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sexta-feira, 5 de agosto de 2022

 

Ludwig Feuerbach e o fim da filosofia clássica alemã


Por RICARDO MUSSE*

Considerações sobre o livro de Fredrich Engels

O novo materialismo preconizado por Engels, ancorado principalmente nos progressos das ciências da natureza e da história, tal como apresentado em 1878 no livro Anti-Dühring, dispensa o concurso de um saber superior, “especialmente consagrado a estudar as concatenações universais”. Na medida em que esse estudo era considerado a tarefa prioritária da filosofia, o último Engels reatualiza, em nova chave, o topos essencialmente jovem-hegeliano a que, junto com Marx, aderira na década de 1840: a superação (aufheben, isto é, ao mesmo tempo, negação e realização) da filosofia.[i]

Essa superação – tratada de passagem no Anti-Dühring, dedicado sobretudo à “exposição positiva” da dialética pela via da determinação dos seus novos suportes – assume uma importância e uma dimensão maior em um texto dez anos posterior, Ludwig Feuerbach e o fim da filosofia clássica alemã, cujo assunto principal, sintetizado no título, é um acerto de contas do materialismo com a filosofia. É ali que as posições de Engels acerca da ciência, da filosofia e de suas mútuas relações articulam-se como um conjunto mais coerente e ordenado, o que não deixa de salientar e cristalizar as ambiguidades e contradições de sua concepção.

 

1.

Os quase vinte anos que decorrem entre a morte de Hegel (1831) e a fracassada revolução de 1848 são marcados, no pensamento alemão, pela convicção de que se vivia um período decisivo da história humana, onde a verdade só poderia ser encontrada e posta em prática no território delimitado pela “existência material concreta do homem”. Os princípios abstratos do saber filosófico, rejeitados em sua transcendência, foram transformados em fundamentos da ação emancipadora, pois doravante cabia aos próprios homens “determinar a marcha racional da história”.[ii] A promessa de efetivação temporal da razão e da liberdade individual, inscrita na filosofia hegeliana sob a égide da consumação que anunciava o fim da filosofia, torna-se então uma tarefa para o porvir. Enquanto possibilidades históricas concretas, diferentes modalidades e concepções dessa “realização” rivalizam a partir de um solo comum: a negação da filosofia.

Há muito abandonada, essa questão retorna de chofre, sob nova roupagem, ao corpus teórico do marxismo em 1888. Engels, no afã de produzir uma “exposição concisa e sistemática” das relações deste com a filosofia de Hegel, além de salientar a importância da influência de Ludwig Feuerbach na formação do materialismo histórico, apresenta o marxismo como um dos resultados da “decomposição” da escola hegeliana. Uma vez ressaltados esses vínculos, para evitar a interpretação que insere o marxismo, como uma escola a mais na série dos sistemas filosóficos, Engels vê-se forçado a destacar a especificidade da filosofia dos jovens hegelianos e, por conseguinte, a do próprio Hegel.[iii]

Na medida em que privilegia, na sua compreensão do jovem-hegelianismo, a filosofia de Ludwig Feuerbach,[iv] apresentado como o elo conclusivo de uma cadeia que se inicia com David Strauss e passa por Bruno Bauer e Max Stirner – abandonando qualquer referência àqueles autores, como Moses Hess, Arnold Ruge ou Cieszkowski, cuja preocupação política é mais explícita[v] –, Engels desloca a questão da “realização prática” da filosofia para um segundo plano. A superação da filosofia passa a ser exposta como uma desintegração, isto é, como um processo que se desenrola no próprio campo desse saber.

Crítica retrospectiva, a análise de Fredrich Engels desqualifica o pensamento de Ludwig Feuerbach (a partir de suas premissas filosóficas, em particular do seu materialismo) pela via da comparação de suas realizações com os feitos do marxismo. Adota, porém, ao mesmo tempo, uma atitude condescendente, pois transforma o adversário de outrora, ferozmente combatido em A ideologia alemã, em momento necessário de um percurso intelectual e histórico.

Nessa versão, a restauração feuerbachiana do materialismo teria exercido, inicialmente, um papel produtivo. Ao ressaltar a independência da natureza em relação à filosofia, Feuerbach teria desatado o nó forjado pela mistura jovem-hegeliana de materialismo francês e hegelianismo, o que possibilitou, entre outras coisas, a crítica levada a cabo por Marx e Engels em A sagrada família.

Feuerbach, entretanto, não teria desenvolvido plenamente as potencialidades abertas por sua filosofia. Sua trajetória, descrita por Engels como a marcha de um hegeliano pouco ortodoxo para o materialismo, deteve-se diante da tarefa de superar (“destruindo criticamente sua forma, mas conservando o novo conteúdo adquirido por ela”) a filosofia de Hegel.

Assim, uma vez quebrado o sistema, a rejeição integral do legado de Hegel conduziu Ludwig Feuerbach de volta às posições do materialismo francês do século XVIII. Prisioneiro de uma versão mecânica e anti-histórica, não conseguiu desenvolver seu materialismo, pois não o aplicou nem às ciências da natureza, nem ao conhecimento histórico, abrindo caminho para a reintrodução do idealismo em seu pensamento (principalmente nos campos da filosofia da religião e da ética). É essa mistura, a convivência de tendências materialistas e idealistas, que configura sua filosofia como um momento de transição, como um elo intermediário entre a filosofia idealista de Hegel e a concepção materialista da história.

A íntegra desse percurso desdobra-se, segundo Engels, por meio da convergência – pelo menos no que tange à superação da filosofia – de duas linhagens inicialmente antagônicas: a idealista, caracterizada pela afirmação do caráter predominante do espírito, e a materialista, que enfatiza a primazia da natureza. Os sistemas idealistas foram se impregnando (em decorrência do esforço, panteísta, para conciliar espírito e natureza) de um conteúdo cada vez mais material, até o ponto em que se tornaram, com o sistema de Hegel, um “materialismo posto de cabeça para baixo de forma idealista”. O materialismo, por sua vez, percorreu uma série de fases, mudando sucessivamente de forma conforme as últimas descobertas no terreno das ciências naturais e, desde Marx, no campo da história.

Para compreender o sentido dessa convergência, ou melhor, o modo como Engels concilia tendências – por definição – opostas, torna-se necessário examinar alguns dos pressupostos dessa aproximação, à primeira vista desconcertante e paradoxal.

A confluência entre o giro em direção ao materialismo (efetivado por meio da transmutação do idealismo e de um refinamento conceptual do materialismo, bem como de um cruzamento, decorrente da incorporação, ainda que modificada, do método de Hegel pelo marxismo) e a negação da filosofia apoia-se, em última instância, na determinação do conceito de filosofia pelo idealismo alemão, ou melhor, na tese difundida por Schelling e Hegel de que “toda e qualquer filosofia é idealismo”.[vi]

A adesão de Engels à definição idealista de filosofia, além de lhe permitir associar o materialismo com o fim da filosofia, possibilita-lhe também levar a termo uma operação extremamente complicada: a justificação da incorporação, pela concepção materialista da história, do conteúdo material da filosofia hegeliana. Nesse sentido, sua primeira providência é minimizar o papel desempenhado pelo conceito de absoluto em Hegel. Assim, em lugar de ressaltar que tal associação, a unificação de filosofia e idealismo, só se sustenta a partir do pressuposto e do ponto de vista do absoluto, Engels mantém o resultado, a identidade que lhe convém, recusando a premissa, o momento conceptual cujo centro é o absoluto.[vii]

Ao mesmo tempo em que descarta essa interpretação convencional, Engels ressalta a contradição desvelada pelo debate intelectual alemão das décadas de 1830-40 acerca da célebre passagem do Prefácio à Filosofia do direito – “tudo o que é real é racional; e tudo o que é racional é real”. Tanto conservadores quanto revolucionários reivindicaram (segundo Engels, não sem razão) essa frase como corroboração da validade de sua interpretação particular do pensamento de Hegel e como uma espécie de aval de sua postura religiosa e política.

Por um lado, quando se diferencia, com Hegel, “real” de “existente”, atendo-se também ao caráter histórico das formas sociais, a “realidade” torna-se sujeita à corrosão em um processo incessante que a converte, no decorrer do tempo, em uma sucessão de resíduos irracionais, destituídos de necessidade e, portanto, do direito à existência. Intrínseco à dialética, predomina o aspecto revolucionário: “A proposição da racionalidade de todo o elemento efetivo real dissolve-se, segundo todas as regras do método de pensar de Hegel, nesta outra: tudo o que existe é digno de perecer” (Engels, Ludwig Feuerbach e o fim da filosofia clássica alemã, p. 23).

Mas também é possível, por outro lado, sem trair a Hegel, privilegiar o vínculo interno de seu conceito de realidade com a noção de necessidade, o que legitimaria, pela atribuição de razão ao existente, determinadas formas sociais e de conhecimento, inclusive o Estado prussiano. Tal dualidade, inscrita no cerne da filosofia de Hegel, deriva da contradição entre o método (anti-dogmático, avesso a verdades absolutas) e as necessidades internas do sistema que possibilitaram a reintrodução do dogmatismo, isto é, a exigência (para Engels inerente a qualquer projeto sistemático) de completar a ordenação do material adotando como fecho uma espécie qualquer de verdade absoluta.[viii]

Na intepretação de Engels, o papel de destaque atribuído por Hegel ao sistema decorre sobretudo de seu idealismo. Não propriamente no sentido de que se trata de uma forma determinada de articulação do material (isto é, de uma relação específica entre conceitos e dados, teoria e fatos, lógica e história, a priori e a posteriori) e, portanto, de uma opção entre outras, mas de um atributo essencial de todo e qualquer procedimento filosófico. Diz Engels: “Para todos os filósofos é precisamente o “sistema” o elemento perecível, e isto justamente por decorrer de uma necessidade imperecível do espírito humano: a necessidade de superar todas as contradições. Mas, se todas as contradições são eliminadas de uma vez por todas, atracamos na assim chamada verdade absoluta: a história universal está no fim e, no entanto, deve continuar, embora não lhe reste mais nada para fazer – portanto, uma nova contradição insolúvel” (Engels, Ludwig Feuerbach e o fim da filosofia clássica alemã, p. 31).[ix]

O próprio método de Hegel (na medida em que concebe a natureza, a história e o mundo do espírito como um processo incessante de transformações e mudanças) coloca em xeque a pretensão de sua filosofia em se apresentar como resumo e compêndio de uma verdade absoluta, mesmo que sob a forma da totalidade de um processo lógico e histórico.[x] Hegel limita a aplicação da dialética ao autodesenvolvimento do conceito, isto é, a um movimento que, segundo Engels, existe e se “processa desde a eternidade, não se sabe onde, mas, em todo caso, independentemente de qualquer cérebro humano pensante”.[xi]

Para eliminar essa “distorção ideológica”, para se livrar dessa “crosta idealista”, resgatando o caráter revolucionário próprio do método, basta voltar “a apreender materialisticamente os conceitos da nossa cabeça como imagens derivadas de coisas efetivas, em vez de apreender as coisas efetivas como imagens derivadas deste ou daquele estágio do conceito absoluto” (id., ibid., p. 91). Essa transcrição da dialética do conceito para a condição de “reflexo consciente do movimento dialético do mundo efetivo”, ou seja, da natureza e da história; a consideração materialista da filosofia hegeliana, parece suficiente para repor a dialética “da cabeça sobre a qual estava, novamente sobre os pés” (id., ibid.).

As condições dessa inversão seriam, por conseguinte, em um mesmo movimento, tanto o abandono do invólucro, “o sistema universal e compacto, definitivamente plasmado”, no qual Hegel pretenderia enquadrar as ciências da natureza e da história, quanto a supressão da própria filosofia: “… estará também no fim toda a filosofia no sentido em que a palavra é conhecida até hoje. Abandona-se a ‘verdade absoluta’ inalcançável por essa via e por cada um individualmente e, em troca perseguimos as verdades relativas alcançáveis pela via através das ciências positivas e da conexão dos seus resultados por meio do pensamento dialético. Com Hegel, encerra-se a filosofia em geral. Por um lado, porque ele reuniu em seu sistema, do modo mais grandioso, todo o desenvolvimento da filosofia; por outro, porque, ainda que inconscientemente, mostra-nos o caminho para fora desse labirinto de sistemas em direção ao conhecimento positivo e efetivo do mundo (id., ibid., p. 33).[xii]

A tarefa proposta por Engels engloba apenas a “destruição crítica da forma”. Livrar-se da crosta filosófica, prescindir dessa “ciência das ciências que parece flutuar sobre as demais ciências particulares resumindo e sintetizando-as”, não significa jogar fora o conteúdo, a riqueza enciclopédica da obra de Hegel. Apesar das construções às vezes arbitrárias, imposição do sistema, o “tesouro de erudição” que recheia seus livros deve ser incorporado ao conhecimento ordenado do mundo, agora organizado, com a autonomia das disciplinas específicas, em novo patamar.

 

2.

Na linha evolutiva da outra vertente, a materialista (garantia antecipada da convergência pressuposta), uma outra herança da filosofia desempenha papel central, o método dialético. Tomada enquanto “ciência das leis gerais do movimento, tanto do mundo exterior como do pensamento humano”, alçada à condição de um conjunto separado de leis, a dialética, transposta de método filosófico em científico, torna-se a metodologia própria do “conhecimento positivo e efetivo do mundo”. No terreno das ciências naturais, ao longo do século XIX, o surgimento de novas especialidades, a fisiologia, a embriologia, a geologia; as descobertas decisivas da célula, da transformação da energia e da evolução das espécies teriam, segundo Engels, aberto caminho para uma nova concepção de natureza que a aproxima dos processos de desenvolvimento histórico. Isto acarretou uma profunda modificação desses saberes, que ultrapassando o estágio de meras “ciências coletoras” – voltadas para o estudo dos objetos (vivos ou mortos) como coisas prontas –, tornaram-se “ciências ordenadoras” – dedicadas ao estudo dos “processos, da origem e do desenvolvimento dessas coisas e da conexão que vincula esses processos naturais em um grande todo” (id., ibid., p. 95).

A preocupação com a conexão dos fenômenos naturais dentro de um determinado domínio, mas também entre as diferentes especialidades, a visão de conjunto daí decorrente impõem espontaneamente, mesmo a cientistas formados na tradição “metafísica”, a interpretação dialética da natureza. O encadeamento dos resultados desses diversos saberes já formaria, na avaliação de Engels, um sistema da natureza sólido o suficiente para liquidar a venerável filosofia da natureza.

O estudo histórico da sociedade, ou melhor, a investigação das atividades humanas, sob a influência das descobertas de Karl Marx, que põe fim à filosofia da história, também passou por um processo semelhante em que, apesar das diferenças entre os agentes (aqui homens dotados de consciência que agem em busca de determinados fins sob o impulso da reflexão ou da paixão, lá fatores cegos e inconscientes que atuam um sobre os outros em conexão recíproca), ressaltou-se a aplicabilidade das mesmas leis (dialéticas) gerais imanentes.[xiii]

A superação de tantos antagonismos lógicos, o gradualismo, sem descontinuidades, da passagem do idealismo ao materialismo, do método filosófico ao científico, do sistema filosófico ao conhecimento positivo e efetivo do mundo, a que chegam de forma independente tanto a série idealista quanto a materialista, ancoram-se, em larga medida, em uma faceta peculiar do desenvolvimento histórico: “Os filósofos, porém, nesse longo período de Descartes a Hegel e de Hobbes a Feuerbach, de modo algum foram impelidos a avançar, como acreditavam, apenas pela força do puro pensamento. Pelo contrário. O que, na verdade, os impeliu a avançar foi, nomeadamente, o poderoso e sempre mais veloz progresso impetuoso das ciências naturais e da indústria (id., ibid., p. 49).

A ênfase otimista (inclusive no terreno das implicações sociais) no desenvolvimento das forças produtivas resulta de uma concepção de prática que privilegia, como fatores decisivos nesse processo, a “experimentação e a indústria”. No plano teórico, o apelo a tal par seria suficiente não só para refutar o agnosticismo epistemológico de Kant (centrado na famigerada coisa-em-si), mas também para contestar “todas as outras manias filosóficas”.[xiv]

Posto isso, não é de todo descabido dizer que o último Engels, apesar de ressaltar unicamente a negação da filosofia, mantém-se fiel ao lema jovem-hegeliano de realização da filosofia. Na verdade, o que se modificou substancialmente entre A Sagrada família (1844) e Ludwig Feuerbach e o fim da filosofia clássica alemã (1888) foi a concepção de prática, que adquiriu contornos cada vez menos políticos-sociais (ou, caso se prefira, subjetivos), não o projeto de realizar a filosofia pela via da prática.

*Ricardo Musse é professor do Departamento de Sociologia da USP. Organizador, entre outros livros, de China contemporânea: seis interpretações (Autêntica).

Referência


Fredrich Engels. Ludwig Feuerbach e o fim da filosofia clássica alemã. Tradução: Vinicius Matteucci de Andrade Lopes. Edição bilíngue. São Paulo, Hedra, 2020, 170 págs.

 

Notas


[i] O jovem Engels, em textos anteriores à redação de A situação da classe trabalhadora na Inglaterra (1844), definia o comunismo, ao qual aderira antes de Marx, como uma “derivação, uma conclusão inevitável” da filosofia alemã (veja Stedman Jones, “Retrato de Engels” p. 396-402). Mesmo nesse livro, de 1845, segundo o próprio Engels, ainda se podem encontrar, bem visíveis, “as marcas da filosofia clássica alemã” (Engels, Prefácio de 1892 a A situação da classe trabalhadora na Inglaterra”, p.125).

[ii] Confira Marcuse, Razão e revolução, p. 242-3 e Arantes, Ressentimento da dialética, p. 372.

[iii] É possível, tendo em vista este conjunto de questões, redimensionar o impacto sobre a tradição marxista da publicação em 1932, na Marx-Engels Gesamtausgabe, dos Manuscritos econômico-filosóficos (1844) de Karl Marx. Mais que a descoberta de um continente novo como, às vezes, foram apresentados, trata-se antes da recuperação de um material decisivo para a discussão de tópicos essenciais – “a origem”, “o sentido da teoria do socialismo científico”, a “relação entre Marx e Hegel” (cf. Marcuse, “Novas Fontes para a Fundamentação do Materialismo Histórico”, p. 09) – colocados em pauta pelo Ludwig Feuerbach de Engels e retomados, em chave mais ampla, por História e consciência de classe, de György Lukács.

[iv] A presença de Feuerbach já no título do livro obviamente não decorre apenas do fato de o texto ter sido composto originalmente como um comentário, encomendado pela revista Neue Zeit, do livro Ludwig Feuerbach de C. N. Starcke.

[v] O que causa mais estranheza é a ausência de qualquer menção a Moses Hess de cujo comunismo Engels foi adepto na juventude. Sobre a relação de Marx e Engels com Hess, Ruge e Cieszkowski veja Cornu, Karl Marx et Friedrich Engels, t. 1, p. 132-287, t. 2, p. 01-105 ou então Hook, La genesis del pensamiento filosofico de Marx, p. 161-206 e 233-72.

[vi] Diz Schelling: “Se determinamos a filosofia em seu todo segundo aquilo no qual ela intui e expõe tudo, segundo o ato-de-conhecimento absoluto, do qual mesmo a natureza só é, por sua vez, um dos lados, segundo a ideia de todas as ideias, então ela é idealismo” (Schelling, Exposição da ideia universal da filosofia em geral e da filosofia-da-natureza como parte integrante da primeira, p. 52). Já para Hegel a “proposição de que o finito é ideal constitui o idealismo. O idealismo da filosofia consiste apenas nisso: não reconhecer o finito como o verdadeiro existente. Cada filosofia é essencialmente um idealismo, ou pelo menos o tem como seu princípio e o problema consiste só [em reconhecer] em que medida este princípio se acha efetivamente realizado. […] A oposição entre a filosofia idealista e a realista é destituída de significado. Uma filosofia que atribui à existência finita um ser verdadeiro, último e absoluto, não merece o nome filosofia” (Hegel, Ciencia de la lógica, p. 136).

[vii] A singeleza dessa operação não evitou os riscos da má-compreensão, pelo contrário. Colletti acusou Engels (e com ele, toda uma tradição do marxismo ocidental) de se apoiar em uma filosofia (idealista) do absoluto (confira Colletti, Il marxismo e Hegel, pp. 99-111). Outros, como David McLellan, acusam Engels de ter substituído o conceito de “espírito” pelo de “matéria” como absoluto (Cf. McLellan, As ideias de Engels, p. 59).

[viii] É desnecessário lembrar que a questão do “absoluto”, descartada tão facilmente em outros momentos, retorna aqui, mesmo que pelo porão (Engels trata mais extensamente do caráter dogmático das verdades absolutas em Anti-Dühring, pp. 71-80).

Ao acusar Hegel de dogmatismo, Engels, mais uma vez, é tributário do vocabulário, e em parte também dos procedimentos, do Idealismo Alemão. Este, desde Kant, sempre aplicou o termo “dogmatismo” na identificação de “consensos” preestabelecidos, que toma como os alvos prediletos da tarefa crítica.

[ix] Para o esclarecimento de alguns dos fatores atuantes nessa identificação, eminentemente idealista, entre sistema e filosofia cf. Adorno, Negative Dialektik, p. 31-39.

[x] Cf. Engels, Anti-Dühring, p. 23.

[xi] Cf. Engels, Anti-Dühring, p. 89.

[xii] Em nenhum momento Engels diferencia a sua dialética, tal como exposta no Anti-Dühring, da dialética hegeliana tal como é apresentada em Ludwig Feuerbach…, a não ser no que tange ao invólucro (materialista ou idealista). A par disso, é praticamente impossível distinguir o que diz acerca da dialética hegeliana das definições que oferece da versão materialista.

[xiii] Andrew Arato, em “A Antinomia do Marxismo Clássico: Marxismo e Filosofia” (pp. 90-2), salienta que a versão engelsiana da dialética, ao não conceber a “substância como sujeito”, mostra-se despreparada para explicar a história. Essa limitação da dialética engelsiana, no entanto, não parece suficiente para sustentar uma outra afirmação sua – a de que esse marxismo restabeleceria “o triunfo da natureza sobre a história”. Mais cauteloso, Fetscher acusa Engels de aproximar o processo histórico e o processo natural pela generalização, para ambos, de uma mesma dialética. Segundo ele, o “paralelismo entre natureza e sociedade leva a uma negligência do ‘momento consciente’ no processo histórico” (id., Karl Marx e os marxismos, p. 164).

[xiv] Fetscher (Karl Marx e os marxismos, pp. 161-2) localiza aí, na ancoragem nas ciências naturais dessa tentativa de suplantar a filosofia, os germes do marxismo industrializante. O projeto do último Engels, totalmente distinto da transformação coletiva que Marx prenunciava na expressão “realização da filosofia”, desembocaria em um “processo infinito de conhecimento nas ciências naturais e na produção material” cujas consequências políticas mais visíveis seriam o desvio da tarefa de “libertação da humanidade conscientizada no proletariado para a liberação das tendências de expansão das forças produtivas”.


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