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terça-feira, 31 de dezembro de 2019


Centenário de “A Batalha”

Foram homens de vontades livres e não levaram toda a vida a meditar

Participantes na Conferência Anarquista de Lisboa de 1925, entre os quais estão dois dos responsáveis editoriais de “A Batalha”: Manuel Joaquim de Sousa e Manuel da Silva Campos [nº28] <span class="creditofoto">Foto BNP</span>
Participantes na Conferência Anarquista de Lisboa de 1925, entre os quais estão dois dos responsáveis editoriais de “A Batalha”: Manuel Joaquim de Sousa e Manuel da Silva Campos [nº28] Foto BNP
O ano mais incrível que possamos imaginar começa com uma (breve) restauração da monarquia. O movimento operário une-se e funda um jornal que é o único a ser publicado quando os tipógrafos fazem greve. Um projeto fruto do sonho de um grupo de homens e mulheres de vontades livres, que não levaram toda a vida a meditar
Texto Manuela Goucha Soares
“Atualmente, soa mal falar em propaganda”, mas há cem anos, quando os operários portugueses lançaram o primeiro número do diário “A Batalha”, não era assim. Nessa época “o jornal impresso em papel era a única, a mais barata e a melhor forma moderna de difundir ideias e dar a conhecer ao público a verdade de certos factos, bem como alguma das suas possíveis interpretações”, lembra o investigador João Freire.
O primeiro número de “A Batalha” foi publicado a a 23 de fevereiro de 1919, um mês depois de ter começado em Versalhes (arredores de Paris) a Conferência de Paz de onde sairia um acordo entre os beligerantes na Grande Guerra, que só em Portugal fez oito mil mortos e deixou o país mergulhado numa imensa escassez de alimentos e inflação brutal.
Primeira página do 1º número do diário “A Batalha”, publicado a 23 de fevereiro de 1919 <span class="creditofoto"> Imagem BNP</span>
Primeira página do 1º número do diário “A Batalha”, publicado a 23 de fevereiro de 1919 Imagem BNP
A crise económica era tão intensa que pôs em causa o próprio regime republicano. A 19 de janeiro — um dia depois de a Conferência de Paz ter começado em Versalhes — a monarquia foi proclamada no Porto e em Lisboa, e declarado o estado de sítio no território continental. Na capital, a revolta foi subjugada cinco dias depois, no Porto prolongou-se até 13 de fevereiro.
É neste contexto de profunda crise económica, social e política que o movimento sindical operário sente necessidade de criar “um grande veículo informativo e propagandístico das suas insatisfações, realizações e objetivos”, lembra o investigador João Freire: “Já o haviam tentado em 1908 com o diário “A Greve”, que muito pouco durara. Após a queda da Monarquia [em 1910], o tipógrafo Alexandre Vieira conseguira pôr de pé o semanário “O Sindicalista”, que se aguentou razoavelmente bem, apesar das perseguições a que foi sujeito, sobretudo a partir de 1913, com o governo de Afonso Costa”.
Alexandre Vieira não desiste do seu objetivo, apesar de os anos da guerra terem sido “difíceis para o movimento sindical”, acrescenta João Freire. O mundo estava a mudar e os operários portugueses não ficaram totalmente indiferentes aos ideais anarco-sindicalistas nem à Revolução russa de 1917.
O custo de vida e as greves dominam a primeira página do diário “A Batalha” publicado a 11 de maio de 1919 <span class="creditofoto"> Imagem BNP</span>
O custo de vida e as greves dominam a primeira página do diário “A Batalha” publicado a 11 de maio de 1919 Imagem BNP
É no contexto deste ano quase único, e “particularmente convergente de vontades e ideias que, a 23 de fevereiro de 1919, saiu à rua o primeiro número de “A Batalha”, porta-voz da organização operária portuguesa”, sob a chefia editorial do tipógrafo Alexandre Vieira, explica João Freire.
A redação de “A Batalha” funcionava na Calçada do Combro, 38 - A, 2º andar, no Palácio Marim-Olhão. Este diário que queria ser de “grande tiragem e expansão” custava dois centavos, como quase todos os outros 14 títulos diários que então se publicavam na capital.
A I Guerra Mundial fizera disparar o preço do papel de jornal, que antes da conflagração custava oito centavos por quilo, e que um ano anos de surgir o diário operário já ultrapassava os 50.
Primeira página do número do diário “A Batalha”, publicado a 1 de maio de 1925 <span class="creditofoto"> Imagem BNP</span>
Primeira página do número do diário “A Batalha”, publicado a 1 de maio de 1925 Imagem BNP
Nos primeiros meses o jornal era propriedade da União Operária Nacional. Em finais em setembro de 1923, com a realização do congresso nacional operário em Coimbra, nasce a Confederação Geral do Trabalho (CGT), que assume a propriedade de “A Batalha”.
A primeira série da vida deste jornal lançado há cem anos foi publicada até 26 de maio de 1927, um ano depois do golpe que institui a Ditadura Militar e abre caminho ao Estado Novo. Chegou a tirar 20 mil exemplares, e nesta fase o matutino tinha entre quatro e oito páginas em “grande formato”, lembra João Freire. O diário era feito com “base no voluntariado de quase toda a redação, de uma parte do quadro de compositores tipográficos e da integralidade dos seus correspondentes e difusores da província, foi uma obra homérica, pode dizer-se”.
A 27 de maio de 1927, a sede de “A Batalha” foi assaltada, vandalizada e destruída. Os tempos eram adversos a ideais operários. Apesar disso o título manteve-se vivo, passou à clandestinidade, teve várias séries, uma editora de livros e opúsculos.
O título contou também com a colaboração regular do escritor Ferreira de Castro e do cartoonista Stuart Carvalhaes. E teve um hino com música do maestro Del-Negro e letra de João Black, de que reproduzimos os primeiros versos: “Surgindo vem ao longe a nova aurora /Que os povos há de unir e libertar/Desperta, rude escravo, sem demora/Não leves toda a vida a meditar”.
in EXPRESSO 30/12/2019

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