Um outro Lenin: a obra de Tamás Krausz
Douglas Rodrigues Barros, escritor, doutorando em filosofia e membro do CEII (Círculo de Estudos da Ideia e da Ideologia).
Acertar as contas com uma gigantesca
tradição certamente não é tarefa fácil, ainda mais se tratando de uma
tradição de entusiastas e detratores. Pois, este é somente um dos
méritos indiscutíveis da obra de Tamás Krausz[1]
que aborda exatamente isso: recuperar um Lenin anterior a mumificação
stalinista e fazer justiça ao seu pensamento diante de um século que
engrossou o caldo de inimigos da Revolução de Outubro e de um de seus
principais nomes.
Com detratores, independente do espectro político, o nome de Lenin não poucas vezes esteve aliado a noção ideológica de totalitarismo,
ou pelo menos, de sementes do totalitarismo, isso independente da
anacrônica posição do conceito e do ocultamento descarado das fontes
históricas.
Aqueles que ainda o acusam de assassino, convenientemente esquecem-se dos pogroms
realizados e incentivados pelo Czar, por Kornilov, pelos Cem negros e
por todos os que se identificam com a direita. Esquecem-se das invasões,
com milhares de estupros e linchamentos, bancadas com dinheiro dos
países centrais que vão desde Inglaterra – claro – até os Estados
Unidos. Esquecem-se da completa devastação causada por anos de Guerra
mundial, seguida por uma guerra civil implacável e sanguinolenta
infligida por uma direita recalcitrante que nunca engoliu o fato notório
de operários e trabalhadores comuns terem constituído um novo tipo de
poder descentralizado e democrático: os sovietes.
Lenin, portanto, aparece nessa obra de
maneira integral e mesmo assim de forma não definitiva. O autor,
esperto, não sofre dessa ingenuidade marqueteira, o que não muda o fato
de que estamos diante de uma obra extensa e, sem dúvida, uma das mais
exaustivas no que se refere a teoria e o desdobramento teórico-político
do pensamento de Lenin.
Nesse sentido, a noção de uma biografia
intelectual tem toda sua razão de ser: não se trata de um resgate dos
dramas e das delícias da vida de um autêntico revolucionário senão de
uma genuína busca pela compreensão de suas ideias com suas mudanças
repentinas à sombra das transformações sociais e políticas do contexto.
Debate-se sim a busca pela compreensão do desenvolvimento intelectual
de Lenin.
Um dos muitos aspectos importantes dessa
obra de Krausz é justamente desconstruir a mitografia envolta no nome de
Lenin para reconstruir um Vladimir Ilitch – ainda que singular ante
seus contemporâneos – comum e em constante processo de aprendizado.
Isso não significa que suas mudanças,
impostas não raras vezes pelos canhões da reação, eram incoerentes com
seu pensamento, tampouco que não há um fio condutor em sua teoria capaz
de explicar sua prática. Essa explicação talvez resida num
aprofundamento precoce de Lenin naquilo que depois ficaria conhecido
como materialismo dialético.
Por meio da obra de Krausz compreendemos
que em Lenin existia um esforço titânico para apreender e compreender o
método hegelo-marxiano. Seu materialismo dialético era vivo e vivaz,
semovente e antidogmático, enfim, é possível, sem medo de erro, dizer
que estava à altura de seus dois mestres: Hegel e Marx.
Com uma leitura idiossincrática e
violenta de Hegel, Lenin foi capaz de acender o pavio revolucionário, é
óbvio que nunca pensou ou sequer se interessou pelo desenvolvimento de
uma obra sistemática, não era necessário afinal. Hegel e Marx eram suas
ferramentas não apenas para compreender o momento histórico particular
em sua contemporaneidade como ainda para transformar as coordenadas
histórico-sociais de uma Rússia em transição.
Assim, a unidade de seu pensamento,
vislumbrada por Lukács, com efeito, é demonstrada em seu processo
contraditório e urgente no livro de Krausz. Os princípios filosóficos
essenciais e a metodologia, tão deliberadamente ignorada pela tradição,
encontram aqui lugar de destaque.
“Lenin compreendeu”, diz Krausz (2017,
p.519), “ainda na base de suas raízes hegelianas, que o materialismo
dialético (e sua epistemologia) incorpora o automovimento das coisas,
dos fenômenos e dos processos, bem como a atividade humana consciente
para transformar a sociedade”.
Muito antes de toda uma tradição que se
formaria no século XX, Lenin não só compreendeu como os processos
sociais incidem na percepção individual, mas também como a percepção
individual é capaz de reorganizar à luz do novo esses mesmos processos
sociais.
Interessante notar, não obstante, como
foi essa epistemologia, forjada a ferro e fogo, distante do conforto da
normatividade burguesa e da academia, aquilo que fez com que Lenin
superasse a cômoda paixão pelo negativo tão comum às nossas belas almas
asquerosas. Embriagar-se pelos elementos criativos da revolução é
fácil, difícil é enfrentar a ressaca de canhões brancos e países
inimigos conspirando em sua nuca. Mais difícil ainda é tentar
reconstruir um país destroçado por uma Guerra Mundial acompanhada por
uma selvagem Guerra Civil com pogroms, Santa Aliança, generais megalomaníacos e países imperialistas na sua fronteira.
Noutras palavras, difícil é encarar o
sopro letal da negatividade absoluta e tentar sobre os escombros do que
já apodrecia inaugurar o novo visando uma ordem humanizada e socialmente
igualitária. O mérito dessa tentativa, nenhum revisionista comodamente
sentado em seu computador, tomando seu chazinho, poderá arrancar de
Lenin.
E aqui Krausz deixa evidente como seu
construto teórico, isto é, como as investigações teóricas de Lenin
respondiam, nem sempre de maneira exemplar, as urgências da vida
concreta imanentes ao solo social. Desnuda-se, no passo a passo de seu
livro, o legado do pensamento de Lenin; a compreensão das tendências a
serem endossadas ou transformadas em meio às contradições imanentes do
terreno social. Quer dizer, a grandeza das análises de Lenin se refere
ao método.
Não é uma aplicação de conceitos
hipostasiados mas sim um esforço para analisar a forma pela qual da
ordem positiva surge a negatividade. Não é um deixar-se levar pela
contradição, mas entender o processo contraditório como a fundamentação
do próprio movimento. Enfim, não é a busca pela superação da cisão entre
política e história, mas a compreensão de ambas em seu processo de
devir.
Isso permitia a Lenin traçar um claro
limite entre os problemas práticos e suas perspectivas, entendendo de
maneira peculiar as implicações existentes nas transformações entre os
momentos pré e pós-revolucionários. Aplicando-se a entender a dinâmica
social de seu tempo, Lenin buscava a coesão dos elementos contra
hegemônicos desenvolvidos pelas lutas radicais dos trabalhadores
organizados; os sovietes.
Ao contrário de nossa atual esquerda anêmica – de sangue laranja – , os revolucionários, conhecidos antigamente como proletariado,
não pensavam em salvaguardar os poderes desenvolvidos pelo sistema
capitalista, nem buscavam um regime de visibilidade para os oprimidos no
interior desse mesmo sistema, não queriam um sistema de proteção legal
contra o malvado opressor, mas queriam a morte do opressor que não é
corpóreo ou um indivíduo senão um sistema que atribui, este sim,
corporeidade fixa e identidade às pessoas.
A posição teórica de Lenin consistia em
não considerar isolada e abstratamente o desenvolvimento social e suas
determinações, mas vê-lo como elemento condicionado de uma totalidade,
correlacionando-o com as determinações que constituem as características
dos atores sociais envolvidos na trama histórica. Nem sobrepor o todo
às partes, nem o inverso. Por isso: “mesmo em suas análises políticas
diárias durante o período da primeira Revolução Russa, Lenin traçava um
claro limite entre os problemas práticos da revolução e do socialismo
como teoria e perspectiva” (KRAUSZ, 2017, p.261).
As respostas secas que deixavam seus
camaradas bolcheviques de cabelo em pé certamente advinham dessa
compreensão. Não deveria dessa maneira ser de desconhecimento nosso as
diversas tentativas de isolamento de Lenin durante o desdobramento do
processo revolucionário que vai de fevereiro até outubro de 1917. Na
obra de Krausz isso fica explicitado.
Invariavelmente os pedidos de união dos
bolcheviques com o soviete, feitos incansavelmente por Lenin, eram
negados. A resistência burocrata, que depois triunfará, já estava
encrustada no Partido Bolchevique desde essa época, para se ter uma
ideia; até a tomada do Palácio de Inverno[2], quando não tinha mais como voltar atrás, houve resistência entre os bolcheviques à direita para se unirem aos sovietes.
Mas anterior a isso, já quando o estouro
da Primeira Guerra fora escutado, as táticas revolucionárias de Lenin,
inspiradas pelo seu estudo de Hegel, deu-lhe uma concepção aguda da
necessária integração entre teoria, política e organização. A guerra e
sua leitura de Hegel suscitaram uma reinterpretação do subjetivismo que
apostava na mudança da postura dos indivíduos mediante as consequências
da guerra.
Nesse sentido, sua contraposição com
qualquer atitude favorável à guerra adveio de uma compreensão aguda e
basilar das mudanças efetivas que se iriam processar na correlação
objetiva das forças sociais: “em contraste com as “filosofias de massas”
elitistas e especulativas e os utópicos socialistas “proféticos” – e
com base nos estudos de Hegel e Marx – Lenin enfatizou as ideias e a
prática da mudança revolucionária” (KRAUSZ, 2017, p. 531).
O pensamento de Lenin esteve sempre sobre
o ponto de irresolução da cisão produzida pelos processos
contraditórios do chão histórico. Considerando o próprio surgimento da
práxis – isto é, grosso modo, as condições de possibilidades para que
uma teoria seja produzida e para que sua produção incida no plano
concreto-social – Lenin nem eleva a sociedade a um Sujeito Absoluto nem
dá espaço para uma ontologia mais geral. Ele está mais preocupado em
entender e definir a relação centro e periferia do capitalismo e
compreender a hierarquia estrutural das relações desiguais do capital.
Naturalmente, e levando em consideração
que nenhuma análise é infalível, por sua própria posição teórica Lenin
sempre esteve debruçado na investigação das ruínas de seu momento
presente (e que ruínas!). Com isso não pode vislumbrar totalmente “a
configuração política, sociológica, psicológica e organizacional que
surgiu como consequência do desenvolvimento muito desigual do
capitalismo global descoberto por ele próprio (KRAUSZ, 2017, p. 530).
E é dessa maneira que o livro de Tamás
Krausz vai desnudando um Lenin diferente – eu diria até mesmo antagônico
– ao das ortodoxias. Com isso, o autor vai deixando evidente os
problemas nas análises dos recentes opositores do revolucionário
bolchevique que enriqueceram uma historiografia francamente conservadora
exemplificada nas biografias de Robert Service, Richard Pipes, entre
outros…
Na obra de Krausz temos, contrariamente,
um Lenin profundamente preocupado em responder os dilemas e problemas
colocados por uma época de forte ebulição e transformações globais. Nem
um salvador, nem um demônio sanguinário preocupado com poder pessoal.
Se pelo retrovisor da história podemos concluir hoje que a Revolução Russa forneceu tão somente um Capitalismo de Estado
– que naquela altura, aliás, fora interpretado assim pelo próprio Lenin
– no momento em que o soviético redigia a NEP (Nova Política Econômica)
os caminhos estavam flanqueados e o destino da revolução permanecia em
aberto. Nada assegurava, portanto, que a revolução esbarraria na
modernização do Estado russo no interior da própria dinâmica do
capitalismo global, ainda que, algumas tendências já no interior do novo
aparato de poder assim indicassem.
Temos total clareza atualmente que nem o
comunismo de guerra – nos apertados anos de guerra civil – nem o
capitalismo de Estado – fornecido com o “triunfo” da vitória soviética
sobre a reação – forneceram as ferramentas para a implementação do
socialismo e que o assim chamado “socialismo realmente existente” não
ultrapassou a barreira da modernização capitalista sucumbindo juntamente
com a decrepitude de seus burocratas. Muito embora as sombrias
conclusões de Lenin, no final da vida, já dessem indícios do fracasso
revolucionário se este permanecesse restrito a Rússia, nada era tão
evidente.
Ora, toda essa potente percepção política
de Lenin é resgatada pela obra de Tamás Krausz ao indicar que a teoria
para Lenin, coesa com a décima primeira tese contra Feuerbach[3],
é um guia para a ação. E sendo assim, a única possibilidade de sua
validade, ou melhor, a única condição de possibilidade da efetividade de
uma teoria é o terreno histórico.
Não há pois edifícios metafísicos ou dogmas a serem seguidos – como se tornou aquilo que depois ficou conhecido como marxismo-leninismo
– o que há é a possibilidade da tradução das condições históricas em
sua abertura infindável capturadas pelo incansável estudo do método
exposto em Hegel e Marx.
Assim, se, a obra de Lenin, como afirma
Krausz, está vinculada e é parte orgânica da revolução socialista isso
pode indicar que sua coesão com os pressupostos metodológicos, muito bem
apreendidos no materialismo dialético, foram determinantes para o
alcance de sua visão política transformadora.
Lenin foi capaz de compreender que o
sujeito e o objeto, no interior da dinâmica histórica, são
reciprocamente mediados de modo que “uma mudança epistemológica do ponto
de vista do sujeito sempre reflita uma mudança ontológica do próprio
objeto”.[4]
Foi essa compreensão que possibilitou sua
recusa intransigente da guerra, e foi essa mesma compreensão que viu no
Soviete um novo paradigma de poder antagônico as construções políticas
burguesas enclausuradas na aristocrática democracia parlamentar e
representativa. Foi essa compreensão, por fim, que o fez apreender a
abertura da história em seu movimento contraditório.
Com a ressaca propiciada pela tomada do
poder e o fracasso da revolução alemã acompanhada por uma sangrenta luta
intestinal, porém, sabemos que o horizonte, aberto pelos fuzis e
encouraçados revolucionários, decresceu até ser fechado totalmente pelo
stalinismo. Mas, como Krausz demonstra, Lenin se insurgiu contra essa
tendência escrevendo, já doente, o seu famoso O Estado e a Revolução.
Ali houve sua última aposta quando a
reação, aliada as potências estrangeiras, já tinha devastado todo o
interior da Rússia, quando a guerra civil tinha proporcionado uma fome
incalculável – que cinicamente, mais tarde, seria lançada nas costas dos
comunistas isentando de culpa os países do centro do capitalismo –
quando o novo poder constituído já tinha formado uma nova classe de
gestores e burgueses. Era tarde.
Sabemos hoje que o sistema institucional
de democracia direta com uma base de poder espontânea organizada,
preconizado em seu último escrito, fora substituído por uma
centralização de poder compartilhado pela classe de burocratas formada a
partir das novas configurações históricas que se processaram.
Nunca se realizou aquela força política
capaz de organizar a unidade das múltiplas demandas surgidas no seio da
classe trabalhadora, mas é sem dúvida essa a aposta que Lenin deixou
antes de ser vitimado por um AVC que pôs fim a sua vida e antes de ter
seu pensamento e corpo mumificados pela nova classe de gestores que
rapidamente subiram ao poder.
Para a reconstrução desse Lenin, desse outro Lenin, portanto, a obra de Tamás Krausz é, sem dúvida, a mais importante.
[1] KRAUSZ, T. Reconstruindo Lenin: uma biografia intelectual. São Paulo: Boitempo, 2017.
[2]
É a tomada do palácio de inverno que marca o início da revolução de
outubro e consequentemente da Revolução Russa. Para mais consultar esse
riquíssimo trecho da obra de Trotsky, inegavelmente uma das mais
aprofundadas sobre aqueles dias: https://www.marxists.org/portugues/trotsky/1930/historia/cap45.htm
[3]
Mais ou menos algo como: “Os filósofos têm apenas interpretado o mundo
de diferentes maneira quando a questão, porém, é transformá-lo”.
[4] ŽIŽEK, S. A visão em paralaxe. São Paulo: Boitempo, 2008 p. 33
Sem comentários:
Enviar um comentário