Revolta a bordo. O dia em que 300 escravos morreram e imensa mercadoria se perdeu ao largo de Angola
Ao
contrário das inúmeras rebeliões nas grandes fazendas das Américas, nos
navios de transporte de escravos registaram-se raríssimos tumultos.
Ainda assim há um que salta à vista, pelas enormes perdas humanas e
materiais que registou. Aconteceu ao largo de Angola no fim do século
XVIII, a bordo de um navio gerido por um traficante de escravos
português
Texto Cândido Domingues com Joana Beleza ILUSTRAÇÃO JOÃO CARLOS SANTOS
É
provável que já tenha ouvido falar da famosa rebelião de africanos
escravizados do navio espanhol La Amistad, que foi popularizada no filme
“Amistad”, de Steven Spielberg (1997). O contexto dessa batalha a bordo
de um navio foi o comércio de escravos entre África e as Américas,
negócio que movimentou milhões e fomentou a riqueza de impérios e nações
ao longo de mais de 400 anos.
Em mais de 36 mil
viagens foram transacionados mais de 12 milhões de africanos pelo
Atlântico. Uma economia complexa, na qual a mínima displicência dos
negociantes poderia levar a perder todo o investimento. Esse risco
induzia-os a aumentar o rigor e a brutalidade na fiscalização e controlo
das “cargas” ao longo das viagens. Essa foi, certamente, uma explicação
para haver números tão baixos de revoltas a bordo dos navios negreiros
europeus. Apenas 460 (1,3%) foram registadas, um número de facto muito
reduzido em comparação com as rebeliões de cativos muito comuns nas
cidades e nas grandes fazendas das Américas.
Em
todo o caso, os motivos para os africanos escravizados resistirem a
bordo eram múltiplos. Muitos tinham já conhecimento da escravização de
pessoas nas terras dos brancos, para alguns povos o mar significava a
travessia da vida para a morte (ainda que simbólica), outros poderiam
conhecer pessoas que nunca mais voltaram após a captura. Para mais, uma
vez embarcados, o calor, as péssimas condições de higiene, a tensão
psicológica e a violência alimentavam os ânimos rebeldes.
Infelizmente
existem poucos relatos que elucidem sobre os factos concretos relativos
às rebeliões ocorridas no quadro do tráfico negreiro português, mas
existem dois casos particularmente ilustrativos das revoltas nos navios
que transportavam escravizados entre a costa de África e o Brasil. A
maior parte das revoltas a bordo ocorria na costa africana ou próximo
dela, pois os escravizados tinham noção que quanto mais distantes
estivessem da costa, menores eram as probabilidades de retorno.
Foi
o que aconteceu em 1798 quando os africanos a bordo do navio Espera
Dinheiro se revoltaram na costa de Angola. Este navio negreiro pertencia
ao negociante de Lisboa José António Pereira, traficante que organizou
17 viagens negreiras, a maioria delas saídas de Lisboa. O ocorrido foi
significativo: levou à morte de 300 escravos e à destruição de toda a
mercadoria, cujo valor daria para comprar mais 700 africanos. Mas,
diferentemente dos desafortunados africanos, o negociante português José
Pereira estava a salvo, com os pés em território nacional.
Há
ainda o registo, no início do século XVIII, do caso de uma revolta de
escravos que conseguiram mesmo tomar o navio. Aconteceu em 1704, na Ilha
de Itaparica, em Salvador da Bahia, quando a embarcação foi tomada por
uma rebelião de africanos escravizados oriundos da Costa da Mina (atuais
Togo, Benim e sudoeste da Nigéria). Estavam a bordo 50 africanos que,
atentos ao momento favorável, se aproveitaram de um qualquer descuido da
tripulação, se sublevaram, tomaram o navio e fugiram pelas matas da
ilha. O capitão Manoel de Sá escreveu ao Governador da Bahia, D. Rodrigo
da Costa, mandando os primeiros capturados. Eram dez homens – um deles
faleceu assim que chegou, devido aos ferimentos - e seis africanas. Na
casa de um sargento-mor ficara uma mulher, pois começara a sentir as
dores do parto. O capitão não poderia colocar em risco a vida da escrava
resgatada, nem do filho que carregava. Afinal, a criança também seria
escravizada.
O artigo sobre revoltas em navios
negreiros é o sexto de uma série de 12 biografias de resistentes, que
pretende chamar a atenção do grande público para personagens, ou grupos
de pessoas, cujos combates num passado remoto são pouco conhecidos. E,
no entanto, as resistências que estas pessoas “sem voz” fizeram ao longo
da História são fundamentais para compreendermos os processos de
transformação social.
Estes artigos enquadram-se
num projeto de investigação europeu intitulado “RESISTANCE, Rebeliões e
resistência no Impérios Ibéricos, séculos XVI-1850”, coordenado por
Mafalda Soares da Cunha no CIDEHUS, Universidade de Évora, e conta com a
parceria da Casa da América Latina e do Expresso.
O
autor deste artigo é Cândido Domingues, doutorando em História e
professor destacado da UNEB - Universidade do Estado da Bahia.
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