"O que está em causa ! (Boaventura Sousa Santos*, in Público, 01/11/2015) A União Europeia pode estar a mudar no centro mais do que a periferia imagina.
O que está em causa O
fenómeno não é português. É global, embora em cada país assuma uma
manifestação específica. Consiste na agressividade inusitada com que a
direita enfrenta qualquer desafio à sua dominação, uma agressividade
expressa em linguagem abusiva e recurso a tácticas que roçam os limites
do jogo democrático: manipulação do medo de modo a eliminar a esperança,
falsidades proclamadas como verdades sociológicas, destempero emocional
no confronto de ideias, etc., etc. Entendo, por direita, o conjunto das
forças sociais, económicas e políticas que se identificam com os
desígnios globais do capitalismo neoliberal e com o que isso implica, ao
nível das políticas nacionais, em termos de agravamento das
desigualdades sociais, da destruição do Estado social, do controlo dos
meios de comunicação e do estreitamento da pluralidade do espectro
político. Donde vem este radicalismo exercido por políticos e
comentadores que até há pouco pareciam moderados, pragmáticos, realistas
com ideias ou idealistas sem ilusões?Estamos a entrar em Portugal na
segunda fase da implantação global do neoliberalismo. A nível global,
este modelo económico, social e político tem estas características:
prioridade da lógica de mercado na regulação não só da economia como da
sociedade no seu conjunto; privatização da economia e liberalização do
comércio internacional; diabolização do Estado enquanto regulador da
economia e promotor de políticas sociais; concentração da regulação
económica global em duas instituições multilaterais, ambas dominadas
pelo capitalismo euro-norte-americano (o Banco Mundial e o Fundo
Monetário Internacional) em detrimento das agências da ONU que antes
supervisionavam a situação global; desregulação dos mercados
financeiros; substituição da regulação económica estatal (hard law) pela
autoregulação controlada pelas empresas multinacionais (soft law). A
partir da queda do Muro de Berlim, este modelo assumiu-se como a única
alternativa possível de regulação social e económica. A partir daí, o
objectivo foi transformar a dominação em hegemonia, ou seja, fazer com
que mesmo os grupos sociais prejudicados por este modelo fossem levados a
pensar que era o melhor para eles. E, de facto, este modelo conseguiu
nos últimos trinta anos grandes êxitos, um dos quais foi ter sido
adoptado na Europa por dois importantes partidos sociais-democratas (o
partido trabalhista inglês com Tony Blair e o partido social-democrata
alemão com Gerhard Schröder) e ter conseguido dominar a lógica das
instituições europeias (Comissão e BCE).
Mas como qualquer modelo social, também este está sujeito a
contradições e resistências, e a sua consolidação tem tido alguns
reveses. O modelo não está plenamente consolidado. Por exemplo, ainda
não se concretizou a Parceria Transatlântica, e a Parceria Transpacífico
pode não se concretizar. Perante a constatação de que o modelo não está
ainda plenamente consolidado, os seus protagonistas (por detrás de
todos eles, o capital financeiro) tendem a reagir brutalmente ou não
consoante a sua avaliação do perigo iminente. Alguns exemplos. Surgiram
os BRICS (Brasil, Rússia, India, China e Africa do Sul) com a intenção
de introduzir algumas nuances no modelo de globalização económica. A
reacção está a ser violenta e sobretudo o Brasil e a Rússia estão
sujeitos a intensa política de neutralização. A crise na Grécia, que
antes de este modelo ter dominado a Europa teria sido uma crise menor,
foi considerada uma ameaça pela possibilidade de propagação a outros
países. A humilhação da Grécia foi o princípio do fim da UE tal como a
conhecemos. A possibilidade de um candidato presidencial nos EUA que se
autodeclara como socialista (ou seja, um social-democrata europeu),
Bernie Sanders, não representa, por agora, qualquer perigo sério e o
mesmo se pode dizer com a eleição de Jeremy Corbyn para secretário-geral
do Labour Party. Enquanto não forem perigo, não serão objecto de reação
violenta. E Portugal? A reação destemperada do Presidente da República
a um qualquer governo de esquerda parece indicar que o modelo
neoliberal, que intensificou a sua implantação no nosso país nos últimos
quatro anos, vê em tal alternativa política um perigo sério, e por isso
reage violentamente. É preciso ter em mente que só na aparência estamos
perante uma polarização ideológica. O Partido Socialista é um dos mais
moderados partidos sociais-democratas da Europa. Do que se trata é de
uma defesa por todos os meios de interesses instalados ou em processo de
instalação.«O modelo neoliberal só é anti-estatal enquanto não captura o
Estado, pois precisa decisivamente dele para garantir a concentração da
riqueza e para captar as oportunidades de negócios altamente rentáveis
que o Estado lhe proporciona. Devemos ter em mente que neste modelo os
políticos são agentes económicos e que a sua passagem pela política é
decisiva para cuidar dos seus próprios interesses económicos.»Mas a
procura da captura do Estado vai muito além do sistema político. Tem de
abarcar o conjunto das instituições. Por exemplo, há instituições que
assumem uma importância decisiva, como o Tribunal de Contas, porque
estão sob a sua supervisão negócios multimilionários. Tal como é
decisivo capturar o sistema de justiça e fazer com que ele actue com
dois pesos e duas medidas: dureza na investigação e punição dos crimes
supostamente cometidos por políticos de esquerda e negligência benévola
no que respeita aos crimes cometidos pelos políticos de direita. Esta
captura tem precedentes históricos. Escrevi há cerca de vinte anos: “ Ao
longo do nosso século, os tribunais sempre foram, de tempos a tempos,
polémicos e objeto de acesso escrutínio público. Basta recordar os
tribunais da República de Weimar logo depois da revolução alemã (1918) e
os seus critérios duplos na punição da violência política da
extrema-direita e da extrema-esquerda. (Santos et al., Os Tribunais nas
Sociedades Contemporâneas – O caso português. Porto. Edições
Afrontamento, 1996, página 19). Nessa altura, estavam em causa crimes
políticos, hoje estão em causa crimes económicos. Acontece que, no
contexto europeu, esta reacção violenta a um revés pode ela própria
enfrentar alguns reveses. A instabilidade conscientemente provocada pelo
Presidente da República (incitando os deputados socialistas à
desobediência) assenta no pressuposto de que a União Europeia está
preparada para uma defenestração final de toda a sua tradição social
democrática, tendo em mente que o que se passa hoje num país pequeno
pode amanhã acontecer em Espanha ou Itália. É um pressuposto arriscado,
pois a União Europeia pode estar a mudar no centro mais do que a
periferia imagina. Sobretudo porque se trata por agora de uma mudança
subterrânea que só se pode vislumbrar nos relatórios cifrados dos
conselheiros de Angela Merkel. A pressão que a crise dos refugiados está
a causar sobre o tecido europeu e o crescimento da extrema-direita não
recomendará alguma flexibilidade que legitime o sistema europeu junto de
maiorias mais amplas, como a que nas últimas eleições votou em Portugal
nos partidos de esquerda? Não será preferível viabilizar um governo
dirigido por um partido inequivocamente europeísta e moderado a correr
riscos de ingovernabilidade que se podem estender a outros países? Não
será de levar a crédito dos portugueses o facto de estarem a procurar
uma solução longe da crispação e evolução errática da “solução” grega? E
os jovens, que encheram há uns anos as ruas e as praças com a sua
indignação, como reagirão à posição afrontosamente parcial do Presidente
e à pulsão anti-institucional que a anima? Será que a direita pensa que
esta pulsão é um monopólio seu? Na resposta a estas perguntas está o
futuro próximo do nosso país. Para já, uma coisa é certa. O desnorte do
Presidente da República estabeleceu o teste decisivo a que os
portugueses vão submeter os candidatos nas próximas eleições
presidenciais. Se for eleito(a), considera ou não que todos os partidos
democráticos fazem parte do sistema democrático em pé de igualdade? Se
em próximas eleições legislativas se vier a formar no quadro parlamentar
uma coligação de partidos de esquerda com maioria e apresentar uma
proposta de governo, dar-lhe-á ou não posse?"
*Director do Centro de
Estudos Sociais, Laboratório Associado, da Universidade de Coimbra
O que está em causa (Boaventura Sousa Santos,
in Público, 01/11/2015)
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