No contexto do lançamento do aguardado O absoluto frágil, ou, porque vale a pena lutar pelo legado cristão,
de Slavoj Žižek, recuperamos este artigo do filósofo esloveno que
procura reabilitar, da perversa ética multiculturalista do capitalismo
contemporâneo, o núcleo emancipatório do ateísmo. Ao invés de se
relacionar de forma exterior com a religião – sucumbindo assim à
armadilha da “tolerância” –, Žižek subverte a abordagem e
propõe levarmos a crença a sério e cobrar dos crentes a responsabilidade
sobre aquilo em que creem. É esta perspectiva avessa ao lugar comum que
anima também O absoluto frágil,
um ensaio explosivo que defende uma aproximação entre o cristianismo e o
marxismo num projeto político emancipatório renovado. Nas palavras do
esloveno: “O primeiro paradoxo da crítica materialista da religião é
este: às vezes é muito mais subversivo destruir a religião a partir de
dentro, aceitando sua premissa básica para depois revelar suas
consequências inesperadas, do que negar por completo a existência de
Deus.” Confira!
* * *
Por séculos,
nos foi dito que sem religião não somos mais do que animais egoístas
lutando pelo nosso quinhão, nossa única moralidade a de uma matilha de
lobos; apenas a religião, dizem, pode nos elevar a um nível espiritual
mais alto. Hoje, quando a religião emerge como a fonte de violência
homicida ao redor do mundo, garantias de que fundamentalistas cristãos
ou muçulmanos ou hinduístas estão apenas abusando e pervertendo as
nobres mensagens espirituais de seus credos soam cada vez mais vazias.
Que tal restaurar a dignidade do ateísmo, um dos maiores legados da
Europa e talvez nossa única chance de paz?
Mais de um século atrás, em Os Irmãos Karamazov e
outras obras, Dostoiévski alertava sobre os perigos de um niilismo
moral sem deus, defendendo essencialmente que, se Deus não existe, então
tudo é permitido. O filósofo francês André Glucksmann até mesmo aplicou
a crítica de Dostoiévski do niilismo sem deus ao 11 de setembro, como
sugere o título de seu livro, Dostoiévski em Manhattan.
O argumento
não poderia estar mais errado: A lição do terrorismo atual é que, se
Deus existe, então tudo, incluindo explodir milhares de espectadores
inocentes, é permitido – pelo menos àqueles que alegam agir diretamente
em nome de Deus, já que, claramente, uma ligação direta com Deus
justifica a violação de quaisquer refreamentos e considerações meramente
humanos. Resumindo, os fundamentalistas não se tornaram diferentes dos
comunistas Stalinistas “sem deus”, para os quais tudo foi permitido, já
que viam a si mesmos como instrumentos diretos de sua divindade, a
Necessidade Histórica do Progresso em Direção ao Comunismo.
Fundamentalistas
fazem o que veem como boas ações de forma a satisfazer o desejo de Deus
e ganhar a salvação; ateus o fazem simplesmente porque é a coisa certa a
fazer. Não seria essa também nossa experiência mais elementar de
moralidade? Quando faço uma boa ação, não a faço visando ganhar um favor
de Deus; faço porque, se não fizesse, não poderia me olhar no espelho.
Uma atitude moral é por definição sua própria recompensa. David Hume
argumentou isso pungentemente quando escreveu que a única maneira de
demonstrar verdadeiro respeito a Deus é agir moralmente ignorando sua
existência.
Dez anos
atrás, Europeus debatiam se o preâmbulo da Constituição Europeia deveria
mencionar o cristianismo. Como de costume, um meio termo foi arranjado,
uma referência em termos gerais à “herança religiosa” da Europa. Mas
onde estava o legado mais precioso da Europa, o do ateísmo? O que faz da
Europa moderna única é que ela é a primeira e única civilização em que o
ateísmo é uma opção plenamente legítima, e não um obstáculo a qualquer
posição pública.
O ateísmo é
um legado europeu pelo qual vale a pena lutar, não menos por criar um
espaço público seguro para os que creem. Considere o debate que
inflamou-se em Ljubljana, a capital da Eslovênia, meu país natal,
conforme a controvérsia constitucional fervia: muçulmanos (em sua
maioria trabalhadores imigrantes das antigas repúblicas Iugoslavas)
devem ter permissão para construir uma mesquita? Enquanto os
conservadores opunham-se à mesquita por razões culturais, políticas e
até arquitetônicas, a revista semanal liberal Mladina foi
consistentemente explícita em seu apoio à mesquita, em continuar com
suas preocupações pelos direitos daqueles que vinham de outras antigas
repúblicas Iugoslavas.
Não
surpreendentemente, dadas as atitudes liberais, Mladina também foi uma
das poucas publicações eslovenas a republicar as caricaturas de Maomé.
E, reciprocamente, aqueles que demonstraram maior “compreensão” pelos
violentos protestos muçulmanos causados por aqueles cartuns foram também
aqueles que regularmente expressavam sua preocupação com o futuro do
cristianismo na Europa.
Estas
alianças estranhas confrontam os muçulmanos da Europa com uma escolha
difícil: A única força política que não os reduz a cidadãos de segunda
classe e os concede o espaço para expressar sua identidade religiosa são
liberais ateus “sem deus”, enquanto aqueles mais próximos a suas
práticas religiosas sociais, seu reflexo cristão, são seus maiores
inimigos políticos.
O paradoxo é
que os únicos verdadeiros aliados dos muçulmanos não são aqueles que
primeiramente publicaram as caricaturas para chocar, mas aqueles que, em
defesa do ideal da liberdade de expressão, republicaram-nas.
Enquanto um
verdadeiro ateu não tem necessidade de apoiar sua própria posição
provocando crentes com blasfêmia, ele também se recusa a reduzir o
problema das caricaturas de Maomé ao respeito às crenças de outras
pessoas. O respeito às crenças dos outros como o valor maior só pode
significar uma de duas coisas: Ou tratamos o outro de forma
condescendente, evitando magoá-lo para não arruinar suas ilusões, ou
adotamos a posição relativista de vários “regimes da verdade”,
desqualificando como imposição violenta qualquer posição clara em
relação à verdade.
Mas que tal
submeter o Islã – junto com todas as outras religiões – a uma
respeitosa, mas por isso mesmo não menos implacável, análise crítica?
Essa, e apenas essa, é a maneira de mostrar verdadeiro respeito aos
muçulmanos: tratá-los como adultos responsáveis por suas crenças.
* Publicado originalmente em inglês no The New York Times em 13 de março de 2006. A tradução, ligeiramente modificada, é de Ale GM para o Bule Voador.
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