Apocalipse: RTP
António Santos 26.Ene.17 Outros autores
Recentemente,
explodiu nas televisões americanas um novo tipo de «documentário» a que
chamam docufiction. Ficção apresentada como se abordasse uma realidade
factual. É o caso da série da RTP dedicada a Stáline. Uma fraude
documental com um objectivo ideológico preciso, no ano em que se celebra
o centenário da Revolução de Outubro. A RTP, paga por todos nós, dá
tempo de antena a propaganda que os nazis não desdenhariam.
Acabo
de assistir a «O Demónio», o primeiro episódio da mini-série
«Apocalipse: Estaline». Durante uma hora, Isabelle Clarke dedica o seu
«documentário» a convencer-nos de que Estaline foi o que o título diz:
um demónio. Veja-se: «Lénine e um punhado de homens lançaram a Rússia no
caos. (…) Como os cavaleiros do Apocalipse, os bolcheviques semeiam
morte e destruição para se manterem no poder. Continuarão durante 20
anos, até os alemães chegarem às portas de Moscovo». Estaline surge como
um «louco», «sexualmente insaciável» e com uma «mentalidade próxima dos
tiranos do Médio Oriente» [sic] que só Hitler pode parar. Num frenesim
anacrónico, o espectador é levado de «facto» em «facto» sem direito a
perguntas nem a explicações. Para trás e para a frente, dos anos
quarenta para o final do século XIX, de 10 milhões de mortos na guerra
civil russa para 5 milhões de mortos no «holodomor: a fome organizada
por Estaline», o puzzle está feito para ser impossível de montar. Ao
narrador basta descrever o que, a julgar pelas imagens de arquivo, é
aparentemente indesmentível: «os camponeses ucranianos, vítimas das
fomes estalinistas abençoam os invasores alemães. Mais tarde serão
enforcados pelos estalinistas. A conjugação das imagens de arquivo
colorizadas é tão brutal e convincente que somos tentados a concordar
com as palavras do narrador: «Estaline declarou guerra ao seu próprio
povo». São os «factos alternativos» de Trump aplicados à História.
Só há dois problemas. Primeiro: Isabelle Clarke, a autora, admite que «Apocalipse: Estaline» não é História nem tem pretensões de querer sê-lo. Vou repetir, a autora admite que aquilo que fez não tem nada a ver com História. Podia terminar aqui. Mas, em segundo lugar, será que a RTP, canal público pago por todos nós para cumprir a missão de educar e informar, sabia que estava a comprar ficção em vez de História?
Claramente a História, enquanto ciência social, passe a inelutável normatividade a que estamos presos, é incompatível com a calúnia e a propaganda ou, numa palavra, a demonização. «Apocalipse: Estaline - O Demónio» não disfarça a demonização, disfarça a ficção.
Então, o que é «Apocalipse, Estaline»? Recentemente, explodiu nas televisões americanas um novo tipo de «documentário» a que chamam docufiction. Exemplos recentes são «Sereias: o cadáver encontrado» ou «Megalodon, o tubarão monstro vive». Em ambos, o documentário da Discovery Channel dá a palavra a cientistas, investigadores, professores e biólogos que explicam a descoberta científica de sereias, no primeiro caso e de um tubarão jurássico, no segundo. Durante uma hora, o espectador assiste a filmagens convincentes dos míticos criptídos e ouve especialistas, identificados como tal, debater as possíveis explicações para as descobertas serôdias. No final, em letra de efeitos secundários de bula de medicamento, admite-se, para quem ainda estiver a ver, que era tudo a fingir: os especialistas eram actores, as imagens eram fabricadas. «Apocalipse, Estaline» faz algo parecido: no final ficamos a saber a que «historiadores» foi beber inspiração: a romancista Svetlana Alexievitch, uma versão actualizada de Alexander Soljenitsyne; Robert Service, o mais proselitista e criticado dos historiadores-pop contemporâneos ou Pierre Rigoulot, um ex-trotskista transformado em neocon apoiante de Bush e fã confesso da guerra do Iraque. Trata-se contudo de menções honrosas e agradecimentos. Mas de onde vêm as citações? Onde foi buscar os números? Quais são as fontes? Raquel Varela coraria de vergonha alheia.
Não se trata de admirar ou condenar Estaline, trata-se de não sermos tomados por parvos. «Apocalipse: Estaline» não é ficção nem História: é uma falsificação estupidificante e tóxica para o público. Como os novos «documentários» sobre sereias e tubarões jurássicos, que confundem ciência com ficção, a RTP acabou de confundir História com propaganda nazi.
Este texto encontra-se em: http://manifesto74.blogspot.pt/2017/01/apocalipse-rtp.html#more
Só há dois problemas. Primeiro: Isabelle Clarke, a autora, admite que «Apocalipse: Estaline» não é História nem tem pretensões de querer sê-lo. Vou repetir, a autora admite que aquilo que fez não tem nada a ver com História. Podia terminar aqui. Mas, em segundo lugar, será que a RTP, canal público pago por todos nós para cumprir a missão de educar e informar, sabia que estava a comprar ficção em vez de História?
Claramente a História, enquanto ciência social, passe a inelutável normatividade a que estamos presos, é incompatível com a calúnia e a propaganda ou, numa palavra, a demonização. «Apocalipse: Estaline - O Demónio» não disfarça a demonização, disfarça a ficção.
Então, o que é «Apocalipse, Estaline»? Recentemente, explodiu nas televisões americanas um novo tipo de «documentário» a que chamam docufiction. Exemplos recentes são «Sereias: o cadáver encontrado» ou «Megalodon, o tubarão monstro vive». Em ambos, o documentário da Discovery Channel dá a palavra a cientistas, investigadores, professores e biólogos que explicam a descoberta científica de sereias, no primeiro caso e de um tubarão jurássico, no segundo. Durante uma hora, o espectador assiste a filmagens convincentes dos míticos criptídos e ouve especialistas, identificados como tal, debater as possíveis explicações para as descobertas serôdias. No final, em letra de efeitos secundários de bula de medicamento, admite-se, para quem ainda estiver a ver, que era tudo a fingir: os especialistas eram actores, as imagens eram fabricadas. «Apocalipse, Estaline» faz algo parecido: no final ficamos a saber a que «historiadores» foi beber inspiração: a romancista Svetlana Alexievitch, uma versão actualizada de Alexander Soljenitsyne; Robert Service, o mais proselitista e criticado dos historiadores-pop contemporâneos ou Pierre Rigoulot, um ex-trotskista transformado em neocon apoiante de Bush e fã confesso da guerra do Iraque. Trata-se contudo de menções honrosas e agradecimentos. Mas de onde vêm as citações? Onde foi buscar os números? Quais são as fontes? Raquel Varela coraria de vergonha alheia.
Não se trata de admirar ou condenar Estaline, trata-se de não sermos tomados por parvos. «Apocalipse: Estaline» não é ficção nem História: é uma falsificação estupidificante e tóxica para o público. Como os novos «documentários» sobre sereias e tubarões jurássicos, que confundem ciência com ficção, a RTP acabou de confundir História com propaganda nazi.
Este texto encontra-se em: http://manifesto74.blogspot.pt/2017/01/apocalipse-rtp.html#more
Sem comentários:
Enviar um comentário