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domingo, 13 de setembro de 2020

 


 

As ideias e a prática

 

“Os filósofos apenas interpretaram o mundo diferentemente, importa é transformá-lo”. Tenho certeza de que todos vocês conhecem esta frase e já meditaram sobre ela em algum momento. Talvez não haja forma melhor de começar um curso intitulado “Reler Marx hoje”, ministrado exatamente em um Departamento de Filosofia, do que partir da discussão desta conhecida afirmação presente nas “Teses sobre Feuerbach”. Afirmação muitas vezes lida como um convite a um certo primado da prática e da ação sobre o que seria entendido como a contemplação teórica do mundo produzida pela filosofia e a distância pretensamente imposta por seus conceitos. Prática que, ao contrário da multiplicidade de visões do mundo própria aos filósofos com seus conflitos dissonantes e incessantes de interpretação, seria conjugada no singular. Uma prática una, uma maneira de transformar o mundo, contra a multiplicidade de interpretações dos filósofos. Como se encontrássemos enfim a realização deste paradoxal desejo eminentemente filosófico, desejo milenar, de encontrar uma ação que nos colocaria para além das águas incertas dos conflitos de interpretação.

Se escolhi começar por esta afirmação, escrita em um rascunho nunca publicado em vida por Marx, sem destinação certa, mas apenas postumamente editado por Engels, que o anexará ao volume intitulado A ideologia alemã, é por ela colocar em questão não apenas o estatuto da filosofia enquanto discurso crítico, ao menos até o momento em que Marx aparecer, mas também por ela problematizar o estatuto do próprio discurso de Marx. Afinal, que tipo de textos são estes que leremos durante um semestre? O capital, O 18 do brumário de Luis Bonaparte ainda são textos de filosofia ou são textos de um outro regime discursivo, mais próximo da intervenção política e da análise econômica? Marcuse afirmava: “todos os conceitos filosóficos da teoria marxista são categorias econômicas e sociais, enquanto que todas as categorias econômicas e sociais de Hegel [a figura por excelência do discurso filosófico, ao mesmo no contexto alemão do século XIX] são conceitos filosóficos. Mesmo os primeiros trabalhos de Marx não são filosóficos. Eles expressam a negação da filosofia, embora o façam em linguagem filosófica”.

Mas estaria Marcuse totalmente certo? Expressar a negação da filosofia em linguagem filosófica não seria ainda, de certa forma, fazer filosofia? E não deveríamos dizer o mesmo desta operação peculiar que consiste em encontrar expressão de problemas filosóficos em categorias econômicas e sociais?  Ou seja, ao ler Marx encontraremos textos de quem já teria deixado para trás a filosofia, de quem sai a pregar o abandono da filosofia no interior de uma crítica geral da ideologia, ou são eles uma certa forma de “realizar a filosofia”?

Partamos então de uma hipótese. Ela será testada no decorrer do curso, servirá de guia para nossas leituras e aos poucos mostrará sua pertinência ou não. A hipótese se enuncia da seguinte maneira: talvez, para ler Marx hoje, devamos compreender como seus textos não representam exatamente um abandono, mas uma realização insurrecional da filosofia. “Insurrecional” por ser uma forma de realização que obriga a situação atual que configura o mundo presente a se transformar, a devir outro (verändern) permitindo a realização de uma emancipação que, como espero mostrar no interior deste curso, é muito mais complexa do que estamos normalmente dispostos a aceitar. Pois tal emancipação é incompreensível sem o recurso a considerações filosóficas sobre a “essência humana” que estarão claramente presentes no jovem Marx e que, contrariamente ao que acreditam alguns, nunca serão abandonadas. 

Recordemos rapidamente o contexto intelectual no qual Marx se encontra ao escrever suas Teses sobre Feuerbach. Estamos em 1845-46. Desde a morte de Hegel, em 1831, o pensamento alemão se vê assombrado pelo tema do fim da filosofia, o que neste contexto significa, de forma mais específica, assombrado pela necessidade de sair das “abstrações” hegelianas e suas reconciliações pretensamente conservadoras por serem aparentemente formais. Pós-hegelianos como Kierkegaard, Feuerbach, Stirner, Marx tem em comum ao menos a crença de que deveríamos abandonar o discurso filosófico (representado aqui pelo sistema hegeliano) a fim de caminhar em direção à compreensão concreta dos processos e indivíduos. Que tal caminho se dê pela recuperação da religião revelada como modelo de libertação do indivíduo (Kierkegaard), pela afirmação do indivíduo como única existência real (Stirner) ou pela denúncia da teologia ainda presente na filosofia a fim de reinstalar o pensamento em um modelo peculiar de materialismo empirista (Feuerbach), o que temos é a enunciação de uma tarefa, que Marx fará sua, de abandono ou realização da filosofia através do retorno às condições concretas. É ela que lhe levará, por exemplo, a criticar de forma acerba o espiritualismo do idealismo próprio a jovens hegelianos como Edgar e Bruno Bauer, Carl Reinhardt, Franz Szeliga, entre outros.

Este campo do pós-hegelianismo é o campo de Marx. Ele se divide claramente sobre o tema do caminho a seguir diante do reconhecimento hegeliano de que, nos “tempos modernos”, o Espírito “perdeu” a imediatez de sua vida substancial, ou seja, nada lhe aparece mais como substancialmente fundamentado em um poder, de natureza religiosa, capaz de unificar as várias esferas sociais de valores. Divide-se assim o campo dos pós-hegelianismo em dois (a direita e a esquerda) levando em conta inicialmente o problema do destino da experiência religiosa e suas expectativas de unificação e reconciliação: “Da religião cristã, a direita (Goeschel, Gabler, Bruno Bauer) adota positivamente, de acordo com a distinção hegeliana entre o ‘conteúdo’ e a ‘forma’, o conteúdo, enquanto que a esquerda submetia à sua crítica tanto a forma da representação religiosa quanto seu conteúdo”, de onde se segue a necessidade da guinada materialista aberta por Feuerbach e seguida por Marx.      

Neste contexto, Marx irá expor a singularidade de sua via ao escrever, em suas Teses sobre Feuerbach que não se sai da filosofia através da recuperação de um materialismo no qual a realidade é apreendida apenas sob a forma do objeto ou da intuição (Anschauung), como quer Feuerbach, nem (e este será um tema maior de A ideologia alemã) através da elevação do indivíduo à condição de perspectiva concreta insuperável, como quer Stirner. O materialismo é a via de afastamento da filosofia, mas trata-se de qualificá-lo melhor, de defini-lo como perspectiva que nos permite apreender a realidade como “atividade humana sensível” (sinnlich menschlische Tätigkeit

Curso Reler Marx Hoje - Vladimir Safatle 2016

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