Entrevista
Zygmunt Bauman: "Há muitas maneiras de ser humano"
Nesta entrevista inédita que em 2013 deu ao PÚBLICO, Zygmunt Bauman
fala das redes sociais, do Papa, das relações afectivas ou da Europa.
Afirmou recentemente que a resignação do Papa Bento XVI restaurou dignidade moral a uma Igreja em crise, no sentido de que com esse gesto o Papa mostrou que era um ser humano como qualquer outro, com as suas limitações. Como vê esta transição na Igreja católica?
É ainda muito cedo para pronunciar um veredicto. O Papa Francisco é um novo fenómeno na história da Igreja – nenhum outro, tanto quanto a memória histórica abarca, proclamou a sua fé de que a Igreja é dos pobres, deixando bem claro desde o primeiro dia do seu pontificado que pretende agir em conformidade com esse preceito. A sua declaração de intenções é particularmente seminal num tempo em que a desigualdade entre os homens, nas suas várias dimensões, cresce a uma velocidade sem precedentes, constituindo um dos mais graves (talvez o mais grave) problemas com que o mundo se confronta actualmente e no futuro próximo. Diversas fontes têm insinuado que o Papa Francisco foi eleito para ser um líder de curto prazo – devido a divergências insanáveis entre facções poderosas no seio do Vaticano. Pode ser esse o caso, mas houve insinuações semelhantes no tempo de João XXIII, que provou ser tudo menos um líder fraco, com um pontificado que deixou marcas profundas na história recente da Igreja. Mas repito: é muito cedo para um veredicto!
Declarou que com as redes sociais, e a Internet, nos transformámos numa sociedade confessional, reflectindo sobre o que leva as pessoas a partilhar os seus sentimentos mais privados. Até que ponto é que isso reitera a sensação de que apenas existimos na medida em que o que fazemos é visto pelo Outro, quase como se fosse uma entidade divina?
Os confessionários enraizaram-se na cultura europeia como protótipo e paradigma da privacidade e da intimidade; ali se admitiam actos e pensamentos julgados impróprios para serem confiados a quem quer que fosse além de Deus. Tais actos e pensamentos tão profundamente privados e íntimos são agora brandidos em público. Superficialmente, podemos opinar que isto significa apenas que encontrámos outros veículos técnicos para satisfazer a mesma necessidade humana de confessar e partilhar emoções e crenças. Mas de facto o próprio significado dessa conduta mudou tanto que o confessionalismo se tornou irreconhecível. O Facebook é agora um mercado, onde pessoas preocupadas com o seu valor de mercado usam a intimidade e o seu potencial de entretenimento para aumentar esse valor. Talvez entre os milhões de utilizadores alguém, algures, considere a mercadoria que ali é oferecida digna de atenção, atraente, capaz de suscitar procura e de assegurar sucesso comercial num mercado sobrelotado de informação. O sucesso da ideia de Mark Zuckerberg deveu-se à procura que mercadorias como a terrível sensação de abandono, a solidão incurável, o risco de se ser abandonado, ou expulso, têm no mercado global. Algumas histórias dos blogues, do Twitter ou do Facebook são, por assim dizer, o sucedâneo para algumas camadas da população das revistas de celebridades.
Ao mesmo tempo existe a sensação de que as redes sociais são ferramentas ainda recentes, ou seja, um laboratório que ainda estamos a experimentar. Apesar de tudo sabemos ainda pouco sobre as redes sociais e sobre as suas consequências nas nossas vidas, não lhe parece?
Nós – todos nós – vivemos em dois mundos diferentes, online e offline. Cada um deles tem as suas próprias regras e os seus próprios padrões. Graças ao Facebook, a versão online de iniciar e romper uma amizade tornou-se fácil, rápida e despida de todos os difíceis e morosos compromissos, testes e sacrifícios que sobrecarregam a sua versão offline. Não admira que sejam um atractivo para tantas pessoas. Mas o preço a pagar por esta facilidade é alto: o desvanecimento, ou a mesmo perda, das competências sociais necessárias para garantir e a perpetuar a amizade na vida offline. Portanto, e em última instância, é uma perda ou um ganho? Os amigos online são muito mais numerosos, mas são fiáveis? A sabedoria popular inglesa insiste que “a friend in need is a friend indeed” [“os amigos são para as ocasiões”, numa tradução muito livre]. Os amigos do Facebook provarão ser “verdadeiros amigos” num momento de necessidade? Serão eles capazes de nos proteger contra os caprichos do destino, como é suposto os amigos offline fazerem? Tenho dúvidas.
Mudando de assunto. Na Europa parecem coexistir duas dinâmicas de protesto paralelas. Por um lado temos pessoas a reclamar mudanças urgentes porque a sua sobrevivência está em causa (é o que se está a passar em países como Portugal, Espanha, Itália ou Grécia). Acaba por ser um protesto emocional. Por outro, exigem-se transformações estruturais profundas, que requerem reflexão mais rigorosa. Como é possível gerir estas duas dinâmicas entre pessoas, sociedades e países?
São ambas manifestações de desencanto e de desagrado com o mau funcionamento desse difícil compromisso entre dois princípios que estruturam a União Europeia. Um é a ideia da soberania territorial do Estado consagrada no Tratado de Vestefália de 1648 (“cuius regio, eius religio”). Outro é a pura realidade do nosso mundo globalizado, no qual os poderes que determinam os nossos padecimentos – no que diz respeito às nossas expectativas e às expectativas dos nossos filhos – estão completamente fora do alcance das instituições políticas disponíveis e, portanto, fora do nosso alcance (os poderes, no sentido da capacidade de fazer as coisas, tornaram-se globais, enquanto a política, ou seja a capacidade de decidir quais dessas coisas devem ser feitas, mantém-se locais, como antigamente, confinada às fronteiras do “Estado soberano”). Resultado? Os Estados, que têm nominalmente o território integralmente a seu cargo, estão a sofrer um constante défice de poder, o que os impede de cumprirem a sua promessa (hoje são as bolsas de valores, não os gabinetes dos ministérios, que definem a linha entre as políticas “realistas” e as políticas “irrealistas”). À conta disso, os governos ficam sem saída: têm de satisfazer as reivindicações dos seus eleitores, mas ao mesmo tempo têm de ganhar os favores dos poderes supranacionais, e as duas exigências são mutuamente incompatíveis. O resultado é o que descreveu! De acordo com os desejos dos seus eleitores, a senhora Merkel quer uma reforma que torna a Europa mais hospitaleira para o capital financeiro à escala planetária. Grécia, Itália, Espanha ou Portugal querem constranger os poderes dos capitais globais para proteger a vontade soberana das suas nações. Como é possível “gerir estas duas dinâmicas”? Bem, estamos condenados a consagrar o futuro mais próximo aos esforços para encontrar – ou criar – uma resposta eficaz para a questão.
Para além da Europa, assistimos hoje à ascensão de novos poderes como a China, a Índia ou o Brasil, onde o capital parece circular mais intensamente. Mas a questão é se não estarão a fazê-lo replicando um modelo desenvolvido na Europa e nos EUA, que parece estar a mostrar sinais de erosão.
Tem razão mais uma vez, eles estão de facto a entrar no jogo inventado e disputado pelo capitalismo, em si uma invenção ocidental; e é de acordo com procedimentos capitalistas, essencialmente parasitários, que depois de praticamente esgotada e extinta a vitalidade dos seus hospedeiros mais antigos se alimentam agora de novas “terras virgens” ainda por depauperar, prometendo-lhes altos lucros no curto prazo. Toda essa deslocalização das finanças planetárias esconde, porém, a grande questão dos “limites naturais” da sustentabilidade do planeta. Estamos já a consumir um planeta e meio, ou seja, consumimos 50% a mais do que o nosso planeta, a nossa casa comum, é capaz de abastecer sem comprometer a capacidade de auto-regeneração. Se a China, a Índia, o Brasil e outros países que seguem o seu exemplo conseguirem atingir o nível de consumo que já se pratica no Ocidente, passarão a ser necessários cinco planetas para satisfazer a procura global. Só que isso não é uma possibilidade. Temos portanto duas hipóteses, e duas apenas: uma é entrarmos numa era de guerras de redistribuição, de alimentos e de outros recursos indispensáveis para sustentar o modo de vida de uma sociedade consumista; a outra é reformarmos o nosso estilo de vida. Apesar de tudo, há mais do que uma maneira de viver uma vida feliz, gratificante e digna.
Parece não existir um grande horizonte de esperança para esta Europa que tem vindo a ser construída. Depois da queda do Muro de Berlim, passámos a confiar no capitalismo global e no progresso tecnológico, e não nos demos ao trabalho de pensar em alternativas. Parece-lhe que os traumas deixados pelo fascismo e pelo comunismo foram a principal razão que conduziu a esta ausência de um pensamento alternativo?
Não iria ao ponto de dizer que não há esperança para a Europa. A história é feita por seres humanos, e esse é um dos poucos aspectos da nossa existência que é tão imortal como a própria humanidade. E há muitas maneiras de ser humano, tal como há muitas formas alternativas de gerir a vida perseguindo objectivos como a dignidade, a satisfação e a felicidade, formas que não passem pela rivalidade, pela competição de cortar à faca, pelo “crescimento económico” incessante, pela expansão do consumo e consequente esgotamento dos recursos do planeta que se tornaram dominantes no presente. O facto de termos falhado [nessa missão de] encontrar, aceitar, abraçar e praticar estilos de vida alternativos não é de todo resultado dos “traumas deixados pelo fascismo e pelo comunismo”. É uma escolha política, social e cultural, e podemos reverter as nossas escolhas – tanto quanto podemos agarrar-nos a elas.
Em algumas das suas obras mais populares, como Amor Líquido, aborda as relações afectivas e a forma como se têm transformado nestes tempos difusos. É como se também nas relações de afecto estivéssemos condenados ao curto prazo, como se a durabilidade das relações amorosas nos assustasse.
O nosso desejo por uma mercadoria aumenta em função da sua escassez. A fome de amor tende a ser hoje cada vez mais difícil de saciar porque o culto moderno do conforto e da facilidade, que torna o esforço redundante e o trabalho árduo repulsivo, torna as alegrias do amor terrivelmente inacessíveis. No fim de contas, o amor desvela todo o seu encanto quando consiste em viver para o outro. O amor é a chave da felicidade desde que aceitemos que não se trata de uma receita para uma vida fácil e para o conforto pessoal.
Nos últimos anos muito se falou sobre o possível fracasso do papel dos intelectuais nas sociedades contemporâneas, ou pelo menos da sua transfiguração. Como vê esse tema à luz da sua própria experiência?
O papel tradicional dos intelectuais, que consistia em assumir a responsabilidade pela defesa e pela implementação dos valores das nações, foi vítima dos mesmos processos que erodiram outros aspectos da comunidade humana: processos de fragmentação, individualização e privatização. As elites culturais educadas tendem actualmente a seguir outras elites, sobretudo económicas, na sua renúncia a quaisquer responsabilidades que não aquelas que dizem respeito a interesses puramente privados. Tal como tendem a recolher-se nos seus refúgios profissionais – os cirurgiões defendem os hospitais, os académicos defendem as universidades, os actores defendem os teatros, os artistas defendem as galerias –, deixando a cargo de poucos, se é que de alguns, as questões que estão acima dos seus interesses corporativos. Por outro lado, a crise das instâncias de acção colectiva existentes, associada a uma imaginação política rendida à lógica de curto-prazo, degradou o valor das expectativas de uma “boa sociedade” e tornou redundante a reflexão sobre a forma que esta devia assumir. A sua preocupação justifica-se totalmente, portanto. Mas não é o fim do mundo. Ainda não chegámos ao ponto de não-retorno. A procura de serviços intelectuais tem uma urgência sem precedentes e essa premência cresce de dia para dia.
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