O
ano mais incrível que possamos imaginar começa com uma (breve)
restauração da monarquia. O movimento operário une-se e funda um jornal
que é o único a ser publicado quando os tipógrafos fazem greve. Um
projeto fruto do sonho de um grupo de homens e mulheres de vontades
livres, que não levaram toda a vida a meditar
Texto Manuela Goucha Soares
“Atualmente,
soa mal falar em propaganda”, mas há cem anos, quando os operários
portugueses lançaram o primeiro número do diário “A Batalha”, não era
assim. Nessa época “o jornal impresso em papel era a única, a mais
barata e a melhor forma moderna de difundir ideias e dar a conhecer ao
público a verdade de certos factos, bem como alguma das suas possíveis
interpretações”, lembra o investigador João Freire.
O
primeiro número de “A Batalha” foi publicado a a 23 de fevereiro de
1919, um mês depois de ter começado em Versalhes (arredores de Paris) a
Conferência de Paz de onde sairia um acordo entre os beligerantes na
Grande Guerra, que só em Portugal fez oito mil mortos e deixou o país
mergulhado numa imensa escassez de alimentos e inflação brutal.
A
crise económica era tão intensa que pôs em causa o próprio regime
republicano. A 19 de janeiro — um dia depois de a Conferência de Paz ter
começado em Versalhes — a monarquia foi proclamada no Porto e em
Lisboa, e declarado o estado de sítio no território continental. Na
capital, a revolta foi subjugada cinco dias depois, no Porto
prolongou-se até 13 de fevereiro.
É neste contexto
de profunda crise económica, social e política que o movimento sindical
operário sente necessidade de criar “um grande veículo informativo e
propagandístico das suas insatisfações, realizações e objetivos”, lembra
o investigador João Freire: “Já o haviam tentado em 1908 com o diário
“A Greve”, que muito pouco durara. Após a queda da Monarquia [em 1910], o
tipógrafo Alexandre Vieira conseguira pôr de pé o semanário “O
Sindicalista”, que se aguentou razoavelmente bem, apesar das
perseguições a que foi sujeito, sobretudo a partir de 1913, com o
governo de Afonso Costa”.
Alexandre Vieira não
desiste do seu objetivo, apesar de os anos da guerra terem sido
“difíceis para o movimento sindical”, acrescenta João Freire. O mundo
estava a mudar e os operários portugueses não ficaram totalmente
indiferentes aos ideais anarco-sindicalistas nem à Revolução russa de
1917.
É
no contexto deste ano quase único, e “particularmente convergente de
vontades e ideias que, a 23 de fevereiro de 1919, saiu à rua o primeiro
número de “A Batalha”, porta-voz da organização operária portuguesa”,
sob a chefia editorial do tipógrafo Alexandre Vieira, explica João
Freire.
A redação de “A Batalha” funcionava na
Calçada do Combro, 38 - A, 2º andar, no Palácio Marim-Olhão. Este diário
que queria ser de “grande tiragem e expansão” custava dois centavos,
como quase todos os outros 14 títulos diários que então se publicavam na
capital.
A I Guerra Mundial fizera disparar o preço do papel de jornal,
que antes da conflagração custava oito centavos por quilo, e que um ano
anos de surgir o diário operário já ultrapassava os 50.
Nos
primeiros meses o jornal era propriedade da União Operária Nacional. Em
finais em setembro de 1923, com a realização do congresso nacional
operário em Coimbra, nasce a Confederação Geral do Trabalho (CGT), que
assume a propriedade de “A Batalha”.
A primeira
série da vida deste jornal lançado há cem anos foi publicada até 26 de
maio de 1927, um ano depois do golpe que institui a Ditadura Militar e
abre caminho ao Estado Novo. Chegou a tirar 20 mil exemplares, e nesta
fase o matutino tinha entre quatro e oito páginas em “grande formato”,
lembra João Freire. O diário era feito com “base no voluntariado de
quase toda a redação, de uma parte do quadro de compositores
tipográficos e da integralidade dos seus correspondentes e difusores da
província, foi uma obra homérica, pode dizer-se”.
A
27 de maio de 1927, a sede de “A Batalha” foi assaltada, vandalizada e
destruída. Os tempos eram adversos a ideais operários. Apesar disso o
título manteve-se vivo, passou à clandestinidade, teve várias séries,
uma editora de livros e opúsculos.
O título contou
também com a colaboração regular do escritor Ferreira de Castro e do
cartoonista Stuart Carvalhaes. E teve um hino com música do maestro
Del-Negro e letra de João Black, de que reproduzimos os primeiros
versos: “Surgindo vem ao longe a nova aurora /Que os povos há de unir e
libertar/Desperta, rude escravo, sem demora/Não leves toda a vida a
meditar”.
Este jornal foi também e “sobretudo uma obra coletiva de vontades livres”.
in EXPRESSO 30/12/2019
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