Os extremos tocam-se? (II)*
Manuel Loff 14.Dic.19 Outros autores
A
preguiçosa e demagógica tese em causa não merece que se perca muito
tempo com ela. Mas a questão do comportamento eleitoral das classes
trabalhadoras exige reflexão, tanto mais que estudos sérios (neste caso
sobre a realidade britânica) apontam para que “as desigualdades de
classe relativamente à participação eleitoral tenham crescido
significativamente”, a tal ponto que se tornaram mais visíveis no campo
da participação que no da opção política.
A
tese de que os “populismos” engordam graças ao apoio daqueles que
Hillary Clinton chamava os “deploráveis”, que, de tão culturalmente
incapazes, perderam a batalha da globalização e, na sua raiva, votavam
antes numa esquerda demagógica e populista e agora votam na direita
populista, é de um simplismo preguiçoso e demagógico. Este gasto
discurso de que “os extremos se tocam” (António Barreto repete-o todas
as semanas nas páginas deste jornal), de que comunistas e fascistas são
iguais e que, por o serem, dividem entre si o apoio dos politicamente
“incompetentes”, é parte do (ainda mais velho) discurso liberal elitista
de que a cidadania é, não um exercício efetivador de direitos, mas um
processo de inculcação, no final do qual a maioria da sociedade (as
classes populares, isto é, os que trabalham mas que não devem sequer
decidir sobre o trabalho que fazem) adotam os valores e a mundivisão das
elites, reconhecendo-lhes o direito ao governo da sociedade; isto é, os
pobres aprendem a acreditar no que os ricos deles pensam, reconhecendo a
inferioridade inerente à sua “incompetência”. Antes de mais, o erro de
crer que o mapa do voto da extrema-direita reproduz o do voto comunista
e/ou da esquerda radical decorre de uma perceção irrealista de que os
operários vota(va)m quase todos à esquerda, como se todos fizessem
efetivamente uma opção política de classe, como se não houvesse voto de
direita no mundo operário e, sobretudo, no eleitorado popular do mundo
rural. Os estudos de sociologia eleitoral da extrema-direita que não se
limitam a procurar nos dados da realidade confirmação para o preconceito
elitista de que os trabalhadores pouco escolarizados passaram de um
extremo ao outro, têm mostrado como a extrema-direita se enraiza sempre
nos setores da pequena burguesia ameaçados de perda de estatuto
socioeconómico (pequenos proprietários, assalariados pessimistas),
atraindo numa segunda fase o voto punitivo de segmentos do mundo
suburbano desindustrializado, sobretudo entre os precários sem
enquadramento sindical e que recusam a identidade política construída à
esquerda pelas gerações operárias mais velhas. Em França, o mais
estudado dos casos de país com extrema-direita e PC fortes, é evidente a
não coincidência dos territórios de implantação de um e outro setores,
com a antiga Frente Nacional a disputar o voto tradicional da direita em
regiões ricas (Leste, Côte d’Azur) e deprimidas (resto da Provença, o
mundo rural) e a fracassar onde o PCF era mais forte (região parisiense,
Maciço Central e Limousin, salvo no Norte desindustrializado). A
precariedade, o medo permanente do desemprego, da deslocalização, da
desqualificação, instalou-se no mundo do trabalho ao mesmo tempo que se
procurou impor a ideia da irreversibilidade das grandes escolhas
económicas que aceleraram o crescimento da desigualdade e da pobreza. O
resultado lógico foi a abstenção de velhos e jovens trabalhadores
(sobretudo destes), agravada pelas crises das esquerdas — a de grande
parte dos partidos comunistas, que já começara antes da implosão dos
regimes do socialismo real mas que se agravou com esta; e a da
social-democracia, velozmente a caminho do mesmo neoliberalismo que a
expulsou do poder nos anos 80 e que levaria à sua bancarrota política
nos anos 2010. A crise dos sistemas de representação tem obrigado a que
voltemos a estudar a desigualdade social como fator decisivo no
comportamento político. O caso britânico é dos mais reveladores: depois
de o foco ter sido colocado durante muitos anos na quebra da
participação eleitoral, os estudos dos últimos anos verificaram que “as
desigualdades de classe relativamente à participação eleitoral cresceram
significativamente”, a tal ponto que se tornaram mais visíveis no campo
da participação que no da opção política (Heath, 2016). Neste sentido,
“a mudança principal [no comportamento eleitoral das classes
trabalhadoras] não é tanto a reemergência do voto de classe mas do
não-voto de classe” (Evans&Tilley, 2017), isto é, da abstenção de
classe. Para só falar de duas cidades, compare-se os 32% de abstenção
nas últimas eleições na freguesia lisboeta com mais alto rendimento
médio (Belém) com os 50% em Camarate, Unhos e Apelação (Loures); ou os
31% em Aldoar, Foz do Douro e Nevogilde e os 44% em Campanhã (Porto).
Afinal, o problema não é de extremos: é de desigualdade. É de fazer com
que quem se sente injustiçado desista de procurar justiça.
*Artigo publicado em “Público”, 12.12.2019
*Artigo publicado em “Público”, 12.12.2019
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