Os extremos tocam-se? (I)*
Manuel Loff
Nas
análises que alguns comentaristas fazem sobre os resultados das
recentes eleições legislativas, e em especial sobre a votação no
“Chega”, surge frequentemente a ideia de que esse partido de
extrema-direita absorve votos anteriormente confiados à esquerda,
nomeadamente ao PCP. Mas não é isso que os dados concretos mostram.A
eleição de um deputado do Chega, à qual se tem associado
(precipitadamente) a mesma capacidade de expansão que o próprio Ventura
julga ter, tem motivado uma discussão sobre a irrupção
do “populismo” em Portugal. Começo por discordar do uso vulgar do
conceito: o que há é um nacional-populismo com traços evidentes de
neofascismo, uma cultura política ocidentalista contra as “ameaças” do
Sul do mundo, vindas de minorias descritas como “antiocidentais”,
presente na esfera política e cultural do Ocidente desde os anos 1990.
Não nasceu com Trump e Bolsonaro; é apenas o mais recente surto de uma
cultura política reacionária que, desde o início da era das massas,
perpassa o conjunto das direitas e que, em momentos
como o atual, ganha autonomia face aos seus partidos tradicionais, mas
que nunca deixou de estar dentro deles. Não foram descritos como
“populistas” nem de extrema-direita os 85 deputados do PSD e do CDS (80%
do total deles) que, em julho, denunciaram o “uso
doutrinário e ideológico” das “questões da identidade de género” feito,
segundo eles, pelo Ministério da Educação. E, contudo, o texto que
assinaram é em tudo semelhante aos discursos de Bolsonaro e Salvini.
Esta vaga de extrema-direita, comodamente descrita
como “populismo” para se poder dizer que o há de direita e de esquerda,
ambos representando uma mesma ameaça para a democracia (descrita como
se não fosse mais que uma fórmula UE+NATO+neoliberalismo), tem dado azo a
um discurso elitista sobre a participação
política das classes populares em que se integram expressões como os
“deploráveis” que Hillary Clinton dizia apoiarem, na campanha de 2016, o
candidato Donald Trump. (Discuti este tipo de discurso no capítulo “O
antipopulismo reacionário em Portugal” do livro
O Espectro dos Populismos, coordenado por Cecília Honório, 2018.) Vem
isto a propósito do artigo de sábado passado de Pacheco Pereira sobre o
Chega e a manifestação dos polícias. Segundo ele, “os polícias vêm dos
mesmos meios que hoje abandonam o Labour ou
os democratas americanos”, e sentem-se abandonados por uma esquerda que
era “tradicionalmente mais atenta à classe do que ao género, escolha
sexual ou raça”. Isto explicaria como o Chega teria ido “buscar votos
fora de Lisboa, em áreas que votavam à esquerda”.
Pacheco admite que tenha “tirado votos ao CDS e ao PSD [mas] o seu
potencial de crescimento não está na competição com esses partidos, mas
sim com o PCP, “o partido cujo eleitorado é mais sugado pelo Chega (…)
porque ambos partilham de uma proximidade natural
com aqueles que se sentem sem representação no sistema político”.
Insiste-se aqui na tese, que também tenho contestado, da transferência
direta de votos da esquerda (e dos comunistas em particular) para a
extrema-direita em França e Itália, por exemplo. Parece-me
haver aqui um erro de análise e um preconceito. O primeiro é sobre o
Chega ter “sugado” votos ao PCP. Dele tratarei agora. O segundo é esta
ideia subterrânea de que os politicamente “ressentidos” podem ter votado
CDU no passado (a “esquerda demagógica”, como
lhe chama a direita e alguns socialistas), mas hoje o fazem na
extrema-direita — e disto falarei na minha próxima crónica. O mapa da
concentração (ainda que raramente acima dos 5%) de votos da
extrema-direita (Chega+PNR) é não o dos melhores resultados da
CDU, mas o da concentração de afrodescendentes e imigrantes (freguesias
de Loures, Santa Iria de Azóia, Rio de Mouro, por exemplo) e o da maior
presença de comunidades ciganas no Alentejo (Elvas, Mourão), concelhos
onde a CDU obtém resultados abaixo da média.
Na Margem Sul, pelo contrário, o Chega só atinge os 2% no Montijo ou na
Moita, mas não em Setúbal, Almada ou no Barreiro, onde a CDU tem os
seus melhores resultados. Procurar ex-votantes comunistas no Chega é
partir da ilusão de que não havia direita em todos
estes territórios. O que o Chega atrai é voto de onde o próprio Ventura
saiu (PSD, talvez mais até do que CDS) e de antigos abstencionistas, um
eleitorado patriarcal zangado saído do armário do reacionarismo
histórico dos últimos anos à volta de temas como
os imigrantes inassimiláveis, a reivindicação da grandeza histórica e
da tradição (caça, tourada…), a denúncia da ideologia de género. O mapa
eleitoral do Chega é, portanto, o do racismo e da xenofobia. Comecemos
por reconhecer a existência destes e partamos
daqui para explicar a sua nova articulação política.
*Este artigo foi publicado no “Público”, 28.11.2019 texto de
odiario.info
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