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terça-feira, 1 de dezembro de 2009

NA HORA DA NOSSA MORTE (cont.), novela.

DIÁRIO DE MARTA – 8


Reajo à dor. Meto-me no carro e passeio-me por colinas e vales desta região que, outrora, devia ser soberba, há um século, há dois, quando os franceses se perderam aqui, perderam a vida e a glória. A serra do Socorro, Dois Portos, o lugar da Buligueira onde nasceu Félix Henriques Nogueira, o introdutor das ideias republicanas, democráticas e socialistas, em Portugal, o apeadeiro dos caminhos de ferro em Runa, tão bonito com tantos apeadeiros e estações do nosso país interior, provinciano, mas tão confortável, doméstico, acolhedor, não fosse estar abandonado. Portugal possui regiões tão diversas que não acredito quando alguém sensível e bom observador privilegia uma sobre todas as outras, quer seja o Alentejo que acho magnífico, e a palavra é justa, porque me faz sentir a extensão, a planura, quer sejam os desfiladeiros cavados pelo Rio Douro, quadro que mede meças com as regiões mais afamados da Europa. Este Oeste, talvez com a excepção da serra do Montejunto, é alcantilado, mas feminino, nos roliços peitos que ponteiam a paisagem, lhe aguçam o solo mansamente.

Encontrei-me com a Carla. Encontrei-a juvenil, airosa, vestida com gosto, uns olhos muito claros, aparentemente ingénuos com um andar de bailarina frágil mas segura, que a torna agradável à vista. Propus-lhe que visitássemos a galeria de arte do tal Bártolo, tinha curiosidade de entrar dentro daquela espaço onde a minha mãe provavelmente seduziu ou se deixou seduzir. Fica no Bairro Alto. A entrada é exígua mas o espaço prolonga-se por duas ou três divisões decoradas com simplicidade e bom gosto. Os dois pintores cujas obras estavam ora expostas, um homem e uma mulher, não me suscitaram grande admiração. Realmente estive atenta sobretudo a quem lá entrasse. Recebeu-nos uma empregada que logo nos deixou à vontade. Demorei-me o mais que pude com a esperança de ver chegar o dono. Foi quando nos retirámos que ele se cruzou connosco à saída. Carla tocou-me no braço, mas não era preciso, reconheci-o imediatamente. Com cachecol de seda colorida ao pescoço, um chapéu de abas largas, um jeito delicado de andar, uma voz quase fina com que nos cumprimentou, dava aquela aparência de homossexual que certos homens dão sem o serem necessariamente. Seria bissexual? E sorri para mim mesma com aquele pensamento perverso. O amante de minha mãe. Que surpresas nos reserva a vida? Que me reservará a minha? Afinal, vou compreendendo a atitude de minha mãe: casada há dezenas de anos com um homem silencioso, que se refugia cada vez mais no uísque, apagado, vê-se, ou viu-se, sexagenária, o corpo a decair nos entre folhos da velhice, o tempo a passar depressa, naturalmente abalada pela morte da sua neta adorada, o divórcio da filha, a tristeza em que me vê mergulhada, tornou-a presa fácil de uma paixão serôdia. Também eu já não sou nova e admito agora que o amor, ou as paixões, o que quer que seja, não respeita idades. De resto, o Bártolo deve ser da idade dela, embora pareça mais novo, provavelmente pinta o cabelo como, aliás, sucede com a minha mãe. Tenho pena, evidentemente, do meu pai. Pode ser que ele reaja mudando os hábitos e os vícios, se souber o que se passa. Mas duvido que saiba, tão inerte que ele é.

Quis saber pela Carla o máximo que puder sobre esse Carlos. O pressentimento tem razão de ser: o meu antigo namorado cursou arquitectura e chamava-se Carlos. Não soube com facilidade tornear a questão, mudar o rumo da conversa, a Carla contava-me sem pausas o que lhe ia sucedendo no mestrado nas áreas da Psicologia, as dificuldades de adaptação quando iniciou o curso, a Faculdade tão diferente da Escola Secundária, os novos colegas, as invejas e alguma exclusão que encontrou naqueles grupinhos que se faziam herméticos, as novas amizades, o namorado…Fiz-lhe perguntas sobre o namorado, com o propósito de chegar ao Carlos. De chofre questionei-a: quem foi o namorado anterior? (Aqui falei-lhe sobre o meu ex-marido para permitir que se sentisse à vontade e não adivinhasse a minha intenção) Hesitou, serviu-se da garrafa de água, confessou que fora uma relação muito forte mas com termo certo, a diferença de idades, a distância física, os mundos separados, os novos círculos em que ela na faculdade se envolveu. Já ia mudar de assunto (demonstrava que o passado estava definitivamente encerrado) quando disparei a pergunta cuja resposta me poderia levar à confirmação: Manténs algum contacto com ele, enfim, às vezes ficam óptimas amizades (questões evasivas), onde pára ele, reside onde? (esta era a pergunta decisiva). «Vive em Torres Vedras». Estava feito o teste. E era positivo. Foi em Torres Vedras que o vi. Agora posso afirmar que o vi.

2 comentários:

Mel de Carvalho disse...

Um discurso conciso, onde o verbo enceta bordaduras por entre as nuances da alma humana e os seus mistérios (des)codificados. Onde as gerações se entrelaçam e se "avaliam" no que é suposto ser, o certo, o justo.

Uma novela de que não li o início mas que, por certo, irei ler, e de que aguardo agora novos capítulos com expectativa.

Melhores cumprimentos, grata pela partilha
Mel

Nozes Pires disse...

Fico gratificado e motivado, obrigado, Mel.

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