Vyacheslav
Molotov assina o pacto de não agressão germano-soviético em 23 de
agosto de 1939. Ao fundo e ao centro, Joachim von Ribbentrop e Josef
Stálin.
Recentemente, no último dia 19 de setembro, a União Europeia aprovou um documento chamado “
Sobre a importância da memória europeia para o futuro da Europa”.
O escrito tem como objetivo indicar a história oficial da União
Europeia (UE) e combater aqueles que supostamente solapam a democracia e
o histórico de defesa dos direitos humanos do continente. Numa palavra,
visam atacar de uma só vez a história do movimento comunista, a Rússia e
a China.
Dentre os vários absurdos contidas no
documento, a resolução defende que a UE nasceu da luta contra o
“totalitarismo comunista” (stalinismo) e nazista e afirma
categoricamente que a Segunda Guerra Mundial teria sido causada pelo
Pacto de Não-Agressão Germano-Soviético, o famoso Pacto
Molotov-Ribbentrop. Diz o documento:
“Salienta que a Segunda
Guerra Mundial, a guerra mais devastadora da história europeia, foi o
resultado imediato do infame Pacto de Não-Agressão Germano-Soviético de
23 de agosto de 1939, também conhecido como Pacto Molotov-Ribbentrop, e
dos seus protocolos secretos, através dos quais dois regimes
totalitários que partilhavam o objetivo da conquista do mundo dividiam a
Europa em duas zonas de influência”.
Pedro Marin, em
brilhante artigo,
fez um mapeamento da institucionalização do anticomunismo nos diversos
países da Europa e de outros continentes, inserindo a resolução da UE no
seu contexto sociopolítico maior. Eu, considerando a existência do
presente escrito, me coloco uma missão diferente: tentarei mostrar como é
uma mentira grotesca essa noção de que foi o Pacto Molotov-Ribbentrop
que causou a Segunda Guerra, procurando inserir esse acontecimento em
seu devido contexto histórico, e debater os temas correlatos (como o uso
do Pacto como uma suposta prova empírica da afinidade entre Hitler e
Stálin, ambos dirigentes de regimes “totalitários”, como diria Hannah
Arendt).
Livros ruins, comunistas malvados
Em seu livro de 2012 Stálin, os nazistas e o Ocidente,
o historiador e documentarista Laurence Rees se propõe a analisar os
bastidores da Segunda Guerra Mundial com foco na relação entre Stálin,
Churchill e Roosevelt, discutindo como foi a articulação dos três no
enfrentamento ao nazifascismo.
No decorrer do livro, Rees tenta mostrar
seus talentos como analista e passa a escrever uma espécie de perfil
psicológico de Stálin. O soviético é tratado como um louco, paranoico e
psicopata; um sujeito que não confia absolutamente em ninguém,
desconfiando até dos seus colaboradores mais íntimos e aparentemente
amigos – segundo o perfil delineado por Rees, Stálin era paranoico
demais para ter amigos. Porém, numa virada inexplicável, o ser humano
extremamente paranoico passa a confiar cegamente que Hitler seria fiel
ao Pacto de Não-Agressão Germano-Soviético assinado há pouco tempo.
Nosso historiador não vê qualquer
contradição em descrever Stálin como o sujeito mais paranoico do mundo e
afirmar que ele acreditava piamente em Hitler. No livro de Rees, não se
encontra uma análise séria sobre o quadro geopolítico dos anos 1930 no
mundo, em especial o da Europa, tampouco uma crítica do significado
histórico e político do tal projeto nazista e soviético. Tudo é
apresentado como se o Pacto Germano-Soviético fosse produto de uma
atração entre dois ditadores, entre dois sistemas totalitários.
Hannah Arendt, assim como Rees, parece
crer na existência de uma atração mística e uma plena confiança entre
Hitler e Stálin. No trato que ela dá aos dos dois países em Origens do totalitarismo,
a autora os assemelha, mas insinua que a União Soviética seria pior,
visto que na Alemanha nazista o terror ainda conhecia um limite de raça.
Diz ela:
“Por outro lado, a
prática russa [soviética] é mais “avançada” do que a nazista em um
particular: a arbitrariedade do terror não é determinada por diferenças
raciais, e a aplicação do terror segundo a procedência socioeconômica
(de classe) do indivíduo foi abandonada há tempos; de sorte que qualquer
pessoa na Rússia pode subitamente tornar-se vítima do terror policial.”
(p. 26)
Antes de entrar propriamente em nosso
objeto de estudo, temos portanto de abordar um pouco do significado
histórico do projeto soviético e do nazifascista e traçar uma análise
histórica séria, ainda que não exaustiva, da geopolítica da época.
Charge
do cartunista estadunidense Clifford Kennedy Berryman, datada de 9 out.
1939, satirizando o pacto de não agressão germano-soviético assinado
semanas antes. Na legenda, lê-se “Quanto tempo será que durará a lua de
mel?”
O nazifascismo e o socialismo soviético em seu significado histórico
A invasão da América foi o ato inaugural
da modernidade. Modernidade e colonialismo estão intimamente ligados.
Quando se estabelece o sistema mercantil tricontinental sob o comando
dos países europeus, a América sofre o primeiro ciclo da história de
destruição colonialista. Seus povos são exterminados, sua cultura
inferiorizada e subjugada, seus sistemas produtivos são destruídos e
substituídos por novos, criados de acordo com as necessidades do centro
de comando europeu do sistema mercantil. Esse primeiro grande ciclo
colonialista, mesmo tendo na América o grande palco da destruição
criativa, criou também outra grande vítima: a população negra oriunda
das regiões costeiras da África que serviu de força de trabalho escrava
na nova estrutura produtiva da região.
A história do século XV até o século
XVIII não pode ser compreendida se não forem levadas em consideração as
transformações da Europa rumo ao sistema capitalista (inicialmente mais
restrito às Províncias Unidas e a Inglaterra) na sua interrelação com as
colônias na América. Houve grandes resistências ao colonialismo e todas
as suas consequências. Desde as resistências de caráter local (como os
quilombos das pessoas negras escravizadas) até as que tomaram proporções
histórico-mundiais como a Revolução Francesa no período Jacobino e a
Revolução Negra no Haiti. O fato, porém, é que a consolidação do
capitalismo na Inglaterra e sua marcha triunfal pela Europa Ocidental
não só manteve o colonialismo como o elevou a um patamar superior – a um
novo ciclo colonial de proporções muito mais amplas que o primeiro.
V. I. Lênin demonstrou no seu clássico Imperialismo: etapa superior do capitalismo(1917) que,
entre o final do século XIX e o início do século XX, a economia
capitalista passou por profundas transformações. O processo de
acumulação dos países centrais rumou a uma centralização e concentração
cada vez maior do capital, e à fusão entre capital bancário e capital
industrial – o nascimento do capital financeiro –, criando grandes
trustes e monopólios de proporções e capacidade de controle sobre as
economias nacionais impensáveis para os teóricos clássicos do
capitalismo, como Adam Smith e David Ricardo.
O capitalismo monopolista proporcionava
uma capacidade/necessidade de investimentos e domínio de territórios
além dos marcos nacionais que impulsionou um novo ciclo colonialista em
direção à África e à Ásia. Agora não se tratava de conquistar
territórios para criar monopólios comerciais ou um mercado produtor de
especiarias; a questão era obter zonas de controle e influência que
garantissem nichos de investimento rentáveis para os grandes monopólios e
fornecimento de matérias-primas para a indústria e para o mercado
consumidor interno, numa divisão do trabalho em que os países centrais
do capitalismo se especializavam na produção industrial e complexa e os
territórios colonizados na produção de bens primários (como alimentos) e
matéria-prima. Todo esse processo de condicionamento das economias
africana e asiática às necessidades do capitalismo imperialista vinha
acompanhado de uma violenta subjugação política pela capacidade militar
maior dos Estados capitalistas europeus.
A dominação imperial em África e Ásia
significou o extermínio de milhões de pessoas e a criação das técnicas
mais bárbaras e avançadas de dominação. Theodor W. Adorno disse que era
impossível escrever poesia depois de Auschwitz; mas, na realidade, para
grande parte da população mundial, isso foi impossível durante toda
modernidade!
O problema é que na corrida pela
“partilha do mundo” alguns Estados ficaram para trás. Alemanha, Itália e
Japão foram países de modernização capitalista retardatária (se
comparamos com Inglaterra, Bélgica, França etc.) e no processo de
afirmação do seu papel na divisão internacional do trabalho capitalista
precisavam de suas colônias, suas zonas de exportação de capital,
suprimento de matérias primas e influência política. Só que já existia
um sistema imperialista de divisão do mundo mais ou menos estável e a
ascensão desses países perturbava o equilíbrio firmado.
A Primeira Guerra Mundial foi a explosão
dessas contradições interimperialistas pelo domínio global. O fim da
guerra não só não resolveu essas contradições como possibilitou sua
elevação a nível superior. O projeto nazista da Alemanha expressa uma
radicalização da tradição colonial-imperialista, que viu seu “espaço
vital” dentro da própria Europa (isto é, no Leste Europeu) e pretendeu
transformar o povo eslavo em seus escravos coloniais (o Japão se voltou
para a China, Indochina e Coreia e a Itália para o Norte da África).
O racismo, o antissemitismo, os campos de
concentração, o extermínio em massa e o terror disseminado do nazismo
não eram nenhuma novidade à África e à Ásia. O nazismo traz para Europa
todas as práticas coloniais realizadas por países como a França, a
Inglaterra e Bélgica em suas colônias fora do velho continente. O Rei
Leopoldo tem mais de Hitler do que supõe nossa vã historiografia
eurocêntrica: a “solução final” do nazismo é a mais famosa do mundo, mas
de forma não é de forma alguma a única existente no século XX*. O
nazismo expressa portanto um projeto político do capital-monopolista
alemão numa época de contrarrevolução (derrota da revolução proletária
na Europa) em busca dos seus territórios coloniais e da liderança do
sistema mundial capitalista.
Leandro Konder, em seu clássico estudo Introdução ao fascismo, caracteriza assim o fascismo (e o nazismo):
“O fascismo é uma
tendência que surge na fase imperialista do capitalismo, que procura se
fortalecer nas condições de implantação do capitalismo monopolista de
Estado, exprimindo-se através de uma política favorável à crescente
concentração do capital; é um movimento político de conteúdo social
conservador, que se disfarça sob uma máscara “modernizadora”, guiado
pela ideologia de um pragmatismo radical, servindo-se de mitos
irracionalistas e conciliando-os com os procedimentos
racionalistas-formais de tipo manipulatório […] Pressupõe […] a
existência nele de certo nível de fusão do capital bancário com o
capital industrial, isto é, a existência do capital financeiro”. (p. 53)
Já a Revolução de Outubro, o
acontecimento político que inaugura o Século Soviético, surge como um
gigantesco levante anticapitalista e anticolonialista de proporções
mundiais. Focando apenas na Europa, é perceptível a existência de uma
tradição democrático-radical encarnada no jacobinismo, que no seu auge
(isto é, durante a grande Revolução Francesa) decretou o fim da
escravidão e olhou com simpatia para a luta dos negros na colônia do
Haiti (mas sem a radicalidade dos jacobinos negros, é claro). Da
tradição democrático-jacobina até o surgimento do socialismo de
orientação marxista, as lutas operárias na Europa se mesclavam, em
muitos momentos, com as lutas de libertação nacional dos países como a
Polônia e a Irlanda.
A Internacional Comunista, surgida em
1863, dedicou-se à luta pela libertação nacional dos países oprimidos na
Europa mas olhou pouco para a dinâmica da luta de classe e as lutas de
libertação nacional nos outros continentes. A II Internacional
(1889-1916) apresenta uma regressão nessa questão. Seus principais
teóricos estavam muito influenciados pelo mito do progresso e da
exportação da civilização; de diversas formas, eles apoiaram os
empreendimentos colonialistas até desembocar na adesão do chauvinismo da
Primeira Guerra – o apoio do Partido Social Democrata Alemão, o maior
da II Internacional, sela o fim dessa organização como um instrumento de
luta.
Contudo, no seio da II Internacional
surgiam tendências minoritárias que não só compreendiam o significado
histórico do colonialismo em sua fase imperialista, como conseguiam unir
na prática a luta anticapitalista com a luta anticolonial. O Partido
Bolchevique e seu principal líder, Lênin, eram a maior expressão desse
marxismo revolucionário que não se curvou ao social-chauvinismo (podemos
destacar também Rosa Luxemburgo e seu grupo, socialistas italianos
descontentes com os rumos do partido e que depois vão fundar o PCI, os
social-democratas sérvios etc. Nas palavras do filósofo marxista
Domenico Losurdo:
“Em relação a este
mundo, Lênin representa uma ruptura não só no plano político, mas também
epistemológico: a democracia não pode ser definida independentemente
dos excluídos, ‘o despotismo’ exercido sobre ‘bárbaros’ obrigados à
‘obediência absoluta’ própria dos escravos e as infâmias da expansão e
do domínio colonial lança uma luz inquietante sobre os Estados Liberais,
e não só que respeita à sua política interna”.
Liberalismo, p. 18.
Os bolcheviques não apoiaram o
chauvinismo das potências imperialistas em guerra e lançaram a palavra
de ordem de transformar a guerra imperialista em uma guerra civil contra
a burguesia de cada país. Os impactos da Grande Guerra na Rússia
precipitaram os ânimos revolucionários, e o tsar é derrubado. O
desenrolar histórico dos acontecimentos até a Revolução de Outubro é bem
conhecido. O que vale ser destacado e que recebe pouca atenção é que a
Rússia era um país subdesenvolvido e dominado pelo capital francês e
inglês, e o Império do tsar mantinha uma férrea opressão sobre as
minorias nacionais.
Ou seja, a Revolução de Outubro para se
consolidar precisava liquidar a opressão sobre as minorias nacionais e,
no plano internacional, apostou em duas frentes: a revolução proletária
na Europa e a revolução democrático-nacional nas colônias. De imediato,
não houve a revolução proletária na Europa nem as revoluções
democrático-nacionais nas colônias, mas a Revolução de Outubro, a
criação da III Internacional e a consolidação do poder soviético
produziu uma alteração no quadro mundial e um abalo no sistema
colonial-imperialista. Duas grandes citações são necessárias para
delinear bem o que significou essa nova fase do movimento operário e os
sentidos do leninismo.
“Difundiam-se, com
certa regularidade, notícias da penetração da propaganda bolchevista nas
colônias portuguesas, a exemplo da ‘mensagem aos trabalhadores brancos e
negros’ assinada por Lênin e G. Thcitcherine e cuja cópia foi
encontrada pelo chefe da circunscrição da Mossurize (então território da
Manica e Sofala), em 1919, entre as mãos de um indígena de
Johanesburgo. Circulam igualmente informações da passagem, em outubro de
1927, por Lourenço Marques, de um suspeito comunista, ‘o cidadão da
Livónia russa de Bakin’ e no mesmo mês foi repercutido um telegrama
confidencial do Ministério português da Colónias comunicando a intenção
de dois ‘comunistas’ Dmitri Rodaien (ou Rodaiev?) e Senes Chapiro,
acompanhados do português José Almendroa, se dirigiam à Guiné, Angola e
eventualmente a Moçambique “em reunião de propaganda comunista,
especialmente encarregados de ativar com elementos locais o
desenvolvimento de incidentes graves intervencionais entre as nossas
colônias e as colônias inglesas”
Andrade, p. 179
“Dezenas e centenas de
milhões de homens dos povos asiáticos e africanos, que sofreram a
opressão nacional de forma mais brutal e cruel, ficavam geralmente fora
do seu horizonte visual [da II Internacional]. Não se decidiam a colocar
num mesmo plano os povos ‘cultos’ e ‘incultos’, os brancos e os negros.
De duas ou três resoluções vazias e melífluas, nas quais se escamoteava
cuidadosamente a questão da libertação das colônias, era de tudo isso
que podiam vangloriar-se as personagens da Segunda Internacional. O
leninismo colocou a descoberto essa incongruência escandalosa, rompeu a
muralha entre os negros e os brancos ‘cultos’ e ‘incultos’ do
imperialismo e vinculou assim o problema nacional ao problema das
colônias”.
Stálin, p. 76-77.
A União Soviética não representava
“apenas” a primeira grande tentativa de construção do socialismo. A URSS
combateu firmemente as teorias do “racismo científico”, foi o primeiro
país do mundo a criminalizar o racismo (na Constituição Soviética de
1936), manteve em todos os âmbitos de sua produção cultural, educacional
e artística uma ampla propaganda antirracista e anticolonialista,
apoiou a luta dos povos coloniais de diversas formas, e as seções
nacionais da III Internacional eram obrigadas a combater de fato o
colonialismo e o chauvinismo – nenhuma conciliação era tolerada. A União
Soviética representava a tentativa de ruptura com o capitalismo, mas
também, e talvez até com mais sucesso, a ruptura com toda tradição colonial-racista da modernidade europeia e os elementos atualizados na fase colonial-imperialista.
“A União Soviética e os
partidos aliados a ela desempenharam um papel crucial na formação
política e ideológica dos quadros do movimento [de libertação africana],
tendo sido crucial em Moscou no ano de 1930, a escola de Stálin,
intuindo preparar quadros marxistas. As repercussões da crise econômica
que sacudiam o mundo possuíam uma natureza favorável à tarefa do
movimento anticolonial […] Após ter traçado os mecanismos e as vias para
colaboração com os movimentos anticolonialistas, o mundo socialista
engajou-se em um programa de apoio ativo à descolonização da África, sob
a forma de uma assistência material e diplomática, oferecida em
conformidade com o princípio do marxismo-leninismo, segundo o qual, o
mundo socialista deveria ajudar àqueles que aspirassem à descolonização
[…] A URSS assinou acordos com cerca de quarenta países africanos. Um
das mais interessantes dimensões desta cooperação dizia respeito ao
ensino e à pesquisa: formação de quadros africanos na URSS, envio de
professores e pesquisadores soviéticos às universidade e centros de
pesquisa africanos. Aproximadamente 30.000 africanos formaram-se no
sistema soviético de ensino superior.”
Thiam; Mulira; Wondji, 2010, p. 968-970.
Podemos caminhar para uma conclusão nesse
ponto. Enquanto o projeto nazifascista representava uma radicalização
do projeto colonial-imperialista por parte de países de desenvolvimento
capitalista retardatário que buscavam alterar a partilha do mundo,
reatualizando todos os métodos bárbaros do
colonialismo-imperialista: terror sistêmico, extermínio em massa, campos
de concentração, subjugação político-militar, estupros coletivos,
destruição das economias locais etc., o projeto soviético convocava os
povos das colônias, minorias nacionais oprimidas e o proletariado do
mundo a quebraram suas correntes e construir um novo mundo sem
exploração e opressão racial e nacional. Esse novo mundo não só era
construído na prática na URSS, como o país e a III Internacional
representavam um organizador ideológico e um apoiador prático
(financeiro, militar, diplomático, logístico etc.) das diversas lutas de
libertação do que veio a ser posteriormente chamado de Terceiro Mundo.
O Pacto Germano-Soviético em seu contexto histórico
A Revolução Russa ficou insulada. A
revolução proletária europeia não aconteceu e para se consolidar o poder
soviético teve que enfrentar uma violenta guerra civil organizada pelas
forças internas da antiga classe dominante e por quatorze potências
reacionárias. Os anos vinte do século passado marcam não só a
consolidação do poder soviético, vitorioso na guerra civil, mas a
criação de um cordão de contenção antissocialista e crescentemente
nazifascista. Da Itália fascista até a Inglaterra liberal, era consenso o
imperativo de destruir a União Soviética como objetivo estratégico.
Segundo Domenico Losurdo (2010, p.136)
diferentes personalidades políticas do Estado soviético, como Zinoviev,
Radek e Kamanev, estavam constantemente preocupados com ameaça perene de
agressão. Essa ameaça só crescia. Em 1925, um golpe de estado na
Polônia marca a subida de Pulsudki ao poder. O novo ditador rejeita a
proposta de um tratado de paz apresentado por Moscou em 1926 e não
esconde de ninguém que deseja destruir a União Soviética (Losurdo, 2010,
p. 136).
Ainda no ano de 1926, a Grã-Bretanha
(país que participou da coalizão de países que invadiram a Rússia
durante a guerra civil) rompe relações comerciais e diplomáticas com a
URSS, e o marechal Ferdinand Foch, convida a França a fazer o mesmo; a
embaixada da URSS é atacada em Pequim e em Varsóvia o embaixador
soviético é assassinado.
Ainda nos anos 1920, como é sabido, o
fascismo ascende ao poder na Itália. Longe de haver qualquer retaliação
das potências dominantes da Europa ou dos EUA, o fascismo é apoiado
política e economicamente, e os EUA se tornam o segundo maior parceiro
comercial da Itália de Mussolini. É lógico que não é surpresa para
ninguém que o fascismo italiano também tinha como objetivo estratégico
destruir a experiência de transição socialista soviética. Ludwig Mises,
um dos grandes nomes do liberalismo à época, exprime-se assim sobre o
fascismo:
“Não pode ser negado
que o Fascismo e movimentos similares que miram no estabelecimento de
ditaduras estão cheios das melhores intenções e que suas intervenções,
no momento, salvaram a civilização europeia. O mérito que o Fascismo
ganhou por isso viverá eternamente na história. Mas apesar de sua
política ter trazido salvação para o momento, não é do tipo que pode
trazer sucesso contínuo. Fascismo é uma mudança de emergência. Ver como
algo mais que isso, seria um erro fatal.
Liberalism, 1985[1927], cap. 1, p. 47, citado por Leandro Dias em “Fascismo à brasileira”, Pragmatismo Político, 28 jan. 2014.
Essa constante intensificação do
insulamento da União Soviética e a redução da influência política das
seções nacionais da Internacional Comunista a partir de 1928, com forte
queda do número de militantes em várias seções, condicionaram,
inclusive, a mudança de rumo da política interna da URSS no abandono da
NEP rumo à planificação, industrialização acelerada e coletivização
forçada do campo:
“Num discurso
pronunciado em 1931, Stálin lembrou que a Rússia ‘foi derrotada pelos
beis turcos. Foi vencida pelos nobres poloneses e lituanos. Foi
derrotada pelos capitalistas ingleses e franceses. Foi superada pelos
barões japoneses. Todos a venceram – devido ao seu atraso… Estamos 50 ou
100 anos atrás dos países adiantados. Devemos superar essa distância em
10 anos. Ou fazemos isso, ou eles nos esmagam”.
Davis, p. 116.
Enquanto a União Soviética crescia em
média 16% ao ano com o sistema de planificação socialista e a
propriedade pública dos meios de produção, a situação internacional
ficava mais difícil. No começo dos anos 1930, na Alemanha, o nazismo se
consolida no poder. Assim como no caso do fascismo italiano, a postura
das potências europeias, longe de ser marcada por uma hostilidade,
caracterizou-se por uma leve desconfiança logo superada – afinal, o
nazismo rapidamente deixou explícito que seu principal objetivo também
era destruir o socialismo soviético.
Em 1935, é assinado o acordo naval entre
Grã-Bretanha e III Reich. A Alemanha tinha reintroduzido o alistamento
obrigatório, e sua indústria armamentista estava a todo vapor –
descumprindo as regras impostas pelo Tratado de Versalhes –, mas a
Grã-Bretanha não cogitava tomar qualquer medida seria contra o projeto
nazista. Na Conferência de Mônaco, o embaixador estadunidense na França,
William C. Bullit, afirmava que era de suma importância “isolar o
despotismo asiático” e salvar a “civilização europeia” de uma guerra
fratricida (Losurdo, 2010, p. 190). – em poucas palavras: jogar o
nazifascismo contra a União Soviética:
“Norman Montagu,
Governador do Banco de Inglaterra (que, sendo o banco central, foi
também um banco privado até 1946), declarou numa conferência em Nova
Iorque em 1934: Hitler e Schacht [Presidente do Reichsbank e Ministro da
Economia de Hitler – NA] são na Alemanha bastiões da civilização. São
os únicos amigos que temos naquele país. Defendem o nosso tipo de ordem
social contra o comunismo. Se eles fracassarem, os comunistas chegarão
ao poder na Alemanha e, nesse caso, tudo será possível na Europa.”
Losurdo sublinha que, na Conferência de
Mônaco, a União Soviética foi o único país a desafiar o III Reich e
apoiar o Governo de Praga (a Tchecoslováquia foi dominada pela Alemanha,
e a conferência referendou esse domínio) e colocou 70 divisões em
estado de alerta. O filósofo italiano sintetiza da seguinte maneira a
questão:
“Portanto, os
agressores nazifascistas tinham devorado sucessivamente a Etiópia, a
Espanha, a Tchecoslováquia, a Albânia e, na Ásia, a China, graças à
cumplicidade direta ou à passividade das potências ocidentais, propensas
a dirigir contra o país nascido da Revolução de Outubro as ulteriores
ambições e olhares expansionistas do III Reich.”
Losurdo, 2010, p. 191.
A diplomacia soviética fazia de tudo para
isolar o Terceiro Reich e o fascismo italiano. Os soviéticos entraram
na Liga das Nações e procuraram fortalecer a organização e usá-la como
um instrumento de cercamento do nazifascismo (quando a URSS entrou na
Liga das Nações, Leon Trótski afirmou que isso era uma prova da política
burguesa imperante na direção soviética; evidentemente, a geopolítica,
como sempre, escapou aos olhos do ex-grande líder do Exército Vermelho),
mas essa manobra não foi bem sucedida graças à ação da Grã-Bretanha e
França. Cumpre lembrar que na Guerra Civil Espanhola a URSS foi o único
país que ajudou de verdade os combatentes antifascistas:
“Durante anos, a URSS
desenvolveu uma ação diplomática intensa, visando criar um sistema de
segurança coletiva com acordos de não-agressão e defesa mútua entre o
maior número possível de países. Em particular, procurou acordos deste
tipo com as duas velhas potências capitalistas europeias, Inglaterra e
França, as principais potências coloniais de então, e com a maior das
potências capitalistas (EUA). Esta política da URSS baseava-se numa
análise sobre os perigos do ascenso do fascismo para a paz mundial e
para os povos e sobre as possibilidades resultantes das rivalidades
existentes.”
Todavia, a União Soviética tinha também
que se preocupar com suas fronteiras orientais. O Japão também tinha um
regime fascista com pretensões expansionistas neocoloniais. Ainda em
junho de 1938, portanto antes de começar oficialmente a Segunda Guerra,
tropas japonesas atacam a fronteira soviética numa batalha de grandes
proporções (Medvedev, p. 323). As tropas japonesas mesmo repelidas
causaram grandes perdas ao Exército Vermelho.
A União Soviética tentou até o fim evitar a Guerra e enfraquecer os nazistas. Segundo reportagem do jornal The Daily Telegraph,
baseado em documentos recentemente liberados, duas semanas antes da
Guerra, em 1939, numa reunião no Kremlin, os dirigentes soviéticos
ofereceram aos ingleses e franceses uma aliança antifascista e colocaram
à disposição de imediato um contingente de forças militares:
“A oferta soviética –
feita pelo ministro da Guerra Marechal Klementi Voroshilov e o chefe do
Estado Maior do Exército Vermelho Boris Shaposhnikov – teria colocado
até 120 divisões de infantaria (cada uma com algo em torno de 19.000
homens), 16 divisões de cavalaria, 5.000 peças de artilharia pesada,
9.500 blindados e até 5.500 aeronaves e bombardeiros na fronteira alemã
no caso de guerra no ocidente, como mostram atas do encontro que tiveram
o sigilo levantado”.
As delegação da Inglaterra e da França
não foram autorizadas pelos seus respectivos países a negociarem –
apenas ouvir a proposta, e a resposta nunca veio. Ainda segundo o The Daily Telegraph,
os dirigentes soviéticos estavam plenamente cientes do total
desinteresse dos políticos britânicos e franceses, representando suas
burguesias, no enfrentamento ao nazismo.
Antes de passarmos ao próximo ponto, é
necessária uma recapitulação. A União Soviética enfrentava um difícil
processo de modernização socioeconômico orientado pela planificação
socialista durante toda década de 1920 e 1930 e se viu cercada, ameaçada
e isolada na geopolítica mundial – a redução da influência da
Internacional Comunista a partir de 1928, supracitada, deve ter sido
assustadora aos dirigentes soviéticos. O cerco e as ameaças à União
Soviética aumentaram ainda mais com a consolidação do nazifascismo na
Itália, na Alemanha e no Japão. Não era segredo para ninguém que esses
três países, em especial a Alemanha, tinham como principal objetivo
político-estratégico destruir a pátria de Lênin.
As potências ocidentais comportavam-se de
uma forma a jogar o nazifascismo contra a União Soviética. A Segunda
Guerra Mundial seria uma frente única das potências liberais e
nazifascista contra o socialismo soviético. Para fechar esse ponto,
segue a visão de Churchill sobre o fascismo:
“Churchill era um
grande admirador de Mussolini, que chegara ao poder em Itália em 1922.
Saudava quer o anticomunismo de Mussolini, quer a sua forma autoritária
de organizar e disciplinar os italianos. Visitou a Itália em 1927 […] e
encontrou-se com Mussolini, sobre quem proferiu rasgados elogios numa
conferência de imprensa […]. ‘Se fosse italiano, estou seguro que
estaria de todo o coração ao vosso lado, desde o início até ao fim, na
vossa luta triunfante contra os apetites e paixões animalescas do
Leninismo’. Durante os dez anos seguintes, Churchill continuou a elogiar
Mussolini.”
O Pacto de Não-Agressão e sua dimensão estratégica
A ideologia dominante afirma que depois
do Pacto de Não-Agressão o governo soviético teria se aliado complemente
e sem quaisquer restrições ao nazismo alemão. Na realidade, Stálin, em
diálogo com um dirigente da Letônia, afirma que “por seis anos, os
fascistas alemães e comunistas se xingaram reciprocamente. Agora […]
verificou-se uma virada inesperada, mas não se pode basear nela. Devemos
estar preparados a tempo” (Losurdo, 2010, p. 188). Stálin indica, de
forma evidente, que sabe que o Pacto de Não-Agressão é temporário e a
guerra cedo ou tarde virá.
Isaac Deutscher, historiador insuspeito
de simpatia pela liderança soviética na época “stalinista”, afirma o
seguinte sobre a postura comunista durante o Pacto de Não-Agressão:
“Enquanto Stalin
exprimia a Hitler a sua confiança numa conclusão rápida da guerra, os
seus enviados diplomáticos e seus agentes no exterior favoreciam toda
forma de resistência à ‘nova ordem’. Os jornais de Moscou, que até então
não tinham poupado observações irônicas ou de desprezo aos aliados,
começaram a assumir um tom de simpatia na avaliação da batalha da
Inglaterra e a encorajar os patriotas franceses na luta contra a
dominação nazista. Anteriormente, também, o Ministro Exterior alemão se
vira obrigado a protestar contra a propaganda antinazista desenvolvida
pela senhora Kollontai, ministra da União Soviética na Suécia.”
Deutscher apud Losurdo, 2010, p. 194
Dimitrov, importante líder da
Internacional Comunista, em diálogo com Molotov, um dos principais
dirigentes do Estado soviético, afirma: “nós levamos adiante uma linha
de desagregação das tropas de ocupação nos vários países e, sem alarde,
queremos reforçar mais esse trabalho”. Isso não perturbaria a política
soviética? E Molotov responde: “naturalmente, é preciso fazer isso. Não
seríamos comunistas se não seguíssemos uma linha assim. Só que se deve
fazê-lo sem barulho” (Losurdo, 2010, p. 194). O que percebemos nesse
diálogo é que os principais dirigentes políticos da URSS estavam
plenamente cientes que o pacto era um expediente tático para evitar o
isolamento da URSS e a guerra em duas frentes, e que não significava, de
forma alguma, abrir mão de combater o nazismo.
Um último exemplo sobre a questão.
Nos primeiros meses do ano de 1941, Stálin recebe o embaixador da
Iugoslávia em Moscou. Ambos conversam sobre a estratégia política de
resistência do país à ocupação militar nazista e como a URSS pode
contribuir. O embaixador iugoslavo, surpreso com a audácia de Stálin,
pergunta o que ele fará caso os alemães, irritados com a colaboração,
voltarem-se contra o país. A resposta de Stálin: “que venham” (Losurdo,
2010, p. 195).
Hitler evidentemente percebeu essa
movimentação soviética. Já em novembro de 1939, o ditador alemão sabia
que a URSS estava usando o tempo ganho pelo pacto para fortalecer-se
militarmente e que a qualquer momento o acordo poderia ser quebrado
(Losurdo, 2010, p. 193). O Führer, falando com um alto comissário da Sociedade das Nações em Danzig, diz:
“Tudo o que empreendo é
voltado para a Rússia, se o Ocidente é demasiado estúpido e cego para
entender isso, serei obrigado a chegar a um entendimento com os russos e
a derrotar depois o Ocidente, de modo que após a sua derrota eu possa
voltar-me contra a União Soviética com todas as forças por mim
reunidas.”
Nolte apud Losurdo, 2010, p. 193
A mitologia política de Guerra Fria que
afirma que existia uma atração ideológica e afetiva entre Hitler e
Stálin e que ambos mantinham uma relação de confiança não resiste a uma
análise histórica mínima. O mesmo vale para algumas mitologias que
afirmam que com a assinatura do Pacto os comunistas soviéticos deixam de
combater o nazismo.
No entanto, resta desmontar ainda uma mentira mais forte e com maior repercussão: a história de que, pela
confiança em Hitler, Stálin não teria acreditado nos avisos do serviço
secreto soviético sobre os planos de invasão da Alemanha e por isso foi
surpreendido com o início da Operação Barbarossa. Essa confiança de
Stálin em Hitler teria custado graves perdas ao Exército Vermelho e
quase provocado a derrotada soviética. Está na hora de mostrarmos a
falsidade dessa mitologia política.
Hitler aprovou o plano da guerra contra a
URSS no dia 18 de dezembro de 1940. Em janeiro de 1941, Stálin já
estava informado dos detalhes essenciais do plano, devido aos relatórios
do serviço secreto soviético. Os soviéticos tinham um espião com
importante cargo no Ministério da Economia alemã. Arvid Harnack,
conhecido como o “Corso”, informou, através de um telegrama datado de 24
de março de 1941, que os nazistas escolheram o mês de maio para a
invasão porque “presumiram que as tropas soviéticas em retirada não
teriam tempo de queimar os cereais ainda não amadurecidos” (Medvedev, p.
291).
Merkulov passou a informação a
Stálin, Molotov, Beria e Timoshenko. Segundo os irmãos Medvedev, não
existe qualquer motivo para se deduzir que a direção soviética teria
duvidado da informação – em especial considerando que outro espião de
confiança, Richard Sorge, radicado em Tóquio, confirmou o relato. Stálin
e seus comandantes tinham conhecimento da concentração de tropas alemãs
ao longo da fronteira ocidental soviética (Medvedev, p. 291).
As dificuldades do fascismo italiano em
conquistar a Grécia e o movimento popular ocorrido em 27 de março em
Belgrado, levando ao poder um governo pró-soviético e o povo nas ruas
gritando “três vivas a Stálin e Molotov” e “poder aos sovietes”
(Medvedev, p.293), adiaram os planos nazistas. Para piorar a situação de
Hitler, a URSS, em jogada diplomática brilhante, assina um Pacto de
Não-Agressão com o Japão (abril de 1941) procurando garantir evitar uma
guerra em duas frentes.
Enquanto os nazistas tentaram conquistar
definitivamente a Iugoslávia e a Grécia como forma de garantir a
operação contra a URSS, o país soviético aumentava sua capacidade
militar. Os irmãos Medvedev afirmam que a indústria militar nazista não
aumentava sua capacidade militar desde 1939 e já havia diminuído na
altura de 1941. Enquanto isso, a produção industrial soviética crescia
em ritmos constantes, e a pátria de Lênin já tinha mais tanques e aviões
que a Alemanha nazista (cerca de 10 mil tanques e 8 mil aviões
soviéticos) (Medvedev, p. 297).
Adolf Hitler, ao centro, estuda um mapa de guerra russo ao lado de oficiais alemães em 7 ago. 1941.
Na Operação Barbarossa, os nazistas
esperavam destruir as indústrias de Moscou, Leningrado e Kharkov. A
estratégia era bem simples: através de uma gigantesca Blitzkrieg
(guerra relâmpago), esperava-se aniquilar em poucos meses a indústria
soviética, o grosso das forças armadas e conquistar as principais
capitais – tudo isso em uma grande e decisiva batalha. A direção
soviética (e Stálin em especial) tinha consciência desses planos. Quando
a Alemanha subjugou a Grécia e a Iugoslávia, membros da cúpula militar
alemã foram convidados a visitar os Urais e a Sibéria Ocidental. Aos
alemães foi apresentado o tanque T-34, um modelo soviético superior a
qualquer tanque alemão. A estratégia era evidente: assustar os nazistas e tentar convencê-los a adiar a guerra e ganhar mais tempo. Enquanto isso:
“Em contraste frontal
com o Estado-maior e os comandantes do Exército Vermelho, que se
concentravam na situação da fronteira, o empenho de Stálin estava todo
voltado para os acontecimentos do cenário internacional, recorrendo a
todos os meios à sua disposição para evitar a guerra. Era evidente, na
época, que Hitler e o Estado-maior alemão subestimavam gravemente o real
poderio e o potencial estratégico da União Soviética”.
Medvedev, p. 300
Em 5 de março de 1941, acontece algo
incomum: Stálin vai discursar para formandos da Academia Militar
soviética. Com 1.500 pessoas convidadas e reunidas no salão do Kremlin,
Stálin realiza um discurso invulgar: cita informações sobre o número de
divisões soviéticas e o poderio militar do país e critica abertamente e
de forma dura a política de Hitler. Supostamente, o discurso seria
secreto. Contudo, é evidente que não há como manter em segredo um
discurso para 1.500 pessoas. Os irmãos Medvedev afirmam que o discurso
de Stálin disseminou informações falsas e sobrevalorizadas sobre o poder
do Exército Vermelho. O jogo de gato e rato é claro: os nazistas se
preparando para invadir a URSS, e a direção soviética reforçando seu
poder militar enquanto espalhava desinformação para confundir o
Estado-maior alemão.
Em 15 de junho de 1941, está quase tudo
pronto para o início da invasão alemã. O alto-comando do Exército
Vermelho insiste na necessidade de aumentar o número de divisões nas
fronteiras. Stálin discorda. O Marechal Jukov achava que o pequeno
número de divisões soviéticas nas fronteiras garantiria uma vitória
fácil dos nazistas, perdendo de vista a estratégia alemã do grande Blitzkrieg. Anos depois, contudo, o militar reavalia sua posição em suas memórias:
“É comum criticar
Stálin por não ter transferido as principais forças de nosso exército do
interior do país a tempo de enfrentar e repelir o ataque inimigo.
Hesito em ser dogmático sobre o que poderia ter acontecido se ele o
tivesse feito – se o resultado teria sido melhor ou pior. Certamente é
possível que nosso exército, com defesas antiaéreas e antitanques
inadequadas e menor mobilidade que as forças do inimigo, não tivesse
sido capaz de fazer frente aos vigorosos e potentes golpes de força
blindada do ataque inimigo, vendo-se exatamente na mesma situação
calamitosa que as forças que efetivamente estavam nos distritos de
fronteira nos primeiros dias da guerra. E nesse caos, quem sabe qual
poderia ter sido o resultado para Moscou, Leningrado ou o sul do país?”
Medvedev, p. 308
Os irmãos Medvedev citam que o Marechal
Jukov, antes de escrever suas memórias, teve acesso aos planos
estratégicos da Operação Barbarossa. A partir desses documentos o
militar pôde rever seus erros. No calor dos acontecimentos do pré-guerra
e mesmo sem ter acessos a esses documentos, Stálin e seus colaboradores
mais íntimos, como Dimitrov, acertaram. A crença na ideia de que
Stálin não teria acreditado nos relatórios da inteligência soviética e
por isso o país teria sofrido muito no início da guerra é totalmente
falsa. Senão vejamos.
Sabemos que a estratégia alemã era criar um grande Blitzkrieg para dizimar de um golpe só o poderio militar soviético. A partir disso os alemães se valeram de estratégias de provocação, visando atrair divisões soviéticas para as fronteiras, e de contrainformação
sobre o nível de preparativos e o dia da inevitável invasão nazista. Os
irmãos Medvedev narram que o Comissário de Segurança do Estado
(soviético), Vsevolod Merkulov, em 17 de junho, relatou através de
informes vindos de agentes secretos que as operações militares contra a
pátria soviética estavam para começar. Stálin assim responde o informe
de Merkulov: “Camarada Merkulov, pode dizer à sua ‘fonte’ no
quartel-general da aeronáutica alemã que vá foder a mãe. Não trata de
uma ‘fonte’, mas de alguém espalhando desinformação” (Medvedev, p. 311).
É a partir desse episódio que muitos
historiadores cultivam a mentira sobre a confiança total de Stálin em
Hitler e do desprezo pelas informações do serviço secreto soviético.
Contudo, os irmãos Medvedev avaliam o episódio da seguinte forma:
“Há motivos para crer
que nesse caso Stálin estava com a razão […]. Ao longo de junho de 1941,
Stálin recebia dezenas de relatórios de agentes da inteligência militar
com informações precisas e detalhadas, podendo facilmente distinguir
entre as mensagens autênticas e as tentativas de desinformação. Nesse
período, os serviços soviéticos de inteligência contavam com muitos
agentes dignos de confiança na Alemanha e em outros países, sendo seus
relatórios levados muito a sério por Stálin.
Medvedev, p. 312
Quando a invasão da barbárie nazista
começou, a totalidade da direção política e militar soviética estava
bem informada de tudo, as tropas na fronteira encontravam-se em
mobilização permanente e mesmo com o grande poderio nazista foram
possíveis pequenas vitórias, como salvar a vida dos pilotos
mais experientes nas regiões fronteiriças. Porém, por que inicialmente
os nazistas tiveram um sucesso tão esmagador? A questão, no fundo, é
mais evidente do que parece:
“O ataque lançado pela Wehrmacht
a 22 de Junho de 1941 foi a maior operação militar de que há registo
histórico e ‘nunca, nem antes, nem depois, uma batalha foi travada com
tanta ferocidade por tantos homens, numa frente de batalha tão extensa’.
É impossível escamotear o facto histórico de que a grande maioria das
forças armadas nazifascistas estava concentrada na Frente Leste, e que a
sua derrota determinou a derrota final do nazismo em 1945. ‘Ao longo do
ano 1942 o Exército Soviético combatia contra 98% do Exército Alemão
operacional – 178 divisões concentradas na frente leste – enquanto que
os britânicos combatiam contra quatro no Norte de África’.”
A invasão nazista à União Soviética foi o
maior ataque militar da história da humanidade! Seria no mínimo curioso
alguém pressupor que era possível resistir a esse ataque sem grandes
perdas e até vitórias significativas dos nazistas. Além disso, os irmãos
Medvedev relatam um erro estratégico de Stálin e dos comandantes
militares: pressupor de que o centro inicial do ataque alemão seria a
Ucrânia e o norte do Cáucaso (por conta das riquezas naturais da região)
e não Moscou e Leningrado (Medvedev, p. 321). Esse erro estratégico,
porém, não colocou a guerra a perder, como podemos constatar
retrospectivamente.
A suposta depressão de Stálin ao início da guerra
Uma das maiores lendas políticas da
Segunda Guerra Mundial é a história de que Stálin teria entrado em
depressão ao início da guerra porque Hitler teria quebrado sua confiança
e ele falhado como principal liderança do Estado soviético
(considerando as primeiras vitórias nazistas). Essa lenda foi criada por
Nikita Khrushchov na disputa pelo poder dentro do PCUS no pós-morte de
Stálin. Khrushchov disputava com Beria a condução do poder e, como este
se apresentava como sucessor direto e legítimo de Stálin, aquele viu
como parte indispensável da sua luta pelo poder a destruição da imagem
do georgiano. O XX Congresso do PCUS, quando Khrushchov denuncia os
“crimes de Stálin”, inaugura a era do “culto à personalidade em
negativo”: antes todos os méritos eram atribuídos à Stálin, agora todos
os defeitos e problemas foram sua culpa.
A mentira de Khrushchov é repetida até
hoje como uma verdade incontestável. Já vimos que a história da
confiança de Stálin em Hitler era falsa assim como a lenda da ignorância
soviética dos planos nazistas e da surpresa com a invasão alemã; logo,
por tabela, a história da depressão de Stálin cai por terra a partir de
uma dedução lógica, mas nem sempre a história segue a lógica formal e
faz-se necessário derrubar esse argumento em seu âmago.
Os irmãos Medvedev citam que Khrushchov
ao início da guerra estava em Kiev e simplesmente não teria como ter
informações sobre o que se passava no alto comando soviético (p. 317).
Além disso, as memórias do Marechal Jukov contêm vários documentos sobre
as atividades, ordens e diretrizes de Stálin nos primeiros dias da
guerra, provando que a história é totalmente falsa (p. 318).
Os Medvedev citam dados que demonstram
que no dia em que, segundo a lenda de Khrushchov, Stálin estaria recluso
e deprimido, ele emitiu 20 decretos e ordens e trabalhou praticamente
as 24 horas do dia, participando de reuniões periódicas com todas as
lideranças políticas e militares da URSS (2006, p. 319). A dedicação do
supostamente depressivo Stálin era tão grande (aliada à característica
centralização decisória soviética) que ele, segundo episódio narrado por
Losurdo (2010, p. 34), liga para Akaki Ngekadeze, chefe do partido na
Abcásia, reclamando da baixa produção de cigarros e afirmando que sem o
produto a frente não funciona… “Os soldados precisavam fumar” – é
difícil compatibilizar a lenda de um homem deprimido e atônico com a
realidade de alguém que trabalhava quase 24 horas por dia e revela estar
preocupado os mínimos detalhes do fronte.
Ainda segundo Khrushchov, Stálin não
entendia absolutamente nada de estratégia militar e traçava seus planos
militares em um globo escolar. Essa imagem de Stálin usada por
Khrushchov ganhou tanta notoriedade que até
no filme sobre Stálin lançado pela BBC
ela aparece como verdade inquestionável – o filme se coloca como
“baseado em fatos reais”. Bem, já podemos demonstrar que, no conjunto,
Stálin tinha uma visão política da guerra melhor que seus generais e
acertou, por assim dizer, no atacado, embora tenha errado algumas vezes
no varejo. Numa análise de síntese, os irmãos Medvedev – declarados
anticomunistas, nunca é demais lembrar – afirmam que:
“Examinando
retrospectivamente todos os atos de Stálin e as decisões militares nos
primeiros dias da guerra, é perfeitamente possível chegar à conclusão de
que, dada a intensidade e a força do golpe infligindo à URSS pelo
exército alemão e seus aliados, cujas forças em conjunto chegavam a
quase 200 divisões, a decisão tática de manter as principais forças do
exército soviético a uma distância de 200 a 300 quilômetros da fronteira
foi absolutamente correta. Foi isto que possibilitou promover
contra-ataques locais e, a 26 de junho, por ordem de Stálin, criar uma
nova frente de reserva utilizando o 5° Exército. Logo depois seria
criada uma terceira linha de defesa. O exército alemão continuou
avançando, mas ao preço de pesadas perdas.”
Medvedev, p. 321
Conclusão
Como sabemos, foi a Alemanha que procurou
a União Soviética para firmar o Pacto de Não-Agressão. A assinatura do
Pacto teve grandes consequências políticas negativas, abalando
profundamente as fileiras do movimento comunista. Mas ele foi
justificado? Como vimos, existia um explícito movimento das potências
liberal-imperialistas e nazifascistas para formar uma frente única
contra o Estado soviético. A França e a Inglaterra, as principais
potenciais liberal-imperialistas, deram todos os sinais imagináveis de
que não estavam dispostos a confrontar o nazifascismo.
A prova maior disso é que, ao início da
guerra, a Inglaterra e a França, de forma não surpreendente, esboçaram
uma resistência ridícula. A França chegou ao fundo do poço da vergonha
colaboracionista com os nazistas: a classe dominante do país decidiu não
lutar, entregou-se aos nazistas, não forjou uma resistência digna – o
crescimento do Partido Comunista da França no imediato pós-1935, fruto
da nova estratégia da Terceira Internacional depois da “virada
Dimitrov”, parecia mais assustador a classe dominante que a barbárie
nazista.
Mesmo com o início da Segunda Guerra a
classe dominante dos países liberal-imperialistas nunca deixou de jogar o
nazismo contra a União Soviética. O livro de Laurence Ress, comentando
no início do texto, traz depoimentos de ex-militares soviéticos que
serviram durante a guerra e que têm certeza que a Inglaterra e os EUA
não abriram a segunda frente, dividindo o poderio militar nazista quase
todo concentrado na URSS pois esperavam que a Alemanha destruísse ao
máximo a pátria de Lênin. Quando a URSS conseguiu conter e repelir os
nazistas e avançou rumo à Europa Ocidental é que as potências
imperialistas criaram uma segunda frente com e único e exclusivo
objetivo: garantir a dominação burguesa nos países da Europa Ocidental. O
Desembarque na Normandia, o famoso “Dia D”, não marca a vitória sobre
os nazistas – ao contrário, é um símbolo do êxito da contrarrevolução
frente ao Exército Vermelho em marcha triunfal.
O Pacto de Não-Agressão forçou a
Inglaterra e a França a entrarem na guerra contra a Alemanha e
proporcionou tempo hábil para que a União Soviética aumentasse o seu
poderio militar; preparasse melhor as Forças Armadas formando mais
oficiais e criasse uma estratégia de transferência de fábricas e
quartéis para regiões afastadas do fronte, além de evitar que a
totalidade da máquina de guerra alemã se voltasse exclusivamente contra a
URSS (ainda que, como sabemos, a URSS tenha suportado o maior fardo da
guerra).
Os irmãos Medvedev consideram que o Pacto
de Não-Agressão foi uma medida tática acertada e indispensável para a
vitória soviética na Grande Guerra (2006, p. 310). Os argumentos e os
fatos apresentados nos levam a crer que essa análise está correta. Mesmo
sendo difícil fazer futurologia, isto é, imaginar o que teria
acontecido sem o Pacto, fica claro que nos seus objetivos imediatos a
direção soviética acertou o máximo que pode dentro das possibilidades
concretas.
Aliado a isso, é licito fazer um juízo
moral do Pacto em alguns aspectos, como a divisão da Polônia. Mas
algumas coisas não podem ser esquecidas: na parcela da Polônia
controlada pela URSS,
como lembra Annie Lacroix-Riz,
“os soviéticos salvaram mais de 1 milhão de judeus das zonas reanexadas
e organizaram uma evacuação prioritária em junho de 1941”. Sim, os
soviéticos, graças ao controle sobre territórios da Polônia antes da
Guerra, salvaram mais de 1 milhões de judeus. O juízo moral sobre esse
aspecto do Pacto considerando esse número é o mesmo?
A verdade é que, se hoje o mundo não fala
alemão, a escravidão racial aberta não campeia pelo mundo e a barbárie
colonialista sofreu duros golpes no século XX, devemos agradecer à União
Soviética: seu povo, o Exército Vermelho, o Partido Comunista da União
Soviética e seu líder máximo, Josef Stálin. Essa é a verdade que a União
Europeia quer ocultar, mas não vai conseguir. A verdade vencerá.
Notas
* Para um exemplo da “Solução final” no Canadá, ver Elaine Tavares, “
A tragédia indígena no Canadá”, IELA-UFSC, 12 ago. 2015.
** Annie Lacroix-Riz, “
O papel ‘esquecido’ da União Soviética”,
Le Monde Diplomatique – Brasil, mai. 2005.
Referências bibliográficas
Annie Lacroix-Riz, “O papel ‘esquecido’ da União Soviética”, Le Monde Diplomatique – Brasil, mai. 2005.
Domenico Losurdo, Liberalismo: entre a civilização e a barbárie. Anita Garibaldi, 2006.
Domenico Losurdo, Stálin: uma história crítica de uma lenda negra. Editora Revan, 2010.
Hannah Arendt, Origens do totalitarismo: antissemitismo, imperialismo, totalitarismo. São Paulo, Companhia das letras, 2009.
Horace B. Davis, Para uma teoria marxista do nacionalismo. Rio de Janeiro, Zahar, 1978.
I. Thiam, J. Mulira & C. Wondji, “A África e os países socialistas”. em: Albert Adu Boahen (ed.), História Geral da África, Volume VII (África de 1930 até os dias atuais). Editora Unesco.
Josef Stálin, Fundamentos do Leninismo. Global, 1980.
Jorge Cadima, “Nos 70 anos da Vitória de 1945”, O militante (jornal do PCP), 8 mai. 2015.
Leandro Dias, “Fascismo à brasileira”, Pragmatismo Político, 28 jan. 2014.
Leandro Konder, Introdução ao fascismo. São Paulo, Expressão Popular, 2010.
Mário Pinto Andrade, Origens do nacionalismo africano. Lisboa, Publicações Dom Quixote, 1990.
Nick Holdsworth, “Stalin ‘planned to send a million troops to stop Hitler if Britain and France agreed pact’”, The Telegraph, 18 out. 2008.
Pedro Marin, “Liberais e anticomunistas: ninguém solta a mão de ninguém”, Revista Opera, 3. out. 2019.
Zhores A. Medvedev & Roy A. Medvedev, Um Stálin desconhecido: novas revelações dos arquivos soviéticos. Rio de Janeiro, Record, 2006
***
Jones Manoel
é pernambucano, filho da Dona Elza e comunista de carteirinha. Começou
sua militância na favela onde nasceu e cresceu, a comunidade da
Borborema, construindo um cursinho popular, o Novo Caminho, junto com
seu amigo Julio Santos (ele, Julio e outro amigo, Felipe Bezerra, foram
os primeiros jovens da história de Borborema a entrar em uma
universidade pública). Depois de dois anos com o cursinho popular,
passou a militar no movimento estudantil em paralelo ao seu curso de
história na UFPE. Pouco tempo depois, ingressou nas fileiras da UJC (a
juventude do PCB). Ativo no movimento estudantil até 2016, hoje atua no
movimento sindical e na área da educação popular. Mestre em serviço
social, atualmente é professor de história, mantém um canal no YouTube e
participa do podcast Revolushow. Segue militante do PCB. Escreve para o
Blog da Boitempo mensalmente, às quartas.