes de Adolf Hitler chegar ao poder na Alemanha, os Manuscritos econômico-filosóficos constituem uma das obras mais conhecidas e debatidas de Marx em todo o mundo.
(…)
O trabalhador se torna tanto mais pobre quanto mais riqueza produz, quanto mais a sua produção aumenta em poder e extensão. O trabalhador se torna uma mercadoria tanto mais barata quanto maior a quantidade de mercadorias que ele cria. Com a valorização do mundo das coisas aumenta em proporção direta a desvalorização do mundo humano. O trabalho não produz somente mercadorias; ele produz a si mesmo e o trabalhador como mercadoria, e isto na proporção em que ele de fato produz mercadorias.
Esse fato exprime apenas isto: o objeto que o trabalho produz, o seu produto, se confronta com ele como um ser estranho, como um poder independente do produtor.
O produto do trabalho é o trabalho que se fixou num objeto, que se tornou coisa, é a objetivação do trabalho. A efetivação do trabalho é a sua objetivação. Essa efetivação do trabalho aparece ao estado econômico-político como desefetivação do trabalhador, a objetivação como perda do objeto e servidão ao objeto, a apropriação como estranhamento, como exteriorização.
A efetivação do trabalho aparece como desefetivação a tal ponto que o trabalhador é desefetivado até morrer de fome. A objetivação aparece como perda do objeto a tal ponto que o trabalhador é despojado não só dos objetos mais necessários à vida, mas também dos objetos do trabalho. O próprio trabalho se torna um objeto, do qual o trabalhador só consegue se apossar com os maiores esforços e com as mais irregulares interrupções. A apropriação do objeto aparece como estranhamento a tal ponto que, quanto mais objetos o trabalhador produz, tanto menos consegue possuir e tanto mais cai sob o domínio do seu produto, do capital.
Na determinação de que o trabalhador se comporta para com o produto de seu trabalho como para com um objeto estranho estão contidas todas essas consequências. Com efeito, de acordo com esse pressuposto está claro: quanto mais o trabalhador se desgasta trabalhando, tanto mais poderoso se torna o mundo objetivo, estranho, que ele cria diante de si, tanto mais pobre se torna ele próprio, seu mundo interior, e tanto menos ele pertence a si próprio. Na religião, acontece a mesma coisa. Quanto mais o ser humano deposita em Deus, tanto menos ele retém em si mesmo. O trabalhador deposita sua vida no objeto; só que agora elanão pertence mais a ele, mas ao objeto. Portanto, quanto maior essa atividade, tanto mais irrelevante é o trabalhador. O que o produto do seu trabalho é ele próprio não é. Portanto, quanto maior esse produto, tanto menor ele mesmo é. A exteriorização do trabalhador em seu produto significa não só que seu trabalhos e torna um objeto, uma existência exterior, mas também que ele existe fora dele, independentemente dele e estranho a ele, tornando-se uma potência autônoma diante dele, de modo que a vida que ele concedeu ao objeto se confronta com ele de modo hostil e estranho.
Examinemos agora mais de perto a objetivação, a produção do trabalhador, e nela o estranhamento, a perda do objeto, do seu produto.
O trabalhador nada pode criar sem a natureza, sem o mundo exterior sensível. Ele é a matéria na qual o seu trabalho se efetiva, na qual o trabalho é ativo, e a partir da qual e por meio da qual o trabalho produz.
Porém, do mesmo modo que a natureza provê os meios de vida, no sentido de que o trabalho não pode viver sem objetos nos quais é exercido, ela também oferece, em contrapartida, os meios de vida no sentido mais estrito, a saber, o meio de subsistência física do próprio trabalhador.
Portanto, quanto mais o trabalhador se apropria do mundo exterior, da natureza sensível, por meio do seu trabalho, tanto mais ele se priva dos meios de vida em dois sentidos: primeiro, que cada vez mais o mundo exterior sensível deixa de ser um objeto pertencente ao seu trabalho, um meio de vida do seu trabalho; em segundo, que cada vez mais o mundo exterior sensível cessa de ser meio de vida no sentido imediato, meio para a subsistência física do trabalhador.
Nesses dois sentidos, o trabalhador se torna, portanto, servo do seu objeto: primeiro, porque ele recebe um objeto de trabalho, isto é, recebe trabalho; e, em segundo, porque recebe meios de subsistência. Portanto, para que ele possa existir primeiro como trabalhador e, em segundo, como sujeito físico. O auge dessa servidão consiste em que só como trabalhador ele consegue se manter como sujeito físico e só como sujeito físico ele é trabalhador.
(O estranhamento do trabalhador em seu objeto se expressa, segundo as leis da economia política, da seguinte maneira: quanto mais o trabalhador produz, menos ele tem para consumir; quanto mais valores ele cria, tanto mais sem valor e indigno ele se torna; quanto mais bem formado o seu produto, tanto mais deformado fica o trabalhador; quanto mais civilizado seu objeto, tanto mais bárbaro o trabalhador; quanto mais poderoso o trabalho, tanto mais impotente se torna o trabalhador; quanto mais rico de espírito o trabalho, tanto mais pobre de espírito e servo da natureza se torna o trabalhador.)
A economia política oculta o estranhamento na essência do trabalho por não examinar a relação imediata entre o trabalhador (o trabalho) e a produção. Sem dúvida. O trabalho produz maravilhas para o rico, mas também privação para o trabalhador. Ele produz palácios, mas também cavernas para o trabalhador. Produz beleza, mas também aleijamento para o trabalhador. Ele substitui o trabalho por máquinas, mas também lança uma parte dos trabalhadores de volta a um trabalho bárbaro e converte a outra parte em máquina. Ele produz espírito, mas também imbecilidade, cretinismo para o trabalhador.
A relação imediata do trabalho com os seus produtos é a relação do trabalhador com os objetos da sua produção. A relação do abastado com os objetos da produção e com esta mesma é somente consequência da primeira relação. E a confirma. Examinaremos mais adiante esse outro aspecto. Portanto, quando perguntamos qual é a relação essencial do trabalho, estamos perguntando pela relação do trabalhador com a produção.
Até aqui examinamos o estranhamento, a exteriorização do trabalhador sob apenas um dos seus aspectos, qual seja, a sua relação com os produtos do seu trabalho.
Mas o estranhamento não se mostra somente no resultado, mas também, e principalmente, no ato da produção, dentro da própria atividade produtiva. Como poderia o trabalhador defrontar-se alheio ao produto da sua atividade se no ato mesmo da produção ele não se estranhasse a si mesmo? O produto é, sim, somente o resumo da atividade, da produção. Se, portanto, o produto do trabalho é a exteriorização, então a produção mesma tem de ser a exteriorização ativa, a exteriorização da atividade, a atividade da exteriorização. No estranhamento do objeto do trabalho resume-se somente o estranhamento, a exteriorização na atividade do trabalho mesmo.
Em que consiste, então, a exteriorização do trabalho?
Primeiro, que o trabalho é exterior ao trabalhador, isto é, não pertence ao seu ser; que ele, por conseguinte, não se afirma em seu trabalho, mas se nega nele; que ele não se sente bem, mas infeliz; que ele não desenvolve nenhuma energia física e espiritual livre, mas mortifica sua natureza e arruína o seu espírito. Por conseguinte, o trabalhador só se sente consigo mesmo fora do trabalho e fora de si no trabalho.
Ele está em casa quando não trabalha e, quando trabalha, não está em casa. Por conseguinte, seu trabalho não é voluntário, mas obrigado, trabalho forçado. O trabalho não é a satisfação de uma carência, mas somente um meio para satisfazer necessidades fora dele. Sua estranheza evidencia-se de forma pura no fato de que, tão logo inexista coerção física ou outra qualquer, foge-se do trabalho como de uma peste. O trabalho exterior, o trabalho no qual o ser humano se exterioriza, é um trabalho de autossacrifício, de mortificação. Finalmente, a exterioridade do trabalho aparece para o trabalhador como se o trabalho não fosse seu próprio, mas de um outro, como se o trabalho não lhe pertencesse, como se, no trabalho, ele não pertencesse a si mesmo, mas a um outro. Do mesmo modo que, na religião, a autoatividade da fantasia humana, do cérebro e do coração humanos, atua independentemente do indivíduo e sobre ele, isto é, como uma atividade estranha, divina ou diabólica, também a atividade do trabalhador não é a sua autoatividade. Ela pertence a outro, é a perda de si mesmo.
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“Um espectro ronda a Europa – o espectro do comunismo.” “Os filósofos apenas interpretaram o mundo de diferentes maneiras; porém, o que importa é transformá-lo.” “A religião é o ópio do povo.” Mais de cento e quarenta anos após a morte de Karl Marx e cento e vinte da morte de Friedrich Engels, qual a contribuição intelectual desses dois filósofos para o Brasil e para o mundo? Muito se fala hoje, da esquerda à direita, de Marx e Engels, mas o quanto estamos de fato lendo suas obras?
Concebida pela Boitempo, principal editora de Marx e Engels no Brasil, para atingir um público amplo, a antologia O essencial de Marx e Engels, composta por três volumes, propõe um mergulho de fôlego e amplitude sem precedentes nos principais pontos do projeto teórico desses dois autores. A organização, as apresentações de cada volume e as notas explicativas são de Marcello Musto, professor italiano com contribuições decisivas no florescente campo de estudo marxiano contemporâneo. A obra conta também com prefácio
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especialistas brasileiros: Marilena Chaui, Jorge Grespan, Leda Paulani,
Virgínia Fontes, Lincoln Secco e Alfredo Saad Filho. A edição é de Pedro
Davoglio.
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