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sábado, 7 de janeiro de 2017

Opinião

"Heróis" nacionais

É o Estado que quer que nos revejamos nestes exemplos do “'talento' que fala português"!
Ele “traz alegria a milhões de pessoas", dizia Cavaco Silva quando entregou a Cristiano Ronaldo o grau de Grande Oficial da Ordem do Infante D. Henrique, por “serviços relevantes prestados a Portugal”. No pior da depressão económica e social que a nossa memória futura confundirá com o prório Cavaco, este assegurava que "Ronaldo tem o condão de unir os portugueses, num tempo em que Portugal tanto precisa da união dos portugueses. As vitórias de Ronaldo são as vitórias da coragem de acreditar quando Portugal precisa de exemplos da coragem de acreditar” (PÚBLICO, 20.1.2014). CR7 foi não simplesmente nacionalizado pelo Estado português, mais ainda do que Salazar fez com Eusébio; soube ele próprio transformar-se em objeto de adoração pública. Toda a sua vida é feita, por opção própria, de uma obsessiva mediatização (TV, publicidade, revistas cor-de-rosa) à escala planetária. Além de alimentar um desses egos desmesurados (o mesmo que transparece em tudo quanto diz Mourinho-Special One, outro offshorista, ou nessa plêiade dirigentes desportivos de mão na anca) que pululam pelo futebol, a grande maioria dos seus rendimentos resulta, não do seu apregoado talento desportivo, mas dos direitos de imagem. Segundo os documentos revelados pela Football Leaks, trabalhados desde há um mês pela European Investigative Collaborations (EIC), Ronaldo, que declarou ao fisco espanhol em 2016 um património de 226,5 milhões € (omitindo tudo quanto terá em paraísos fiscais), terá ganho em 12 anos de direitos publicitários pelo menos 150 milhões (coisa pouca: o valor de 1,5 Casa da Música do Porto, por exemplo). Destes, graças ao esquema de fuga aos impostos arquitetado pelo seu agente, Jorge Mendes, declarou apenas 22,7 milhões, dos quais pagou ao fisco 5,6 milhões (El Mundo, 3.12.2016).
Faça contas o leitor a quanto paga ao fisco como assalariado; e agora veja bem quanto pagou em impostos aquele que se faz passar pelo "desportista mais solidário do mundo" com 22 contas na Suíça: 4%! Se 24% a 26,5% deste dinheiro terá ido parar, como comissões, a duas empresas de Jorge Mendes, o "padrinho" de Ronaldo, de Mourinho e de tantos outros jogadores "heróis" do futebol, é porque Ronaldo acha-o um destino claramente melhor do que cumprir com as suas obrigações fiscais perante o Estado e a sociedade. O "Senhor 10%", o "melhor agente do mundo" para os Globe Soccer Awards, é "padrinho" também, entre muitos outros, de 10 dos 23 jogadores da Seleção Nacional (entre eles, Ricardo Carvalho, Fábio Coentrão e Pepe, todos sob investigação fiscal e judicial), de todos os selecionadores nacionais entre 2003 e 2014, da candidatura de Luís Figo (outro "herói" de fiscalidade duvidosa) à presidência da FIFA. Só em direitos comerciais, Mendes terá um rendimento anual de 160 milhões. Em 2013, o seu património estava avaliado em 536 milhões € (Le Monde, 4.12.2016). Ele é outro destes "heróis" empolados pelos media e pelo Estado, que, das impolutas mãos de Miguel Relvas, recebeu em 2012 o Colar de Honra ao Mérito Desportivo pela sua "competência, dedicação, ética de trabalho [!!] e espírito empreendedor". É o Estado  que quer que nos revejamos nestes exemplos do “'talento' que fala português"! Foi desta forma que, em 2007 e 2013, as campanhas oficiais de promoção de Portugal no estrangeiro apresentaram Mourinho e Ronaldo.
Há um mês que tudo isto rebentou na imprensa internacional. Entre nós, o Expresso, preocupado em garantir que não queria "destruir ídolos nem desconstruir campeões" (P. Santos Guerreiro, 7.12.2016), encheu duas edições semanais com estas revelações. A imprensa desportiva praticamente ignorou-as, as TVs deram incomparavelmente mais relevo à enésima Bola de Ouro de CR7 (descrita como "resposta" à "campanha" que contra ele teria sido montada) ou ao seu "quem não deve não teme" (RTP, 7.12.2016) do que à demonstração de que nenhum destes "heróis da bola" é eticamente diferente dos agora odiados Ricardo Salgado ou José Sócrates. A impunidade deles, que parece longe de ter cessado, é em grande medida produto da retórica que Cavaco usou quando dizia que "quando [o "CR7] entra em campo, tem a seu lado dez milhões de portugueses."

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