Está
um ambiente político estranho. Três partidos com três deputados têm
conseguido tomar conta da agenda. E, talvez desnorteada pela crise que
está a viver, a direita tem-se dedicado a votos simbólicos mais ou menos
folclóricos que têm como único objetivo a demarcação ideológica e sem
qualquer relação com a vida concreta dos portugueses. O voto de repúdio
pela medida disciplinar da Federação de Futebol Inglesa contra Bernardo Silva
foi talvez o momento mais patético de todos. Sem programa nem
alternativa, a direita está apostada em transformar o Parlamento num
mero centro de factoides políticos, sem qualquer dignidade
institucional. O gesto mais recente foi o voto sobre o 25 de novembro,
apresentado também pelo CDS.
Nunca Ramalho Eanes
tentou, enquanto Presidente, que o 25 de novembro se transformasse numa
data festiva da República. A sua celebração era, se bem me recordo,
apenas militar. Ele, com a responsabilidade máxima que teve naquela ação
militar, sabia qual era a sua função depois desse dia. Volta a sabê-lo,
quando diz,
com o sentido de Estado que falta a outros, que “o 25 de Novembro foi
um momento fraturante e eu entendo que os momentos fraturantes não se
comemoram; recordam-se, e recordam-se apenas para refletir sobre eles”.
Foi acompanhado por outra das figuras centrais do 25 de novembro, Vasco Lourenço:
“os acontecimentos e as datas que unem devem ser comemorados, caso do
25 de Abril, e os acontecimentos e as datas que dividem não o devem ser,
mas apenas recordados para com eles aprendermos.”
Antes
de passar ao real sentido deste voto, que nada tem a ver com o momento
histórico de há 44 anos, deixo claro o meu olhar sobre esta data, em
2019. Porque é em 2019 que o estamos a debater, e em 1975 eu tinha
apenas seis anos. Não é por radicalismo de esquerda que o povo sempre
celebrou o 25 de Abril e nunca o fez, mesmo onde a direita é forte, com o
25 de novembro. Porque as duas datas não são paralelas. A minha posição
sobre o assunto, que tive oportunidade de defender, aqui no Expresso,
há quase 15 anos, não será muito consensual. Considero que o 25 de
novembro foi tão necessário como o PREC.
É
sonso, ingénuo ou tonto quem julgue que o paralelo entre meio século de
ditadura e aqueles que a combateram, evidente na votação do 25 de
novembro, ou o voto do Parlamento Europeu, com um paralelo entre o
comunismo e o nazismo, foi um ataque aos comunistas.
Muitas
das conquistas políticas e sociais que temos como fundadoras da nossa
democracia não teriam resistido tanto tempo se não tivessem sido ganhas
na rua, num processo de participação popular, cheio de contradições,
erros e excessos, mas que fizeram do 25 de Abril mais do que um golpe de
Estado. É interessante ouvir o sociólogo Robert Fishman
e as suas justificações para a natureza mais inclusiva da democracia
portuguesa, em comparação com a espanhola. O 25 de novembro foi uma
espécie de fusível que impediu que o conflito político, natural depois
de 48 anos de ditadura, degenerasse numa guerra civil, isolasse o
processo revolucionário da verdadeira vontade popular e pusesse em
perigo a própria conquista da democracia. O 25 de novembro não foi, ao
contrário do que os revisionistas gostariam que fosse, o arranque de um
processo ou a segunda parte de um processo incompleto - basta recordar
que as primeiras eleições livres foram antes, não depois. Foi um travão
necessário, no momento certo. E é por isso que ninguém o festeja e já
poucos o lamentam.
Em 2019, o comunismo não
representa qualquer perigo. Pelo contrário, o renascimento de forças
fascistas ou suas aparentadas é evidente. O objetivo do revisionismo
histórico é romper o cordão sanitário com a extrema-direita
Apesar
das polémicas em torno da data, o que saiu do 25 de novembro foi
absorvido pelo regime e por todas as forças políticas mais relevantes da
nossa democracia. Prova disso foi o apoio que o PCP viria a dar, pouco
mais de uma década depois, à candidatura presidencial do seu principal
responsável, o general Ramalho Eanes. Cada um com a sua leitura sobre as
necessidades e injustiças que se cometeram antes e depois daquela data,
é um assunto arrumado. Mas a tentativa de fazer renascer esta
polarização sem qualquer tradução no nosso quotidiano político atual,
nada tem a ver com o passado. É sonso, ingénuo ou tonto quem votou
aquela moção a pensar na História. A Assembleia da República não é um
centro de estudos. Não constrói evidências históricas. Faz política no
presente. E foi a pensar no presente que se votou aquela moção.
A
melhor tradução do seu objetivo está no cartaz da Iniciativa Liberal,
que veem no topo deste texto: “25 de novembro sempre, comunismo nunca
mais.” A escolha de apenas uma das figuras, que não é a mais relevante
mas é seguramente a mais divisiva, para ilustrar o cartaz, apagando com
um toque estalinista todos os que desagradam à direita, mostra que não é
de celebração mas de reescrita da História que estamos a falar.
Reinventando a conhecida frase gritada pelo povo, não se pretende apenas
fazer um paralelo pateta entre o 25 de Abril e o 25 de novembro, mas um
paralelo entre meio século de uma ditadura criminosa e aqueles que a
combateram. E quem pensa que o cartaz é um ataque aos comunistas vê
apenas a aparência das coisas. Assim como só vê a aparência das coisas
quem julga que o voto do Parlamento Europeu, que fez um paralelo entre o
comunismo e o nazismo, foi um ataque aos comunistas.
Em
2019, o comunismo não representa, para quem o considere assim, qualquer
perigo. Os partidos comunistas são pequenos e estão em queda. Pelo
contrário, o renascimento de forças fascistas ou suas aparentadas é
evidente. O objetivo desta e daquela votação é normalizar, através do
paralelo com forças que estão há muito institucionalizas na democracia e
não são vistas como um risco, as forças de extrema-direita.
Em entrevista,
Maria Luís Albuquerque justificou a sua participação na apresentação de
um livro de um autor de extrema-direita dedicado a Bolsonaro e Trump
socorrendo-se do mesmo paralelo. Este paralelo, que em Portugal atinge
os limites do insulto à nossa memória coletiva e àqueles que deram a
vida contra a ditadura que realmente existiu em Portugal, serve para
romper o cordão sanitário com a extrema-direita. Diz que é tão legítimo o
PS conversar com o PCP e o BE como o PSD e o CDS conversarem com o
Chega, o PNR ou o que mais surja.
Naqueles
dias próximos do 25 de novembro houve dois homens que souberam pensar
para além de si mesmos. Temos dados suficientes para acreditar que
Álvaro Cunhal deu garantias de não resistência ao 25 de novembro,
percebendo que as forças dos comunistas não eram suficientes para
abortar o golpe sem um banho de sangue e que o processo estava a escapar
às mãos de todos, com riscos para o que tinha sido já conquistado. E
Melo Antunes, que teve um papel fundamental em impedir que aquele golpe
se transformasse num ato revanchista liderado pela direita saudosista
(onde se filiam muitos dos que querem cinicamente ressuscitar a data mas
nunca celebraram Abril), disse ao país que o PCP era fundamental para a
democracia. Os dois, um por interesse próprio outro por grandeza
política, souberam ler a realidade à luz do momento que viviam. Não o
souberam os deputados do PS que, através do voto favorável ou da
abstenção, cumpriram o papel de idiotas úteis numa reescrita da História
que pouco tem a ver com o que aconteceu há 44 anos. Não votaram em
1975, votaram em 2019.
in EXPRESSO, As escolhas do Editor,01/12/2019
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