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sábado, 14 de dezembro de 2019

Revolta a bordo. O dia em que 300 escravos morreram e imensa mercadoria se perdeu ao largo de Angola
Ao contrário das inúmeras rebeliões nas grandes fazendas das Américas, nos navios de transporte de escravos registaram-se raríssimos tumultos. Ainda assim há um que salta à vista, pelas enormes perdas humanas e materiais que registou. Aconteceu ao largo de Angola no fim do século XVIII, a bordo de um navio gerido por um traficante de escravos português
Texto Cândido Domingues com Joana Beleza ILUSTRAÇÃO JOÃO CARLOS SANTOS
É provável que já tenha ouvido falar da famosa rebelião de africanos escravizados do navio espanhol La Amistad, que foi popularizada no filme “Amistad”, de Steven Spielberg (1997). O contexto dessa batalha a bordo de um navio foi o comércio de escravos entre África e as Américas, negócio que movimentou milhões e fomentou a riqueza de impérios e nações ao longo de mais de 400 anos.
Em mais de 36 mil viagens foram transacionados mais de 12 milhões de africanos pelo Atlântico. Uma economia complexa, na qual a mínima displicência dos negociantes poderia levar a perder todo o investimento. Esse risco induzia-os a aumentar o rigor e a brutalidade na fiscalização e controlo das “cargas” ao longo das viagens. Essa foi, certamente, uma explicação para haver números tão baixos de revoltas a bordo dos navios negreiros europeus. Apenas 460 (1,3%) foram registadas, um número de facto muito reduzido em comparação com as rebeliões de cativos muito comuns nas cidades e nas grandes fazendas das Américas.
Em todo o caso, os motivos para os africanos escravizados resistirem a bordo eram múltiplos. Muitos tinham já conhecimento da escravização de pessoas nas terras dos brancos, para alguns povos o mar significava a travessia da vida para a morte (ainda que simbólica), outros poderiam conhecer pessoas que nunca mais voltaram após a captura. Para mais, uma vez embarcados, o calor, as péssimas condições de higiene, a tensão psicológica e a violência alimentavam os ânimos rebeldes.
Revolta num navio negreiro, in “Slavery Images: A Visual Record of the African Slave Trade and Slave Life in the Early African Diaspora”
Revolta num navio negreiro, in “Slavery Images: A Visual Record of the African Slave Trade and Slave Life in the Early African Diaspora”
Infelizmente existem poucos relatos que elucidem sobre os factos concretos relativos às rebeliões ocorridas no quadro do tráfico negreiro português, mas existem dois casos particularmente ilustrativos das revoltas nos navios que transportavam escravizados entre a costa de África e o Brasil. A maior parte das revoltas a bordo ocorria na costa africana ou próximo dela, pois os escravizados tinham noção que quanto mais distantes estivessem da costa, menores eram as probabilidades de retorno.
Foi o que aconteceu em 1798 quando os africanos a bordo do navio Espera Dinheiro se revoltaram na costa de Angola. Este navio negreiro pertencia ao negociante de Lisboa José António Pereira, traficante que organizou 17 viagens negreiras, a maioria delas saídas de Lisboa. O ocorrido foi significativo: levou à morte de 300 escravos e à destruição de toda a mercadoria, cujo valor daria para comprar mais 700 africanos. Mas, diferentemente dos desafortunados africanos, o negociante português José Pereira estava a salvo, com os pés em território nacional.
Há ainda o registo, no início do século XVIII, do caso de uma revolta de escravos que conseguiram mesmo tomar o navio. Aconteceu em 1704, na Ilha de Itaparica, em Salvador da Bahia, quando a embarcação foi tomada por uma rebelião de africanos escravizados oriundos da Costa da Mina (atuais Togo, Benim e sudoeste da Nigéria). Estavam a bordo 50 africanos que, atentos ao momento favorável, se aproveitaram de um qualquer descuido da tripulação, se sublevaram, tomaram o navio e fugiram pelas matas da ilha. O capitão Manoel de Sá escreveu ao Governador da Bahia, D. Rodrigo da Costa, mandando os primeiros capturados. Eram dez homens – um deles faleceu assim que chegou, devido aos ferimentos - e seis africanas. Na casa de um sargento-mor ficara uma mulher, pois começara a sentir as dores do parto. O capitão não poderia colocar em risco a vida da escrava resgatada, nem do filho que carregava. Afinal, a criança também seria escravizada.
O artigo sobre revoltas em navios negreiros é o sexto de uma série de 12 biografias de resistentes, que pretende chamar a atenção do grande público para personagens, ou grupos de pessoas, cujos combates num passado remoto são pouco conhecidos. E, no entanto, as resistências que estas pessoas “sem voz” fizeram ao longo da História são fundamentais para compreendermos os processos de transformação social.
Estes artigos enquadram-se num projeto de investigação europeu intitulado “RESISTANCE, Rebeliões e resistência no Impérios Ibéricos, séculos XVI-1850”, coordenado por Mafalda Soares da Cunha no CIDEHUS, Universidade de Évora, e conta com a parceria da Casa da América Latina e do Expresso.
O autor deste artigo é Cândido Domingues, doutorando em História e professor destacado da UNEB - Universidade do Estado da Bahia.

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