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quarta-feira, 24 de agosto de 2022

Dois trabalhos académicos sobre a Teoria do Valor de Marx. Registe-se o didatismo conseguido do primeiro texto.

 

A Teoria do Valor: significado, magnitude e formas


Apresentação

O presente trabalho é um esforço de sistematização e apresentação da teoria do valor tal como é discutida na obra O Capital (1867) de Marx. Sua finalidade inicial era de servir ao fim exclusivamente pessoal de ser uma ferramenta de estudo do pensamento econômico marxista. Entendemos, porém, a importância didática de tal ferramenta. Acreditamos que ele possa contribuir de alguma maneira para estudantes universitários e outras pessoas que, assim como nós, estão interessados em se iniciar na investigação da história econômica. A teoria do valor é o pilar fundamental de toda teoria econômica marxista, e, segundo o próprio Marx, encontra-se nela a sua maior dificuldade. [1] Assim, antes de realizarmos uma análise dos conceitos e material que compõem a ciência econômica, apresentamos esse estudo inicial sobre o valor.

Valor-de-uso e valor; os dois fatores da mercadoria

No primeiro capítulo de sua obra O Capital, Marx propõe iniciar sua investigação através da análise da mercadoria. Isto porque, “A riqueza das sociedades onde rege a produção capitalista configura-se em ‘imensa acumulação de mercadorias’, e a mercadoria, isoladamente considerada, é a forma elementar dessa riqueza” [2].

Valor-de-uso

A mercadoria é, em primeiro lugar, “um objeto externo, uma coisa que, por suas propriedades, satisfaz necessidades humanas, seja qual for a natureza, a origem delas, provenham do estômago ou da fantasia”. Essa coisa útil pode ser considerada “segundo qualidade e quantidade” [3].

“A utilidade de uma coisa faz dela um valor-de-uso”. Tal utilidade “é determinada pelas propriedades materialmente inerentes à mercadoria” e, por isto, “só existe através delas”. Essa característica da mercadoria não depende da quantidade de trabalho, porém, sempre se pressupõe quantidades definidas ao se tratar dos valores-de-uso. Os valores-de-uso são o conteúdo material da riqueza em todas as eras, e na sociedade capitalista são ao mesmo tempo, “os veículos materiais do valor-de-troca” [4].

Valor

“O valor-de-troca revela-se, de início, na relação quantitativa entre valores-de-uso de espécies diferentes, na proporção em que se trocam” [5], daí a sua aparência puramente relativa. Porém, a despeito de sua aparência relativa, “os valores-de-troca vigentes da mesma mercadoria expressam, todos, um significado igual”, além disso, “o valor-de-troca só pode ser a maneira de expressar-se, a forma de manifestação de uma substância que dele se pode distinguir”. Toda relação de troca entre mercadorias é uma expressão de igualdade, a expressão da existência de algo comum em duas coisas diferentes. Essa coisa comum não pode ser uma propriedade material das mercadorias, que só lhes interessa ao concede-lhes valores-de-uso. “Como valores-de-uso, as mercadorias são, antes de mais nada, de qualidade diferente; como valores de troca, só podem diferir na quantidade, não contendo, portanto, nenhum átomo de valor-de-uso” [6]. Ao prescindirmos do valor-de-uso, só resta as mercadorias a propriedade de ser produto do trabalho. Ainda assim, de um trabalho que já passou por uma modificação; remove-se o caráter útil destes trabalhos, transformando-os em trabalho humano abstrato. Os produtos deste trabalho humano abstrato são “a massa pura e simples do trabalho humano em geral”; “passam a representar apenas a força de trabalho humana gasta em sua produção, o trabalho humano que nelas se armazenou”. Assim, “Na própria relação de permuta das mercadorias, seu valor-de-troca revela-se, de todo, independente de seus valor-de-uso. Pondo-se de lado o valor-de-uso dos produtos do trabalho, obtém-se seu valor como acaba de ser definido” [7].

A grandeza do valor é medida pela quantidade de trabalho contida em uma mercadoria. A quantidade de trabalho é medida por sua duração e essa por frações do tempo, como horas e dias. Pode-se pensar daí que a mercadoria de um trabalhador inábil custaria mais, pois ele demoraria mais para produzi-la, porém, “O que determina a grandeza do valor [...] é a quantidade de trabalho socialmente necessária ou o tempo de trabalho socialmente necessário para a produção de um valor-de-uso”. Marx nos explica que o “Tempo de trabalho socialmente necessário é o tempo de trabalho requerido para produzir-se um valor-de-uso qualquer, nas condições de produção socialmente normais existentes e com o grau social médio de destreza e intensidade do trabalho” [8]. Devido ao fato de o tempo médio necessário para a produção de uma mercadoria variar constantemente, o valor de uma mercadoria também deve variar. “A grandeza do valor de uma mercadoria varia na razão direta de sua quantidade e na inversa da produtividade do trabalho que nela se aplica” [9].

“Uma coisa pode ser valor-de-uso sem ser valor. É o que sucede quando sua utilidade para o ser humano não decorre do trabalho” [10], da mesma maneira que, “Uma coisa pode ser útil e produto do trabalho humano sem ser mercadoria” [11], a medida em que o valor-de-uso deve ser criado para outrem e ainda transferido a esse por meio da troca para que seja uma mercadoria. Por fim, nenhuma coisa pode ser mercadoria se não é útil [12].

O trabalho em seu caráter duplo

Assim como a mercadoria, o trabalho também possui um duplo caráter: “quando se expressa como valor, não possui mais as mesmas características que lhe pertencem como gerador de valores-de-uso”[13]. Foi Marx quem primeiro penetrou nessa dupla natureza do trabalho, essencial para a compreensão da ciência econômica [14].

Trabalho útil

O trabalho, ao produzir um valor de uso, é trabalho útil. Tendo em vista a diversidade dos valores-de-uso, diferem, também, qualitativamente os trabalhos que lhes dão origem; não sendo, esses produtos, valores-de-uso frutos de trabalhos qualitativamente diversos, não são mercadorias: “valores-de-uso idênticos não se trocam”. A divisão social do trabalho “é condição para que exista a produção de mercadorias”, ainda que “a produção de mercadoria não seja condição necessária para a existência da divisão social do trabalho”. Numa sociedade baseada na produção de mercadorias, “essa diferença qualitativa dos trabalhos úteis executados, independentes uns dos outros, como negócio particular de produtores autônomos, leva a que se desenvolva um sistema complexo, uma divisão social do trabalho”[15]. Porém, o trabalho útil, como atividade produtiva que gera um valor-de-uso especifico, independe da divisão social do trabalho. Isso porque, o trabalho útil é indispensável a vida do homem, não importa qual seja a forma de sociedade, ele “é necessidade natural e eterna de efetivar o intercâmbio material entre o homem e a natureza e, portanto, de manter a vida humana”[16].

Trabalho humano em geral

Ao pôr-se de lado o caráter útil do trabalho resta o fato dele ser dispêndio de força humana de trabalho. Trabalhos qualitativamente diversos são ainda assim dispêndio de faculdades humanas. “O valor da mercadoria [...] representa trabalho humano simplesmente, dispêndio de trabalho humano geral”. O trabalho humano mede-se pelo trabalho simples médio. Marx explica essa categoria como “dispêndio da força de trabalho simples, a qual, em média, todo homem comum, sem educação especial, possui em seu organismo”. O trabalho simples médio é dado numa determinada sociedade, a despeito de suas variações de país para país ou de estágios de civilização. Todo trabalho qualificado ou complexo pode ser reduzido a trabalho simples, e tem neste sua unidade de medida. Ele “vale como trabalho simples potenciado ou, antes, multiplicado” [17]. A redução do trabalho complexo em trabalho simples se dá constantemente e por um processo social inconsciente, parece estabelecido pelo costume. A diferença dos valores de duas mercadorias explica-se pela diferença da quantidade de trabalho que elas contem. Marx analisa que, diferente do que acontece com o valor-de-uso, para o qual interessa o trabalho do ponto de vista qualitativo, “do ponto de vista da grandeza do valor só interessa quantitativamente”. Assim, para um caso “importa saber como é e o que é o trabalho”, mas para outro, “ sua quantidade, a duração de seu tempo”. Em determinadas proporções as mercadorias possuem valores iguais, uma vez que “a grandeza do valor de uma mercadoria representa apenas a quantidade de trabalho nela contida”[18]. O valor da mercadoria varia de acordo com a variação da produtividade do trabalho. O aumento da riqueza material é gerado pela maior quantidade de valor-de-uso; porém, o aumento da riqueza material pode corresponder a diminuição do valor. Isso acontece, por conta do duplo caráter do trabalho. “Produtividade é sempre produtividade de trabalho concreto, útil, e apenas define o grau de eficácia da atividade produtiva adequada a certo fim, em dado espaço de tempo”. Por isso, “O trabalho útil torna-se [...] uma fonte mais ou menos abundante de produtos, na razão direta da elevação ou da queda da produtividade”. Mas, “Qualquer que seja a mudança na produtividade, o mesmo trabalho, no mesmo espaço de tempo, fornece sempre a mesma magnitude de valor”. O resultado disso é que a “mesma variação da produtividade que acresce o resultado do trabalho e, em consequência, a massa dos valores-de-uso que ele fornece reduz a magnitude do valor dessa massa global aumentada quando diminui o total de tempo do trabalho necessário para sua produção”[19].

A forma do valor: da forma simples ao dinheiro

As mercadorias patenteiam-se mercadoria na medida em que possuem uma dupla forma, a material (natural) e a de valor (social). A “coisa-valor” não possui nenhum átomo de matéria, “se mantem imperceptível aos sentidos”. Isso porque ela é “uma realidade apenas social”, que só pode se manifestar “na relação social em que uma mercadoria se troca por outra”[20]. Importa voltar a forma de manifestação do valor, o valor-de-troca, cuja forma comum é o dinheiro. Nesse ponto, Marx demonstra todo o folego da sua investigação científica se propondo a fazer aquilo que nunca se propôs a fazer a economia burguesa, elucidar a gênese da forma dinheiro. Seu método, para tanto, é acompanhar o desenvolvimento da forma do valor, desde sua expressão mais simples. Ele define, em primeiro lugar, a forma mais simples da relação de valor, como “a que se estabelece entre uma mercadoria e qualquer outra mercadoria de espécie diferente”[21].

A forma simples do valor e seus dois polos

A forma simples do valor expressa-se na equação: x da mercadoria A = y da mercadoria B, ou x de mercadoria A vale y de mercadoria B. [22] Para Marx: “Todo segredo da forma do valor encerra-se nessa forma simples do valor”. A primeira mercadoria na equação “se encontra sob a forma relativa do valor”, enquanto a segunda, “tem a função de equivalente ou se acha na forma de equivalente”. Marx explica que, a forma relativa do valor e a forma de equivalente “se pertencem uma à outra, se determinam, reciprocamente, inseparáveis, mas, ao mesmo tempo, são extremos que mutuamente se excluem e se opõem, polos da mesma expressão do valor” [23]. Assim, pois, a forma relativa do valor de uma mercadoria só pode ser expresso relativamente em outra, pressupondo, que alguma outra forma se contrapõe a ela. Porém, “essa outra mercadoria que figura como equivalente não pode achar-se, ao mesmo tempo, sob a forma relativa do valor”[24]. Ela não expressa seu valor, somente fornecendo o material para que outra mercadoria o faça. Ainda que a expressão compreenda a relação inversa, temos de inverter a equação; dessa forma, o equivalente passa a ser A e não B. Na mesma expressão, A não pode aparecer sob as duas formas.

A forma relativa do valor: significado e quantificação

Dois objetos diferentes somente são comparáveis, segundo sua quantidade, quando convertem-se em uma mesma coisa; só são comensuráveis como expressão da mesma substância, que as torne grandezas homogêneas. Marx afirma que, ao dizermos que, “como valores, as mercadorias são trabalho humano cristalizado”, nossa análise as reduz a “uma abstração, a valor, mas não lhes dá forma para esse valor, distinta de sua forma física”. Mas a coisa muda quando se trata da relação de valor entre duas mercadorias. “Aí a condição de valor de uma se revela na própria relação que estabelece com a outra”[25]. Não é suficiente expressar o caráter especifico do trabalho que cria o valor de uma mercadoria. “A força humana de trabalho em ação ou o trabalho humano cria valor, mas não é valor”. Ele só vem a ser valor “quando se cristaliza na forma de um objeto” e para expressar o seu valor, como massa de trabalho humano, temos de o expressar como algo que tem existência material diversa da sua, sendo, ao mesmo tempo “comum a ele e a todas as outras mercadorias”[26]. Voltando a nossa equação: B, na sua relação com A, é considerado apenas como depositório de valor, valor corporificado, ou, encarnação do valor. Ou seja, o valor assumi as suas características corpóreas. O valor de uma mercadoria é expressa, assim, pelo valor-de-uso de outra. Dizemos que, como valor-de-uso, a mercadoria B se distingue da A, como valor, revela-se ao adquirir a aparência de A [27].

Marx sintetiza o significado da forma relativa do valor na seguinte passagem:

"Por meio da relação de valor, a forma natural da mercadoria B torna-se a forma do valor da mercadoria A, ou o corpo da mercadoria B transforma-se no espelho do valor da mercadoria A. Ao relacionar-se com a mercadoria B como figura do valor, materialização de trabalho humano, a mercadoria A faz do valor-de-uso B o material de sua própria expressão de valor. O valor da mercadoria A, ao ser expresso pelo valor-de-uso da mercadoria B, assume a forma relativa."[28]

Entretanto, a forma do valor não exprime somente valor em geral, mas valor em uma determinada quantidade ou magnitude. Na relação de valor da mercadoria A com a mercadoria B, a mercadoria B equipara-se a A não só qualitativamente, mas também em termos quantitativos. A x A iguala-se determinada quantidade corpórea do valor ou do equivalente, y B. Nossa equação pressupõe que no primeiro termo existe substancia de valor em proporção igual à que encontramos no segundo [29]. Marx analisa a influência da variação da produtividade do trabalho sobre a expressão da magnitude do valor, buscando soçobrar as mistificações dos economistas vulgares sobre a teoria do valor. Ele conclui que, a verdadeira variação da magnitude do valor “não se reflete, portanto, clara e completa em sua expressão, isto é, na equação que expressa a magnitude do valor relativo”[30]. Dessa forma, Marx rebate as conclusões, como as de Broadhurst, que retiram dessa variação sua refutação das doutrinas que asseveram ser o valor de um artigo regulado pelo trabalho e pelo seu custo.

A forma de equivalente e suas propriedades

Marx demonstra que “a mercadoria assume a forma de equivalente, por ser diretamente permutável por outra”[31]. O valor das mercadorias permanece, independente da forma do valor, determinado pelo tempo necessário à sua produção. Porém, quando uma mercadoria assume a forma de equivalente, não adquire o seu valor uma expressão quantitativa, mas sim, torna-se a expressão quantitativa de uma coisa. Por isto, Marx afirmar que a primeira propriedade da forma de equivalente é que “o valor-de-uso se torna a forma de manifestação do seu contrário”[32], o valor. Isso significa que a forma natural de uma mercadoria assume a forma de valor; mas isso, somente dentro dos limites de uma relação bem estreita, com uma mercadoria B se confrontando com outra mercadoria qualquer. Assim, mercadoria B, exprimindo o valor da mercadoria A, representa um elemento puramente social: o valor comum a ambos. Na forma relativa do valor de uma mercadoria oculta-se uma relação social ao se expressar seu valor por algo totalmente diverso de suas propriedades corpóreas; na forma de equivalente, o objeto material, no seu estado concreto, é que expressa valor, possuindo forma de valor de modo natural: é, portanto, o oposto do que sucede com a forma relativa [33]. Marx afirma que a economia burguesa só desperta sua atenção para o caráter enigmático da forma de equivalente quando essa aparece na sua forma acabada de dinheiro; sem suspeitar que a solução para o enigma da forma de equivalente já é requerida na mais simples expressão do valor [34].

Como consequência do caráter duplo do trabalho, o “trabalho concreto torna-se [...] expressão de trabalho humano abstrato”: a forma corpórea da mercadoria que serve de equivalente passa por materialização do trabalho humano abstrato e é resultado de um trabalho concreto especifico. Um trabalho útil qualquer produz o valor na sua forma de trabalho humano e não na sua forma concreta, na sua utilidade especifica; mas isso só é expresso, quando é ele confrontado ao trabalho concreto de outra qualidade, o trabalho útil que cria o equivalente, como forma material de trabalho humano abstrato. Daí a segunda propriedade da forma de equivalente ser “o trabalho concentro tornar-se forma de manifestação de seu contrário, trabalho humano abstrato”[35].

A terceira propriedade da forma equivalente é que o trabalho privado se torna a forma do seu contrário, trabalho em forma diretamente social. Um trabalho concreto qualquer, ao ser considerado simples expressão de trabalho humano em geral, passa a identificar-se como outro trabalho. Sendo trabalho privado, assim como todo trabalho que produz mercadoria, é, igualmente, trabalho em sua forma diretamente social [36].

A questão vista em seu conjunto: valor e sua manifestação; valor-de-uso e valor os limites da forma simples do valor

Marx demonstra que a afirmação de que a mercadoria se caracteriza por valor-de-uso e valor-de-troca é – apesar de usual e útil para fins de praticidade da exposição –, a rigor, falsa. A mercadoria se caracteriza por ser valor-de-uso e valor. Ela apresenta seu duplo caráter, quando, como valor, dispõe de uma forma de manifestação diferente da forma natural, a de valor-de-troca. E só possui essa forma na relação de troca com outra mercadoria. Toda sua exposição demonstra que o valor e sua magnitude não se originam do valor-de-troca, que é sua expressão; mas, que é sua expressão que decorre da natureza do valor da mercadoria [37].

Marx explica que a forma simples do valor de uma mercadoria é “a forma elementar de manifestar-se a oposição existente, entre valor-de-uso e valor”[38]. Isso é, na relação entre duas mercadorias, aquela cujo valor precisar ser expresso, apresenta-se apenas como valor-de-uso, enquanto a outra, na qual o valor se expressa, considera-se simples valor-de-troca. Porém, a forma simples do valor é, também, sua forma embrionária, passando por uma série de transformações até alcançar a forma preço. Isso porque: “não traduz sua igualdade qualitativa e proporcionalidade quantitativa com todas as outras mercadorias”[39]; ela corresponde a forma de equivalente singular, que é, todavia, conversível em uma forma mais completa através da mera conversão de sua forma singular de valor em uma série de expressões simples de valor.

Os aspectos e defeitos da forma total ou extensiva do valor [40]

O que é importante aqui é que o valor de uma mercadoria se revela pela primeira vez como trabalho humano homogêneo; isso porque, o valor de uma mercadoria está expresso em inúmeras outras mercadorias. Dessa maneira, já não importa mais a forma física assumida pelos trabalhos e a forma especifica do valor-de-uso em que se manifesta o valor. A forma extensiva do valor também evidencia que é a magnitude do valor da mercadoria que regula a troca e não o contrário [41].

A forma física de cada mercadoria é uma forma particular do equivalente; assim como, as várias espécies de trabalho útil contidas nos corpos das diferentes mercadorias são formas particulares do trabalho humano geral [42].

Na forma extensiva ou total do valor, a expressão fica incompleta devido ao caráter infinito da série que representa, limitando-se a forma relativa do valor a ser um variado mosaico de expressões de valor. A forma de equivalente do valor fica sempre limitada, pois cada uma exclui as demais; e igualmente, o trabalho útil específico incompleto, sendo apenas forma particularizada de manifestação do trabalho humano [43]. Quando, porém, invertemos a série da forma total ou extensiva do valor, chegamos a forma geral do valor [44].

A forma do valor em mudança, desenvolvimento e transição: forma geral do valor [45]

A forma geral do valor consiste em “uma forma de valor simples, comum a todas as mercadorias”[46].

A forma do valor e a mudança de seu caráter

A forma simples do valor só funciona em estágios primitivos da sociedade, quando os produtos do trabalho se tornam mercadoria ocasionalmente, através de trocas fortuitas [47]. Quando a troca se torna habitual é que ocorre a forma extensiva do valor. É na forma geral do valor que primeiro relaciona as mercadorias uma com as outras, como valores, que faz com que elas se revelem valores-de-troca. Isso pelo valor de cada mercadoria, igualada a uma mercadoria especifica, se distinguir não só do valor-de-uso dela, mas, igualmente, de qualquer valor-de-uso, exprimindo-se, assim, de maneira comum a todas as mercadorias. Marx demonstra que as duas primeiras formas do valor expressam de forma isolada o valor da mercadoria, enquanto, a forma geral, “surge como obra comum do mundo das mercadorias”. Isso evidencia que “a realidade do valor das mercadorias só pode ser expressa pela totalidade de suas relações sociais, pois essa realidade nada mais é que a ‘existência social’ delas, tendo a forma do valor, portanto, de possuir validade social reconhecida”[48].

Quando igualadas a uma mercadoria especifica, “todas as mercadorias revelam-se não só qualitativamente iguais, como valores, mas também quantitativamente comparáveis como magnitudes de valor”[49]. Assim, a forma geral do valor relativo confere a mercadoria que assume a forma de equivalente um caráter de equivalente geral. Da mesma maneira, o trabalho privado (concreto, útil, especifico) assume a forma social, a forma de igualdade com todos os outros. O trabalho objetivado no valor não se apresenta somente sob o aspecto negativo, pondo-se de lado todas as formas concretas do trabalho real, mas em sua forma positiva, reduzindo-se a sua condição comum de trabalho humano. O caráter social específico do mundo das mercadorias é constituído pelo caráter humano geral do trabalho; é o que se evidencia pela forma geral do valor, expressão social do mundo das mercadorias [50].

Desenvolvimento mútuo dos polos da forma de valor e sua contradição

O desenvolvimento da forma relativa do valor é somente resultado e expressão do desenvolvimento da forma de equivalente. Uma mercadoria particular adota a forma de equivalente geral, por que todas as outras a transformam em objeto da forma geral de valor. Assim, a oposição entre a forma relativa do valor e a forma de equivalente se desenvolve juntamente com a forma do valor [51]. Essa contradição é quase imperceptível na forma simples, onde duas mercadorias que se trocam, ora aparecem como forma relativa, ora como equivalente. Na segunda e na terceira forma, essa contradição se torna patente, pois já não se pode mais trocar os polos, sem transformar a segunda forma (forma extensiva do valor) em terceira (forma geral) e vice-versa. Disso resulta que, assim como uma mercadoria pode estender sua forma relativa somente enquanto se confronta com todas as outras como equivalentes, uma mercadoria pode adquirir a forma de permutabilidade geral (forma de equivalente geral) somente enquanto estiverem excluídas dessa forma todas as demais mercadorias [52].

Transição para forma dinheiro

A partir do momento em que o destaque de uma mercadoria na forma de equivalente geral se limita a uma determinada mercadoria, adquirindo a forma unitária do valor relativo validade social universal, essa mercadoria específica-determinada passa a funcionar como dinheiro. Pois, sua função social específica se torna desempenhar o papel de equivalente universal. É o ouro que assume essa função privilegiada. Ocupando o ouro o lugar de equivalente geral na forma geral do valor, a forma geral passa a ser agora a forma dinheiro do valor [53].

O dinheiro como forma do valor

A única diferença entre a forma geral do valor e a forma dinheiro do valor é que esta última possui o ouro na função de equivalente geral. O progresso consiste em que a força do hábito social identificou a forma ouro com a forma de direta permutabilidade geral. Marx explica que, primeiro, o ouro se confrontou com outras mercadorias na condição de mercadoria, tendo posteriormente exercido, em círculos restritos, a função de equivalente geral. E é somente quando conquista o monopólio desta função que assume a forma-dinheiro. A expressão simples-relativa do valor de uma mercadoria, por meio de outra mercadoria, que já exerça a função de mercadoria-dinheiro, é a forma preço do valor. Marx conclui, de todo toda sua demonstração, que o segredo da forma dinheiro do valor encontra-se na forma mercadoria equivalente da forma simples do valor, que é o seu germe [54].

O segredo do fetichismo da mercadoria

Marx debruçasse na investigação da aparência misteriosa e mágica da qual se reveste a mercadoria. Esse mistério não provém do valor-de-uso ou do valor da mercadoria. Esses aspectos estão assim esclarecidos: ainda que diversos os trabalhos úteis, são dispêndio de funções do corpo humano; têm sua magnitude medida pela duração do trabalho; e, não importa o modo que se realize, sempre que os homens trabalhem uns para os outros, o trabalho possui forma social [55]. Assim, o caráter misterioso das mercadorias, provém da própria forma mercadoria.

Ou seja, na forma mercadoria:

"A igualdade dos trabalhos humanos fica disfarçada sob a forma da igualdade dos produtos do trabalho como valores; a medida, por meio da duração, do dispêndio da forma humana de trabalho, toma a forma de quantidade de valor dos produtos do trabalho; finalmente, as relações entre os produtores nas quais se afirma o caráter social dos seus trabalhos, assumem a forma de relação social entre os produtos do trabalho. "[56]

Marx chama a isso de fetichismo das mercadorias: “Uma relação social definida, estabelecida entre os homens, assume a forma fantasmagórica de uma relação entre coisas” [57]. Isso ocorre por que a forma mercadoria oculta a relação entre os trabalhos individuais dos produtores e o trabalho total, refletindo a margem deles a relação social existente, como relação entre os produtos do seu trabalho [58]. Assim, o caráter socialmente útil dos trabalhos privados só se percebe sob da utilidade do trabalho para outros e a caráter social da igualdade entre os trabalhos diferentes, sob o aspecto da igualdade do valor, estabelecida entre os produtos do trabalho [59].

Marx explica ainda que os homens igualam seus trabalhos diferentes na qualidade comum de trabalho humano, ao igualar seus diferentes produtos como valores na troca, porém, fazem sem o saber. Ele afirma: “o valor transforma cada produto do trabalho num hieróglifo social”[60]. A própria descoberta cientifica do valor como expressão do trabalho humano necessário a produção não dissipa o fetichismo. Permanece, por isto, um segredo a determinação do valor pelo tempo de trabalho; disfarçado pelos movimentos visíveis dos valores relativos das mercadorias [61].

É pelo fato de os homens considerarem como forma natural da sociedade aquilo que não é senão sua forma histórica, que são levados a buscar a determinação da magnitude do valor somente na análise de sua forma preço; porém, é exatamente essa forma dinheiro que mais dissimula o caráter social de seus trabalhos privados [62]. Assim, no regime feudal, as relações sociais das pessoas no trabalho não se dissimulam em relações entre coisas, mas apresentam-se como realmente são, suas relações pessoais. Porque o fundamento social indiscutível são as relações de dependência pessoal [63]. Igualmente, na indústria patriarcal rural de uma família camponesa, as forças de trabalho despendidas individualmente manifestam-se sob a forma de trabalhos determinados socialmente, sendo elementos da força comum de trabalho familiar. Também, numa sociedade baseada no trabalho sobre meios de produção comuns e exercido por homens livres, as relações sociais de trabalho dos indivíduos aparecerão para estes claramente, na produção e na distribuição [64].

Marx também demonstra como o cristianismo é parte do véu místico e nebuloso que encobre as relações sociais e materiais dos homens na produção de mercadorias; sobretudo, pela correspondência da conversão dos seus trabalhos úteis em trabalho humano abstrato e o culto cristão do homem abstrato em seu desenvolvimento protestante. As formas de sociedade anteriores, baseadas no baixo desenvolvimento das forças produtivas materiais e na consequente dependência do homem a sua comunidade primitiva ou a relações de escravidão e domínio diretas, também não poderia escapar das manifestações religiosas, que apareciam na forma de cultos da natureza, em decorrência da inibição das relações do homem com essa mesma natureza. Assim, para Marx: “O reflexo religioso do mundo real só pode desaparecer quando as condições práticas das atividades cotidianas do homem representem, normalmente, relações racionais claras entre os homens e entre estes e a natureza”[65]. O que requer um longo processo de desenvolvimento histórico.

Por fim, Marx conclui que a “economia política” descobriu, ainda que de forma incompleta, o conteúdo oculto no valor e em sua magnitude, mas não se perguntou, o porquê de ocultarem tal conteúdo. O motivo para tal é que a consciência burguesa considera uma necessidade natural formas historicamente determinadas e que pertencem somente a uma formação social em que o homem não domina o processo de produção social, mas é por ele dominado [66].

Considerações finais

No trabalho que apresentamos, vimos que Marx considera como mercadoria aquilo que possui uma utilidade (valor-de-uso) e valor. Ele investiga a natureza desses dois aspectos da mercadoria, demonstrando que o valor tem sua origem no fato de serem as mercadorias fruto do trabalho humano e que sua magnitude é determinada pelo tempo de trabalho socialmente necessário à sua produção. Vimos também que Marx foi o primeiro a analisar o duplo caráter do trabalho materializado na mercadoria: seu caráter de trabalho útil e de trabalho geral. Em seguida, Marx prossegue analisando as quatro formas históricas do valor, da forma simples a forma dinheiro; e demonstra que todo segredo da forma dinheiro – expressa na forma preço – encontra-se na forma de equivalente da forma simples do valor. A economia vulgar não consegue desvendar esse segredo, pois considera imutáveis as formas de valor típicas do modo de produção capitalista, limitando-se, por isso, a investigar a sua magnitude, mas não o seu caráter histórico.

Consideramos o esforço de apreensão e sistematização da teoria marxista do valor de fundamental importância, pois a teoria econômica de Marx é uma ferramenta indispensável para a compreensão da sociedade, e deve, portanto, ser dominada pelo pesquisador e estudioso das ciências humanas. Seu conhecimento pode desvanecer certos mitos criados pelo pensamento econômico vulgar e transformados quase que em um senso comum. Por exemplo, a ideia de que o valor possuiria um caráter absolutamente subjetivo, não tendo o trabalho, portanto, nenhum papel em sua origem e magnitude. Tal senso é o que propaga a pretensa refutação da teoria do valor sob o argumento de que tal teoria faria equivaler maior quantidade de valor ao produto inútil de um produtor inábil. Como demonstramos, a mercadoria antes de tudo deve possuir valor-de-uso, utilidade. Igualmente, se trata aqui de tempo de trabalho socialmente necessário.


Notas

[1] MARX, Karl. O Capital: crítica da economia política: livro I - 23ª ed. - Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006.

[2] Ibidem. P. 57

[3] Ibidem. P. 57

[4] Ibidem. P. 58

[5] Ibidem. P. 58

[6] Ibidem. P. 59

[7] Ibidem. P. 60

[8] Ibidem. P. 61

[9] Ibidem. P. 62

[10] Ibidem. P. 62

[11] Ibidem. P. 62-63

[12] Ibidem. P. 63

[13] Ibidem. P. 63

[14] Marx usa a expressão corrente: economia política.

[15] MARX, Karl. O Capital: crítica da economia política: livro I - 23ª ed. - Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006. P. 64

[16] Ibidem. P. 65

[17] Ibidem. P. 66

[18] Ibidem. P. 67

[19] Ibidem. P. 68

[20] Ibidem. P. 69

[21] Ibidem. P. 70

[22] Todas as formulas são removidas como se apresentam na obra de Marx.

[23] MARX, Karl. O Capital: crítica da economia política: livro I - 23ª ed. - Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006. P. 70

[24] Ibidem. P. 70

[25] Ibidem. P. 72

[26] Ibidem. P. 73

[27] Ibidem. P. 74

[28] Ibidem. P. 74-75

[29] Ibidem. P. 75

[30] Ibidem. P. 77

[31] Ibidem. P. 77

[32] Ibidem. P. 78

[33] Ibidem. P. 79

[34] Ibidem. P. 80

[35] Ibidem. P. 80

[36] Ibidem. P. 81-82

[37] Ibidem. P. 82

[38] Ibidem. P. 83

[39] Ibidem. P. 84

[40] A equação a qual corresponde a forma total ou extensiva do valor é: z de mercadoria A = a y de mercadoria B, ou = v de mercadoria C, ou = w de mercadoria D, ou = x de mercadoria E, ou = etc.

[41] MARX, Karl. O Capital: crítica da economia política: livro I - 23ª ed. - Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006. P. 84-85

[42] Ibidem. P. 86

[43] Ibidem. P. 86

[44] Ibidem. P. 87

[45] A equação a qual corresponde a forma geral do valor é:

1 casaco =

10 quilos de chá =

40 quilos de café =

1 quarta de trigo = 20 metros de linho

2 onças de ouro =

½ tonelada de ferro =

X de mercadoria A =

Etc. mercadoria =

[46] MARX, Karl. O Capital: crítica da economia política: livro I - 23ª ed. - Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006. P. 87

[47] Ibidem. P. 87

[48] Ibidem. P. 88

[49] Ibidem. P. 88

[50] Ibidem. P. 89

[51] Ibidem. P. 89

[52] Ibidem. P. 90

[53] Ibidem. P. 90

[54] Ibidem. P. 92

[55] Ibidem. P. 93

[56] Ibidem. P. 94

[57] Ibidem. P. 94

[58] Ibidem. P. 94

[59] Ibidem. P. 95

[60] Ibidem. P. 96

[61] Ibidem. P. 96-97

[62] Ibidem. P. 97

[63] Ibidem. P. 99

[64] Ibidem. P. 100

[65] Ibidem. P. 101

[66] Ibidem. P. 101-102

ícaro Leal Alves

 v>

A importância da categoria
valor de uso na teoria
de Marx
Marcelo Dias Carcanholo*
Resumo: o objetivo deste artigo é ressaltar a
relevância teórica da categoria valor de uso na
teoria de Marx. Este conceito é entendido em
sua significação econômica que aparece na
relação com as condições sociais de
produção, tanto quando é influenciado por
elas, como quando influi nessas condições.
Neste sentido, chama-se de formal ao valor de
uso que não restringe o seu significado às
propriedades materiais da mercadoria. Sua
importância pode ser percebida pelo fato dele
ser o responsável pelas especificidade do que
se chama de mercadorias especiais.
Summary: the objective of this article is to
highlight the theoretical relevance of the
category of use value in Marx’s theory. This
concept is understood here inits economic
significance that appears in its relationship
with the social conditions of production, as
when it is influencied by them, as well as
when tehy influence these conditions. In this
sense, we call formal the use value that does
not restrict its meaning to the material
properties of the commodity. Its importance
can be perceived by the fact of its being the
responsable for the specificities of what is
called special commodities.
1. Introdução
É amplamente conhecido o fato de que o objeto de estudo de Karl Marx em O
Capital é o modo de produção capitalista1 . Para iniciar essa investigação não há 
 
* Mestre em Ciências Econômicas pela UFF e Professor do Departamento de Economia da
UFU. Marcelo Dias Carcanholo
PESQUISA & DEBATE, volume 9, número 2 (14), p. 17-43, 1998
18 
 
alternativa a não ser observar esse objeto e perceber as características daquilo que é mais
aparente nesse modo de produção, a mercadoria. Entretanto, ele não faz isto eliminando
as determinações históricas desta última; pelo contrário, está preocupado em investigar a
mercadoria enquanto forma capitalista de uma categoria mais geral, a riqueza. Esta não
se refere a nenhum tipo de sociedade em particular. Já, a mercadoria, ou a riqueza na
economia mercantil e, em específico, na economia mercantil-capitalista, é uma categoria
com uma determinação histórica, e é assim que deve ser entendida. 
 
2. Mercadoria como unidade entre valor e valor de uso
A observação dessa forma elementar do modo de produção capitalista permite
identificá-la por possuir duas características. Inicialmente, a mercadoria é um objeto
que, a partir de suas propriedades materiais, tem a propriedade de satisfazer as
necessidades do homem. Essa característica é conhecida como valor de uso. Por outro
lado, a mercadoria também tem a propriedade de poder ser trocada por mercadorias
distintas de si própria ou, em outras palavras, de comprar outras mercadorias2 . A essa
característica chamou-se valor de troca.
Então, a mercadoria pode ser definida como uma riqueza, mercantil, que
possui valor de uso e valor de troca, ao mesmo tempo. Um produto (riqueza) que deixar
de possuir alguma dessas duas propriedades não é uma mercadoria. Qualquer produto
que tenha a capacidade de satisfazer necessidades, mas não tenha a propriedade de ser
trocado por outro, não pode ser levado ao mercado para a troca, não é um elemento
constitutivo de uma economia mercantil, embora até possa coexistir com ela. Logo, não
1 Isto apesar de autores, como Braudel, afirmarem que “muito naturalmente, a palavra que
Marx não utilizou (capitalismo - MDC) incorpora-se ao modelo marxista ... para designar as
grandes etapas distinguidas pelo autor do Capital.”(Braudel, 1996, p. 206). Evidentemente a
discussão sobre a terminologia utilizada por Marx é a menos relevante. O que importa é que,
nessa obra, Marx se propõe a investigar a forma capitalista de produção.
2 Note-se, portanto, que não faz sentido tratar a mercadoria como uma categoria a-histórica.
Em uma economia de subsistência, por exemplo, a riqueza não tem essa propriedade, pois é
produzida para o consumo direto de seu produtor; consequentemente não pode ser
considerada mercadoria. valor de uso em Marx
PESQUISA & DEBATE, SP volume 9, número 2(14), p. 17-43, 1998.
19
é uma mercadoria. De outro lado, é difícil pensar em um produto que não tenha valor de
uso e possua valor de troca, já que nenhum produtor desejará comprar, pagando por isso
algo correspondente a um valor de troca, se a mercadoria em questão não satisfizer suas
necessidades, isto é, nenhum produtor troca uma mercadoria sem reconhecer na
mercadoria alheia um valor de uso. Trata-se de uma pré-condição para a troca.
Desta maneira, pode-se definir a mercadoria como a unidade de dois
elementos: valor de uso e valor de troca. Deve-se salientar que o valor de uso é uma
propriedade da riqueza independente de sua forma histórica. Não importa qual seja o
modo de produção; o homem produz riqueza com o objetivo de satisfazer suas
necessidades, seja de forma direta (meio de subsistência) ou indireta (meio de
produção). Isto permite a Marx afirmar que “os valores de uso constituem o conteúdo
material da riqueza, qualquer que seja a forma social desta.”(Marx, 1988, vol.I, p.46). Já
o valor de troca tem sua determinação histórica (mercantil) bastante clara, como visto
acima.
A análise de Marx continua sem alternativa. Neste momento, deve-se observar
esses dois aspectos da mercadoria. Ao observar o valor de troca de uma mercadoria A
qualquer percebe-se que a unidades dessa mercadoria podem ser trocadas por b da
mercadoria B, c da mercadoria C, d da mercadoria D, e assim por diante, dependendo de
quantas mercadorias são trocadas pela mercadoria A. Em termos esquemáticos, tem-se:
a unidades de A = b unidades de B
c unidades de C
d unidades de D
O que se pode concluir dessa observação? Em primeiro lugar, nota-se que um
valor de troca representa “... a relação quantitativa, a proporção na qual valores de uso
de uma espécie se trocam contra valores de uso de outra espécie ...”(Marx, 1988, vol.I,
p.46), isto é, que a unidades de A eqüivalem a b unidade de B, c unidades de C, d
unidades de D, e assim por diante 3 . O valor de troca de uma mercadoria só se define na
3 Essa relação de equivalência não é estipulada por Marx, como afirma Torres (1979, p.51-
52). A troca de equivalentes não é uma hipótese simplificadora da teoria de Marx, mas Marcelo Dias Carcanholo
PESQUISA & DEBATE, volume 9, número 2 (14), p. 17-43, 1998
20
relação desta com outra. Isso permite caracterizá-lo como algo puramente relativo. Em
segundo lugar, essa relação “muda constantemente no tempo e no espaço.”(Marx, 1988,
vol.I, p. 46). A mesma relação de troca da mercadoria A, seguindo o exemplo, com a
mercadoria B, pode variar de acordo com o período em que se observe a troca. O valor
de troca a unidades de A eqüivalem a b unidades de B, observado no período t1, não
será o mesmo em t2, nem tampouco o foi em t0, ou pelo menos não há nada que garanta
isso. Para complicar ainda mais a situação, essa mesma relação de troca A por B, em um
mesmo período t0, apresenta distintos valores de troca nos mais variados mercados, o
que dá ao valor de troca um caráter meramente casual.
Relatividade e casualidade são as duas características do valor de troca. Ora,
existe algum sentido em procurar alguma explicação científica para o valor de troca de
uma mercadoria, se ele não se encontra nela mesma ou, como diz Marx, se ele não é
imanente a ela, mas na relação entre as mercadorias na troca? E mais, faz sentido
encontrar explicação para algo que parece não ser a regra de funcionamento do sistema,
que se reduz a uma mera casualidade? Duas alternativas são colocadas. Abandona-se a
tentativa de entendimento do fenômeno, ou então aceita-se a proposta de Marx:
“Observemos a coisa (troca - MDC) mais de perto.”(Marx, 1988, vol.I, p.46).
Ao observar melhor o valor de troca, Marx percebe que, dado o valor de troca
da mercadoria A. o valor de troca tanto de B, quanto de C e D, estaria determinado pela
relação de equivalência que existe entre as mercadorias e, portanto, eles não seriam
casuais. A casualidade característica do valor de troca é aparente. Mas, o que faz com
característica do funcionamento de uma economia mercantil. Nesta, são trocados valores de
uso distintos por valores de troca equivalentes. Isto não quer dizer que as mercadorias serão
trocadas por equivalentes em todos os momentos, mas que esse critério funciona como uma
tendência na economia mercantil. Acreditar, como Torres (1979, p.53) que as mercadorias
são vendidas pelos seus valores - pelo postulado do equilíbrio segundo os seus termos - é
acreditar que a teoria do valor se resume ao Livro I de O Capital, onde realmente isso é
suposto. Como diz Marx: “A suposição de que as mercadorias das diversas esferas da
produção se vendem por seus valores só significa, naturalmente, que seu valor é o centro de
gravitação em torno do qual giram seus preços...”(Marx, 1988, vol. IV, p. 131). Sobre a
incompatibilidade de qualquer noção de equilíbrio com a teoria de Marx ver Shaikh (1991, p.
79-89). valor de uso em Marx
PESQUISA & DEBATE, SP volume 9, número 2(14), p. 17-43, 1998.
21
que todas essas mercadorias possuam essa relação de equivalência? Certamente é
alguma propriedade da mercadoria A. Essa propriedade é algo intrínseco à mercadoria
A, embora sua forma de expressão (manifestação), o valor de troca, seja relativa. Essa
propriedade que é imanente à mercadoria A denomina-se valor. Ressalte-se que a
casualidade da troca fica restrita às considerações do valor de troca, daquilo que é
aparente. Uma vez descoberto o valor como regulador das trocas a aparente casualidade
do valor de troca desaparece, embora este continue sendo relativo. É pelo fato do valor
de troca ser uma categoria da aparência e o valor pertencer àquilo que é essencial na
relação é que Marx conclui que “o valor de troca só pode ser o modo de expressão, a
‘forma de manifestação’ de um conteúdo dele distinguível.”(Marx, 1988, vol.I, p.46).
Mesmo sendo a forma de expressão do valor, o valor de troca não o expressa
verdadeiramente em termos quantitativos. Se a magnitude do valor da mercadoria B for
alterada a sua relação de troca com a mercadoria A também o será. O valor de troca de
A em relação a B não será mais a para b, uma vez que são trocados equivalentes. Isto
sem qualquer alteração da magnitude do valor de A. Em termos proporcionais, uma
elevação do valor de B reduz a quantidade de mercadorias B que podem ser trocadas
por A, isto é, reduz-se o valor de troca de A. Ocorre o inverso quando o valor de B cai.
Por outro lado, alterações na magnitude do valor de A nem sempre são
expressadas por alterações no seu valor de troca. Para que isto ocorra basta que o valor
da mercadoria B suba (caia) na mesma proporção que o de A, de forma que a relação de
troca (o valor de troca) entre as duas fique inalterada. O fato da forma do valor não
expressar adequadamente as modificações da magnitude desse valor só comprovam a
insuficiência da primeira no entendimento dos fenômenos econômicos. Questionar a
existência do valor só porque a sua forma é incapaz de expressá-lo adequadamente
eqüivale a questionar a existência de fenômenos só porque não conseguimos enxergá-
los, ou seja, questionar a existência da essência por causa das limitações explicativas da
aparência.
Essa descoberta do valor, como algo intrínseco (próprio) à mercadoria, por trás
da aparência do seu valor de troca, permite redefinir a mercadoria. Se antes ela era uma Marcelo Dias Carcanholo
PESQUISA & DEBATE, volume 9, número 2 (14), p. 17-43, 1998
22
unidade entre o valor de uso e o valor de troca, agora ela fica melhor definida como uma
unidade entre o valor e o valor de uso, que se manifesta como unidade entre o valor de
troca e o valor de uso. Mais do que isso, trata-se de uma unidade de contrários. Valor e
valor de uso formam uma contradição na unidade mercadoria. É uma unidade pois, para
se definir enquanto tal, a mercadoria deve satisfazer necessidades - ser um valor de uso -
e, ao mesmo tempo, ser capaz de trocar-se por outras - ser um valor. Essas duas
categorias formam uma contradição já que uma mesma mercadoria ora se apresenta
como valor, ora como valor de uso, nunca como os dois ao mesmo tempo. Quando um
produtor leva a sua mercadoria para a troca, ela se encontra nessa situação enquanto um
valor e um não-valor de uso, para o seu produtor. Nesse momento, este último está
negando (alienando) o valor de uso de sua mercadoria, com o objetivo de apropriar-se
de um outro, distinto daquele que produziu. Se essa mercadoria fosse reconhecida por
ele como um valor de uso, ele não a trocaria, visto que estaria interessado em suas
propriedades materiais úteis, e não na sua capacidade de ser trocada. Nessa situação, a
mercadoria seria um valor de uso e um não-valor, ao mesmo tempo.
Embora essa contradição na unidade seja bastante conhecida pelos leitores do
primeiro capítulo do livro 1 de O Capital, o seu resgate neste trabalho cumpre dois
papéis. Inicialmente, serve para relembrar que a contradição entre o valor e o valor de
uso, inerente à unidade mercadoria, não pode ser confundida com sua forma de
manifestação, com sua aparência, de unidade entre valor de troca e valor de uso, como
parece ser o caso de alguns respeitáveis comentadores 4 . Além disso, o desenvolvimento
dessa contradição levará a outros conceitos, mais adiante, que ilustrarão o objetivo deste
trabalho.
Por enquanto deve-se salientar que Marx não chegou a este resultado através
de uma manipulação ou de uma abstração puramente idealista, do que é geralmente
4 Teixeira (1995, páginas 65; 80; 84; 95; 96; 204 e 268). Até autores da envergadura de Shaikh
parecem “escorregar” quando afirmam que “una mercancía es, por lo tanto, una dupla de
características opuestas: una multiplicidad de propriedades concretas útiles (valores de uso),
por una parte, y una sencilla magnitud de valor cuantitativo homogêneo (valor de cambio),
por la otra.”(Shaikh, 1991, p.72). Percalços de tradução ou não, o fato é que o próprio Shaikh
a referendou. valor de uso em Marx
PESQUISA & DEBATE, SP volume 9, número 2(14), p. 17-43, 1998.
23
acusado. Becker (1972, p.81) afirma, por exemplo, que “por lo tanto - a diferencia de
Smith y Ricardo - prescinde (Marx - MDC) totalmente de la situación real del
mercado.” (o destaque é original). Isto revela uma total incompreensão dos caminhos
seguidos por Marx. Quando este se deparou com a dificuldade de continuar sua
investigação, ao constatar o caráter relativo e casual do valor de troca, o que propôs?
Abstrair por vontade própria, de forma idealista, as características do concreto para
chegar ao conceito de valor? Simplesmente manipulou os termos para tanto? Não.
Desafortunadamente para este tipo de críticos, sua proposta foi mais reconhecedora da
importância do empírico do que eles poderiam esperar. Ele optou, até porque não há
alternativa, por observar o concreto, o valor de troca. É verdade que não foi uma
observação meramente contemplativa mas, decididamente não se pode acusá-lo de
prescindir totalmente da situação de mercado5 .
3. A substância do valor e o papel do valor de uso
Quanto à descoberta do valor por trás de sua aparência, o valor de troca, parece
satisfatório. Mas e quanto ao valor de uso? Não foi dito que a única alternativa para a
investigação era a observação dos dois aspectos da mercadoria? Não se pode fazer isto
com o valor de troca e simplesmente rejeitar o valor de uso, ou pelo menos não sem um
bom motivo.
Ao descobrir o valor como aquilo que regula a troca em uma economia
mercantil, Marx passou a se indagar sobre a substância do valor, sobre o seu
fundamento. Neste ponto, os adeptos da teoria subjetiva do valor defendem que a
utilidade que o indivíduo reconhece no bem é o que define o seu valor. Para escapar da
5 Semelhante crítica também foi proferida por Torres (1979, p.50): “De momento, no entanto,
convém insistir em que esse encaminhamento constitui uma espécie de fuga, como se a
investigação só pudesse progredir à condição de rejeitar o mundo das trocas reais, um pouco
como a pomba de Kant que acreditara poder se sair ainda melhor no vazio”. Torres parece
criticar Marx por este rejeitar a aparência como a única fonte de qualquer explicação teórica!
Será que esse autor acredita na contemplação dos fenômenos aparentes como única forma de
conhecimento científico? Marcelo Dias Carcanholo
PESQUISA & DEBATE, volume 9, número 2 (14), p. 17-43, 1998
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necessidade de definir uma medida dessa utilidade, eles estabeleceram, através da lei da
utilidade marginal decrescente, uma gradação dessa utilidade, de forma que, ao
consumir uma nova unidade de um bem, a sua utilidade fosse menor do que a da
unidade consumida anteriormente. Assim, como o consumidor é soberano, ele só aceita
consumir (demandar) mais de um bem por um preço menor6 . Logo, rejeitar a
importância da utilidade (valor de uso) e, particularmente, não entendê-la como a
reguladora das trocas, seria rejeitar toda a teoria subjetiva do valor, hoje hegemônica na
ciência econômica. É bem verdade que Marx não era mais vivo quando essa hegemonia
se definiu, mas é preciso entender o porquê ele não concebia - e nem poderia - o valor
de uso como substância do valor.
Na concepção de Marx, o homem possui apenas duas formas de obter riqueza,
qualquer que seja o tipo de sociedade. Ele pode encontrá-la já pronta na natureza, ou
então produzi-la. Não existe outra maneira. Logo, o fundamento da riqueza e, portanto,
de qualquer forma histórica que ela assuma, o que inclui a mercadoria, só pode ser o ato
de sua produção, o trabalho que o homem exerce para produzi-la 7 . Como decorrência,
se o trabalho é a fonte de obtenção de riqueza, inclusive a mercantil, ele é o responsável
pelas duas características da mercadoria, ou melhor, ele deve possuir propriedades que
são responsáveis pelo duplo caráter da mercadoria.
Por ser um trabalho específico, distinto de outros, uma atividade produtiva
adequada a um fim (produto) específico é um trabalho útil. Esse lado material do
trabalho mercantil foi definido como trabalho concreto, e é ele o responsável pelo fato
da mercadoria ser um valor de uso específico. Retomando o clássico exemplo de Marx,
6 O estabelecimento de um preço de mercado se completa com uma curva de oferta, que
relaciona preços mais altos com uma quantidade maior do bem, dado o custo marginal mais
elevado para sua produção. Para uma boa apresentação desse tipo de pensamento veja-se
Marshall (1985, livro 5), Jevons (1983, caps. 2 a 4) e Menger (1983, caps. 2 a 5).
7 Não se pode considerar a mera extração da natureza como a principal fonte de riqueza,
principalmente depois de todo o desenvolvimento das forças produtivas alavancado pelo
modo de produção capitalista. Além do mais, o simples ato de extração de um produto de sua
fonte natural já envolve uma carga considerável de trabalho. valor de uso em Marx
PESQUISA & DEBATE, SP volume 9, número 2(14), p. 17-43, 1998.
25
o trabalho concreto de alfaiataria produz o valor de uso específico casaco; o trabalho
concreto de tecelagem produz o valor de uso específico linho, e assim por diante.
Será que isso resolve a questão? O trabalho pode continuar sendo o
fundamento da riqueza e, mesmo assim, imputar-se ao valor de uso o papel de regulador
das trocas?
Inicialmente, é preciso deixar claro que, apesar de Marx reconhecer que “a
utilidade de uma coisa faz dela um valor de uso.”(Marx,1988, vol.I, p.45), o seu
conceito de valor de uso é distinto da noção moderna de utilidade. Para esta, a valoração
do bem é conseqüência da relação subjetiva do homem com o produto,
independentemente da forma como ele foi produzido. Supõe-se a existência do bem e, a
partir daí, o homem atribui-lhe mais ou menos valor dependendo de sua saciedade. Em
Marx, a situação é completamente diferente. A satisfação das necessidades por um valor
de uso qualquer só é possível graças às propriedades materiais deste. Essas propriedades
não são obras divinas, mas resultado de um processo de trabalho (humano) que lhe
conferiu essa materialidade. O trabalho concreto produz o valor de uso e, portanto, é
anterior a qualquer relação subjetiva que se queira observar entre consumidor e
produto8 . Assim, mesmo que se desejasse atribuir ao valor de uso a substância do valor,
isto acarretaria na desconsideração da precedência do trabalho.
Não é só por isso que Marx não poderia considerar o valor de uso a substância
do valor. Como se pretende explicar o fundamento de uma relação de troca, isto é, a
forma de sociabilidade que define uma economia mercantil, historicamente
determinada, não se pode tomar como elemento explicativo uma categoria genérica e
comum a todas as formações sociais. Afinal, “...el valor de uso no da a la mercancía
ningún carácter particular. Los objetos de consumo humano em todas las épocas y bajo
8 “Pero los hombres no comienzan, ni mucho menos por ‘hallarse en esta relación (satisfação
de necessidades - MDC) con las cosas del mundo exterior’. Comienzan, como todos los
animales, comiendo, bebiendo, etc., es decir, no ‘estando’ en una relación, sino
comportándose activamente, apoderándose de hecho de ciertas cosas del mundo exterior y
satisfaciendo con ello sus necesidades (comienza, pues, por la producción).”(Marx, 1987b,
p.410 – destaques originais). Marcelo Dias Carcanholo
PESQUISA & DEBATE, volume 9, número 2 (14), p. 17-43, 1998
26
cualquier forma de sociedad poseen de igual manera valor de uso.”(Romo, 1988, p.62).
Fazer isso seria identificar a forma mercantil de sociabilidade econômica com todo e
qualquer tipo de divisão do trabalho. Em suma, estar-se-ia retirando da economia
mercantil todas suas determinações históricas, ou melhor, tratar-se-ia a primeira como
supra-histórica, sem gênese e eterna.
Além disso, o valor de uso não pode ser determinante da troca pois ele se
apresenta em distinção nas mercadorias envolvidas na troca 9 . Como valores de uso as
mercadorias se distinguem apenas qualitativamente. Na troca, a substância comum (o
valor) tem que torná-las qualitativamente iguais. Isto nos leva ao segundo aspecto do
trabalho mercantil.
Quando duas mercadorias se encontram na troca, elas são trocadas por valores
iguais. Em outras palavras, não é o fato de se tratar de valores de uso distintos 10, mas de
serem igualadas no mercado, por intermédio de seus valores, o que caracteriza a troca.
Assim, os diversos trabalhos concretos, que produzem valores de uso distintos são
igualados no mercado; as suas especificidades são abstraídas na troca. Como diz Marx,
à abstração do caráter útil dos produtos do trabalho concreto corresponde a abstração
deste último, reduzindo todas as suas formas a uma única coisa, o trabalho abstrato 11.
Esta propriedade do trabalho mercantil é o que confere valor às mercadorias 12.
9 Rolland (1981) chama atenção para isso em um trabalho que tem o grande mérito de
recuperar a discussão sobre o valor de uso em Marx. Alguns pontos, entretanto, são
obscurecidos por uma forte e nítida influência althusseriana.
10até porque se fossem iguais, a troca não faria sentido.
11Note-se que a abstração das especificidades do trabalho não é ideal, mas fruto da igualação
concreta dos valores das mercadorias pelo próprio mercado. Sobre isso, consultar Rubin
(1987, cap. 14).
12Mas, se o trabalho abstrato confere valor às mercadorias que serão trocadas em seguida,
como é possível que a abstração que o define seja feita pela troca? De fato, em um tipo de
sociedad em que o produto é produzido para uso direto e, eventualmente, o excedente é
trocado, os valores de uso só se convertem em mercadorias no ato da troca e, portanto, o
trabalho só é abstraído na troca. Já no caso da economia mercantil, o processo de trabalho
(valor de uso) existe apenas enquanto suporte do processo de formação de valor. Assim, “este
valor de uso es una mercancía desde su concepción y el trabajo es a la vez concreto y valor de uso em Marx
PESQUISA & DEBATE, SP volume 9, número 2(14), p. 17-43, 1998.
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Assim, o trabalho mercantil é uma unidade entre o trabalho concreto e o
trabalho abstrato. Logo, a mercadoria, por ser produto do trabalho humano, é um valor
de uso por ser produto de um trabalho material específico e um valor por ser fruto de um
trabalho humano indistinto, genérico, abstrato. Portanto, a substância do valor para
Marx não é, e nem poderia ser, o valor de uso.
Ao tratar das determinações sociais e históricas do produto do trabalho
humano (valor), em “detrimento” das universais (valor de uso), Marx estaria reduzindo
por completo o papel do valor de uso na análise das relações mercantis-capitalistas de
produção?
Parece que exatamente essa é a conclusão que deve ser tirada da análise feita
anteriormente. Vários estudos marxistas também chegam a essa conclusão.
Ao constatar que a mercadoria, enquanto um valor de uso, é objeto de estudo
das ciências naturais e, enquanto valor, objeto de um ciência social, Hilferding afirma:
“Por lo tanto es objeto de la economía el aspecto social de la mercancía,
del bien, en la medida en que es símbolo de la vinculación social,
mientras que su aspecto natural, el valor de uso se encuentra má allá del
circulo de observaciones de la economía política.”(Hilferding, Rudolf.
“Böhm-Bawerks Marx-Kritik”, Marx-Studien, 1904, p.9, citado em
Rosdolsky, 1978, p.101-102).
Sweezy, de forma mais veemente, observa que
“El valor de uso no da a una mercancía ningún carácter peculiar. Los
objetos de consumo humano en todas la épocas y bajo cualquier forma de
sociedad poseen igualmente valor de uso. El valor de uso expresa cierta
relación entre el consumidor y el objeto consumido. La economía
política, por otra parte, es una ciencia social de las relaciones entre las
gentes ... Marx, excluía el valor de uso - o como ahora se le llamaría, la
‘utilidad’ - de la esfera de investigación de la economía política, en
abstracto desde el comienzo. El trabajo involucrado en la producción de mercancías produce
valor, mientras el intercambio solamente lo realiza en su forma-dinero.”(Shaikh, 1991, p.74). Marcelo Dias Carcanholo
PESQUISA & DEBATE, volume 9, número 2 (14), p. 17-43, 1998
28
virtud de que no da cuerpo directamente a una relación social.”(Sweezy,
1987, p.35-36)13.
Essas afirmações e a argumentação precedente permitem determinar, assim
como o faz Romo (1988, p.62) que: “... se sigue de aquí que el valor de uso como tal
queda fuera del campo de la investigación de la economía política”.
Poder-se-ia argumentar que o pensamento marxista nem sempre espelha
fielmente os escritos de Marx. Mas, neste caso, o próprio Marx decreta:: O valor de uso
em sua indiferença frente à determinação econômica formal, isto é, valor de uso em si
mesmo, fica além do campo de investigação da Economia Política. Apenas entre em seu
círculo quando é determinação formal.”(Marx, 1982, p.32).
Portanto, a categoria valor de uso parece não ter importância alguma na
tradição marxista, a não ser quando subordinada à forma histórica valor. Na concepção
hegemônica da ciência econômica, o valor só pode ser concebido porque o indivíduo
reconhece no bem uma utilidade, um valor de uso. Ao contrário, no pensamento
marxista, este último parece ter importância apenas quando subordinado ao valor.
4. A importância do valor de uso formal
A quase que irrelevância do valor de uso na economia política marxista, aceita
por muitos14, é um equívoco. A categoria valor de uso, embora em sua determinação
formal, é decisiva na teoria de Marx sobre o modo de produção capitalista.
13Sweezy parece relativizar quando diz que “esto no significa que el valor de uso no deba
jugar ningún papel en la economía política. Por el contrario, así como la tierra, aunque no
una categoria económica en si misma, es esencial para la producción, el valor de uso es un
prerrequisito del consumo y ... no está de ningún modo excluido por Marx de la cadena
causal de los fenômenos económicos.”(Sweezy, 1987, p.36). Apesar de contemporizar, o
valor de uso, para Sweezy, continua sem ser uma categoria econômica, não passando de um
pré-requisito para o consumo, subordinado ao valor.
14No início do seu estudo sobre os Grundrisse, publicado inicialmente em 1968, Rosdolsky já
alertava que “...precisamente entre los economistas de la escuela marxista se ha vuelto
tradición prescindir del valor de uso en la economía, de relegarlo al ámbito de la
‘merceología’.”(Rosdolsky, 1978, p.101). Parece que a advertência continua válida. valor de uso em Marx
PESQUISA & DEBATE, SP volume 9, número 2(14), p. 17-43, 1998.
29
O que significa mais precisamente, no trecho de Marx citado anteriormente, a
expressão determinação formal? Será que referenda as concepções marxistas, segundo
as quais o valor de uso só importa enquanto subordinado ao valor? Não parece ser esta
a visão de Marx. Naquele trecho, ele afirma que o valor de uso em si, enquanto produto
ou bem abstraído de suas determinações históricas, não joga nenhum papel na economia
política. A significação econômica do valor de uso só aparece na sua relação com as
condições sociais de produção, tanto quando é influenciado por estas, como quando
influi nessas condições. Portanto, o valor de uso formal, por assim chamá-lo quando não
se apresenta unicamente em suas propriedades materiais, não pode ser tratado apenas
como elemento subordinado, assim como o fazem os defensores da tese da irrelevância
do valor de uso. Afortunadamente, Marx deixa clara sua visão nos Grundrisse: “Por
consiguiente esta sustancia (valor de uso - MDC) aparece en primer término como
mero presupuesto, al margen de toda consideración de la economía política, y sólo
ingresa a la esfera de esa consideración cuando las relaciones formales la modifican o
al presentarse como modificadora de éstas.”(Marx, 1987a, V. 2, p.425 - o destaque não
é original).
Tratemos pois do valor de uso formal e sua importância para a teoria de Marx
sobre o modo de produção capitalista15.
Pelo fato do trabalho mercantil ser trabalho concreto, produtor de valor de uso,
e trabalho abstrato, produtor de valor, o processo de produção mercantil se desdobra em
um processo de trabalho e um processo de formação de valor. No caso de uma
economia mercantil-capitalista, esse último se transforma em um processo de
valorização, pois se caracteriza pela produção de um valor excedente.
O processo de trabalho consiste na atividade concreta que o homem exerce
orientada para um fim específico, para a produção de um determinado produto. Para
15Rosdolsky (1978, p.111-118) analisa a importância do valor de uso no que diz respeito aos
conceitos de equivalente geral, mercadoria força de trabalho, capital fixo e circulante, renda
da terra e taxa de lucro, além de ressaltá-la na reprodução do capital social. Além de
acrescentar alguns pontos, permitimo-nos rearranjar os dois primeiros de Rosdolsky, a fim de
ilustrar a noção de mercadoria especial, desenvolvida mais adiante. Marcelo Dias Carcanholo
PESQUISA & DEBATE, volume 9, número 2 (14), p. 17-43, 1998
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tanto, ele procura transformar o objeto de trabalho, utilizando instrumentos que lhe
facilitam a atividade, chamados de meios de trabalho. Do ponto de vista do resultado,
tanto meio como objeto de trabalho são considerados meios de produção. O processo de
trabalho é, portanto, a efetivação (objetivação) do trabalho concreto e,
conseqüentemente, tem como fim a produção de valores de uso.
Por outro lado, o processo de valorização diz respeito à criação de valor, ao
trabalho abstrato. Como o valor de uso é um suporte material para o valor, o processo de
trabalho é um meio para o de valorização. Pode-se dizer que a lógica do processo de
trabalho se submete à do processo de valorização. Assim, as leis da acumulação de
capital influem na evolução do processo de trabalho. O objetivo primordial é o ganho
crescente de produtividade 16. Quanto maior seja a proporção entre os meios de
produção e a força de trabalho empregada 17, maior a produtividade desta última, já que
conseguirá operar e transformar uma maior quantidade de meios e objeto de trabalho. O
aumento da produtividade, por sua vez, implica na redução do tempo de trabalho para
produzir uma mercadoria e, por conseguinte, do valor desta. Isto leva a uma maior
competitividade do capital que conseguir implementar essa modificação no seu processo
de trabalho, pois a mercadoria não é vendida pelo seu valor individual, mas pelo de
mercado, ou seja, pelo tempo de trabalho socialmente necessário para produzi-la. Como
esse capital conseguiu reduzir o valor individual de sua mercadoria, poderá apropriar-se
de um valor extra. Além disso, se o aumento de produtividade acontecer nos setores que
produzem as mercadorias que compõem o valor da força de trabalho, este último cairá,
levando ao aumento da taxa de mais-valia, o que possibilita uma maior acumulação do
capital.
Assim, o lado material da produção influi de forma crucial na valorização do
capital. Marx não teria gasto tantas páginas do livro I de O Capital com o processo de
16Não pode ser desconsiderado o aumento da intensidade do trabalho, que potencializa a
capacidade de produção de valor por parte do trabalhador, o que eqüivale a um aumento da
mais-valia absoluta. Isto só reforça o nosso argumento da importância do lado material da
produção, portanto do valor de uso. valor de uso em Marx
PESQUISA & DEBATE, SP volume 9, número 2(14), p. 17-43, 1998.
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trabalho se não visse importância alguma no valor de uso, no lado material da
mercadoria e do processo de produção, para a sua explicação sobre o funcionamento da
economia capitalista.
O valor de uso também tem influência na duração do tempo de produção e do
tempo de circulação do capital. As mercadorias, por sua própria natureza, são
perecíveis. Se elas não forem compradas - vendidas, nem tampouco utilizadas no
processo produtivo, elas estragam e perdem a capacidade de serem portadoras de valor,
na medida em que perdem seu valor de uso. Esse prazo de deterioração é variável
conforme o tipo de mercadoria, de valor de uso, que se observe. O fato é que isso influi
no tempo que o valor-capital demora para completar os processos de produção e
circulação.
O perecimento das mercadorias é apenas um exemplo das formas como o valor
de uso pode influir na rotação do capital. Um outro diz respeito à diferença entre os
elementos fixo e circulante do capital. O capital fixo se caracteriza por ceder o seu valor
ao produto final ao longo de vários processos de produção, enquanto o capital circulante
entre, por completo, na formação do valor em apenas um período de produção. O capital
fixo é reposto materialmente descontinuamente de tempos em tempos, já o capital
circulante deve sê-lo a cada processo produtivo. Isto faz com que o tempo de rotação do
capital fixo seja superior ao do capital circulante. Estas diferenças entre os elementos do
capital não são fortuitas18. A durabilidade relativa entre eles se apresenta como diferença
qualitativa e determinante na rotação do capital. Em outras palavras, as diferenças entre
17Por ser de importância decisiva na teoria de Marx, a mercadoria força de trabalho será
melhor analisada adiante, dentro do que se chamou de mercadorias especiais.
18A total incompreensão dos conceitos de Marx também se faz presente no tocante aos
elementos do capital. Não são poucos os autores que confundem a diferenciação entre o
capital constante e o variável com a distinção entre o capital fixo e o circulante. Braudel
(1996, p.210) é um deles. Enquanto no livro I de O Capital, Marx estava preocupado com a
formação do valor e, portanto, era esse o critério para diferenciar capital constante (que
transfere o seu valor) de variável (que gera valor), no livro II esse valor já fora produzido,
restando investigar como ele circulava; essa diferença no modo de circulação, na rotação, é
um outro critério para distinguir os mesmos elementos do capital (máquinas, equipamentos,
matérias-primas, força de trabalho, etc.), observando-os como capital fixo ou circulante. Marcelo Dias Carcanholo
PESQUISA & DEBATE, volume 9, número 2 (14), p. 17-43, 1998
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os valores de uso que compõem os elementos do capital alteram a rotação deste.
Novamente, o valor de uso influi nas relações formais da economia capitalista.
Depois de estudar a rotação do capital, Marx se propõe a investigar a
reprodução do capital social total. Enquanto na produção não importava o valor de uso
que serviria de substrato material para o valor, na reprodução faz diferença. Agora não
interessa apenas a substituição (recomposição) do capital enquanto valor, mas também
de sua recomposição material em valor de uso. Afinal, para que um novo período de
produção seja iniciado, o capital necessita novamente de meios de produção e força de
trabalho no mesmo montante, em se tratando da reprodução simples, ou em maior
número, no caso da reprodução ampliada. A força de trabalho pode até ser conseguida
no exército industrial de reserva, mas os meios de produção devem ser produzidos no
montante necessário, tanto em termos de valor, como de unidades e requisitos
tecnológicos para a nova produção. Além do que, meios de subsistência devem ser
produzidos em maior quantidade para atender a demanda acrescida pelos novos
trabalhadores, no caso da reprodução ampliada.
Assim, no estudo da reprodução do valor-capital, este interessa enquanto
unidade entre valor e valor de uso. Aliás, aliado ao fato de que se trata de um estudo dos
capitais individuais como componentes do capital social total, é por isso que Marx
afirma ser o ciclo do capital-mercadoria o mais adequado para esse estudo 19.
No que se refere ao livro III, o valor de uso também tem importância em temas
como a renda da terra e a taxa de lucro, como ressalta Rosdolsky (1978, p.116-118).
Entretanto, em sua teoria do modo de produção capitalista, Marx define o que se pode
chamar de três mercadorias especiais, o equivalente geral (dinheiro), a força de trabalho
e a mercadoria-capital. A especialidade dessas mercadorias não reside nem em seus
valores de uso materiais nem em seus valores, mas em seus valores de uso formais, isto
é, em utilidades que elas assumem em suas relações formais com a economia mercantil-
19Essa adequação torna-se mais interessante quando se recorda que as definições de
reprodução, simples e ampliada, e de acumulação, dadas no livro I, foram apresentadas
novamente no livro II dentro do estudo do ciclo do capital-produtivo, e não no do ciclo do
capital-mercadoria. valor de uso em Marx
PESQUISA & DEBATE, SP volume 9, número 2(14), p. 17-43, 1998.
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capitalista. É neste ponto que, em nossa opinião, reside a principal importância do valor
de uso para o pensamento de Marx.
5. Mercadorias especiais: equivalente geral (dinheiro), força de trabalho e
mercadoria capital
Após descobrir por trás do valor de troca o valor, Marx volta a analisar o
desenvolvimento dessa forma do valor, só que agora já entendendo-a como a forma de
manifestação do valor.
Quando as relações mercantis não são muito desenvolvidas e, portanto, as
mercadorias são encaminhadas esporadicamente para a troca, define-se o que Marx
chamou de forma simples do valor. Nessa forma, uma mercadoria A qualquer pode se
encontrar com outra mercadoria B em uma troca representada, como anteriormente, por
a unidades de A = b unidades de B
Nessa troca, representa-se o valor de a unidades de A pela equivalência com B
em b unidades. A mercadoria A não pode expressar o seu valor por si mesma; afinal, a
sua forma de expressão é relativa. Ela o faz através de B, ou seja, através de um outro
conteúdo material. A análise dessa forma permite várias conclusões interessantes, mas
nos interessa aqui apenas uma delas. Afirmar que o valor da mercadoria A só consegue
se expressar pela sua igualação com um outro valor de uso é constatar a contradição
entre o valor e o valor de uso de A, pois para que o primeiro possa expressar-se deve-se
negar o segundo. Mais do que isso, a contradição que é interna (própria) à mercadoria
agora se manifesta externamente. Tem-se o desenvolvimento dessa contradição entre o
valor e o valor de uso de A. Isto ocorre porque a mercadoria A não só afirma o seu valor
negando seu próprio valor de uso, mas também o faz igualando-se ao valor de uso de B,
totalmente distinto do seu. Tudo se passa como se a mercadoria A dissesse que o seu
valor é tão distinto do seu valor de uso que o primeiro se iguala a um outro valor de
uso, no caso B. Marcelo Dias Carcanholo
PESQUISA & DEBATE, volume 9, número 2 (14), p. 17-43, 1998
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Com o desenvolvimento das trocas, a mercadoria A passa a ser trocada não
apenas por B, mas também por C, D e assim por diante. Isto nos permite reescrever que:
a unidades de A = b unidades de B
c unidades de C
d unidades de D
A essa possibilidade de A ser trocada por várias outras mercadorias, Marx
chamou de forma total do valor. Nela, a contradição entre valor e valor de uso também
está presente, pois o valor de A continua negando o seu valor de uso ao se expressar. No
entanto, ela está ainda mais desenvolvida do que na forma simples. Na forma total, o
valor da mercadoria se apresenta como contrário ao seu valor de uso não só igualando
se a um outro valor de uso, como na forma simples, mas a todos os outros valores de
uso (B, C, D, etc.). A contradição aumentou sua intensidade, desenvolveu-se.
Da mesma maneira que o produtor de A pode trocar sua mercadoria por todas
as outras, os produtores destas podem trocá-las por A. Assim, tem-se que
b unidades de B
c unidades de C
d unidades de D
= a unidades de A
= a unidades de A
= a unidades de A
Isso define a forma geral do valor. Todas as mercadorias expressam seus
valores, de uma forma relativa, em uma única, que cumpre o papel de equivalente, que
representa a equivalência entre os valores, a forma equivalente geral do valor. A
mercadoria A é desejada (comprada) não mais pelo seu conteúdo material, pelo seu
valor de uso específico, mas pelo fato de ser a representante de todos os outros valores.
Afinal, um produtor da mercadoria B, para comprar a mercadoria C, não necessita mais
que o produtor de C deseje B. Basta que ele troque B pelo equivalente geral A e, com
este, compre C. O equivalente geral é aceito por todos os outros produtores não por suas
propriedades materiais específicas, mas por servir de representante dos valores. O valor
de uso de A, desejado (demandado) pelos produtores das outras mercadorias não é o
que provém do trabalho concreto para produzí-la, mas o que lhe foi outorgado pelo
desenvolvimento da sociedade mercantil, das trocas, das formas do valor. Assim, o valor de uso em Marx
PESQUISA & DEBATE, SP volume 9, número 2(14), p. 17-43, 1998.
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valor de uso de A que a torna especial, enquanto equivalente geral, não é o específico
mas o formal.
A forma dinheiro observada por Marx define-se quando uma mercadoria
específica (o ouro, na época deste autor) assume o papel de equivalente geral. Assim, a
especificidade que faz do dinheiro uma mercadoria especial é análoga à da forma
equivalente geral. O valor de uso formal do dinheiro (equivalente geral) de ser
representante dos valores é o que o torna uma mercadoria especial. É importante
salientar que, em primeiro lugar, o equivalente geral (dinheiro) só pode cumprir esse
papel por ser ele também uma mercadoria. Ele só pode representar valores por ser ele
um valor; até porque o valor só pode se manifestar através do valor de troca, isto é, na
relação entre dois valores 20. Em segundo lugar, a origem (gênese) do conceito de
dinheiro se dá pelo desenvolvimento das formas do valor; mais especificamente, pelo
desenvolvimento da contradição entre o valor e o valor de uso. de fato, na forma
equivalente geral (dinheiro), os valores distinguem-se não só de seus próprios valores
de uso, como também de qualquer outro, uma vez que o equivalente geral se apresenta
apenas como representante do valor 21. Os valores das mercadorias continuam se
expressando em um valor de uso distinto dos seus, só que este não é mais específico,
mas um valor de uso formal de representar os valores. De maneira geral, pode-se dizer
que o valor encontrou uma mercadoria especial (dinheiro) que é aceita - tem um valor
de uso - por ser o representante dos valores.
Quando Marx constata que a mais-valia, ou o capita l 22, não pode originar-se
da circulação e tampouco pode não se originar da circulação, é que se depara com outra
20Não faz sentido portanto a crítica de Becker (1972, p.89) que aponta uma contradição na
concepção de Marx sobre o dinheiro quando afirma que “...lo que es una parte de lo valorado
no puede ser, al mismo tiempo medida de la valoración.” O dinheiro só é medida
(representante é uma palavra mais adequada) do valor justamente por ser uma mercadoria e,
portanto, parte do que Becker chamou de valorado.
21 Como observou Coutinho (1997, p.70), “ao ser desdobrado como valor, a partir da antítese
valor de uso / valor contida na mercadoria, o dinheiro aparecerá como substantivação do
valor de troca; enfim, como desenvolvimento da relação social básica contida na mercadoria.”
22 A circulação mercantil-capitalista só se define quando a mais-valia passa a ser produzida e
apropriada pelo capital. Como dizem Shaikh & Tonak (1994, p.29), “all types of production Marcelo Dias Carcanholo
PESQUISA & DEBATE, volume 9, número 2 (14), p. 17-43, 1998
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mercadoria especial. O capital não pode originar-se da circulação porque, se
equivalentes são trocados, é impossível iniciar a circulação com um montante de valor e
terminá-la com esse valor acrescido da mais-valia e, se as mercadorias não forem
trocadas pelos seus valores, essa situação só define uma maior apropriação por parte de
uns e, por conseguinte, uma menor por parte de outros. No final das contas, é o mesmo
valor que circula. Por outro lado, o capital deve passar obrigatoriamente pela circulação
(compra e venda) para que possa apropriar-se de uma mais-valia.
A questão toda é: como é possível manter a troca de equivalentes como norma,
isto é, que o capital compra as mercadorias por seus valores, vende por seus valores e,
mesmo assim, consegue no final mais valor do que lançou?
Essa modificação de valor não pode ocorrer na própria forma dinheiro, pois ela
apenas representa um valor já produzido. Se a circulação do capital se define por D - M
- D’, com D’>D, essa modificação só pode ocorrer na forma M, mas não com seu valor,
pois são trocados equivalentes, mas com seu valor de uso. Em outras palavras, o capital
precisa encontrar no mercado uma mercadoria cujo consumo seja gerador de valor.
Assim, o capital pode comprar mercadorias por seus valores e, ao vender, conseguir um
mais-valor.
Obviamente, trata-se de uma mercadoria especial. É a mercadoria força de
trabalho. Marx a define como um conjunto de faculdades físicas e espirituais que
existem na corporalidade (personalidade) de um homem, posto em movimento sempre
que produz valores de uso. Como toda mercadoria, ela possui um valor definido pelo
tempo de trabalho socialmente necessário para produzí-la. Diferentemente das outras
mercadorias, a produção da força de trabalho pressupõe a existência do indivíduo
(homem), e ele necessita para sua manutenção/reprodução de meios de subsistência que
create use values. Insofar as production is organized for direct use, as in household
community production, it produces use values alone. On the other hand, insofar as it is
organized for sale for revenue (income) ... it produces use values that are simultaneously
values (materializations of abstract labor time). Finally, insofar as production is for sale for
profit, it represents capitalist commodity production that produces not only use values but
also surplus value.” (destaque original). valor de uso em Marx
PESQUISA & DEBATE, SP volume 9, número 2(14), p. 17-43, 1998.
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satisfaçam suas necessidades básicas 23. Logo, o valor da força de trabalho se altera de
acordo com a mudança no valor dos meios de subsistência. A forma de manifestação
desse valor, ou seu valor de troca, é o salário.
O que torna a mercadoria força de trabalho especial não é isso, mas o fato de
que o seu valor de uso consiste na exteriorização dessa capacidade de trabalho, isto é,
trabalho em si. O capital procura (demanda) no mercado uma mercadoria que lhe sirva -
tenha um valor de uso - para acrescentar valor, e encontra a força de trabalho com um
valor de uso próprio (formal) de objetivar trabalho. O consumo do seu valor de uso se
dá, como em qualquer outra mercadoria, fora do mercado. O processo desse consumo é
simultaneamente um processo de produção de mercadorias, enquanto unidades entre
valor e valor de uso, e de mais-valia, de um valor excedente.
No que se refere à mercadoria força de trabalho pode-se afirmar três coisas.
Em primeiro lugar, a mais-valia que define a economia mercantil-capitalista é
decorrência da contradição entre o valor e o valor de uso que forma a mercadoria força
de trabalho. Assim como nas outras mercadorias, o comprador (capital) demanda a força
de trabalho objetivando apropriar-se do seu valor de uso, pagando por isso o seu valor
24. Por outro lado, o vendedor (trabalhador) aliena o valor de uso de sua mercadoria
procurando apropriar-se do seu valor. Assim como antes, a mercadoria nega o seu valor
de uso para afirmar seu valor.
A mais-valia como fruto da contradição valor-valor de uso na mercadoria força
de trabalho nos leva ao segundo ponto. O capital não consegue apropriar-se de um
excedente porque pague pela força de trabalho algo inferior ao seu valor. Ele paga este
último e, mesmo assim, consegue apropriar-se da mais-valia. É este o grande desafio de
23 A concepção de Marx sobre o valor da força de trabalho não tem nenhuma relação com a
noção de salário-susistência, presente em algumas interpretações. Quando Marx fala em
subsistência, isso não se restringe a uma subsistência “física” mínima, mas inclui aspectos
morais, por assim dizer.
24 Isto não impede que, em determinadas situações de mercado, o salário esteja abaixo ou
acima do valor da força de trabalho. Aqui também vale a afirmação de Marx de que o preço
oscila em torno do valor. Marcelo Dias Carcanholo
PESQUISA & DEBATE, volume 9, número 2 (14), p. 17-43, 1998
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uma teoria que explica a origem do excedente, assumindo a troca de equivalentes. Como
visto, essa explicação torna-se no mínimo complicada até negando-se a troca de
equivalentes. A total rejeição de Marx pela explicação da mais-valia através do “roubo”
do trabalhador é clara quando ele afirma:
“...yo no presento nunca la ganancia del capitalista como una
sustracción o un ‘robo’ cometidos contra el obrero. Por el contrario,
considero al capitalista como un funcionario indispensable del régimen
capitalista de producción ... y demuestro también por extenso que incluso
en el cambio de mercancías se cambian solamente equivalentes y que el
capitalista - siempre y cuando que pague al obrero el valor real de su
fuerza de trabajo - tiene pleno derecho - dentro de este modo de
producción - a apropriarse la plusvalía.” (Marx, 1987b, p.407).
Apropriar-se do valor de uso da força de trabalho e pagar o seu valor. É este o
segredo da mais-valia. Como visto anteriormente, isto só tornar-se-ia possível para o
capital se ele encontrasse uma mercadoria especial cujo valor de uso lhe permitisse
apropriar-se de um mais-valor. Isto define o terceiro ponto a ressaltar na mercadoria
força de trabalho. Trata-se de uma mercadoria especial por causa do seu valor de uso.
Diferentemente de outras mercadorias, a força de trabalho não tem sua especificidade
em alguma propriedade material que lhe permita satisfazer necessidades do homem.
Pode-se dizer que essa propriedade é social e satisfaz a necessidade de uma determinada
forma social, a economia-mercantil capitalista. Daí, dizer-se que o valor de uso formal
da força de trabalho, sua capacidade de produzir valor, é o que a torna especial.
Em princípio pode-se pensar que os valores de uso formais do dinheiro e da
força de trabalho possuem o mesmo status. De fato, eles definem as especialidades das
mercadorias, porém o dinheiro serve como um representante geral dos valores na
economia mercantil, inclusive a capitalista, e a força de trabalho é a mercadoria que ao
ser consumida produtivamente gera a mais-valia. Em suma, o dinheiro tem o seu valor
de uso ligado à forma mercantil, enquanto que a mercantilização da força de trabalho
está ligada apenas à forma capitalista de produção de mercadorias.
Quando o dinheiro passa a ser uma das formas em que o conteúdo capital se
apresenta dentro do seu processo de circulação, ele passa a servir como fonte de mais-valor de uso em Marx
PESQUISA & DEBATE, SP volume 9, número 2(14), p. 17-43, 1998.
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valia. Além do seu valor de uso de representar valores, o dinheiro passa a ter, enquanto
forma do capital, um valor de uso adicional. Como afirma Marx, o dinheiro “...adquire,
além do valor de uso que possui como dinheiro, um valor de uso adicional, a saber, o de
funcionar como capital. Seu valor de uso consiste aqui justamente no lucro que, uma
vez transformado em capital produz.” (Marx, 1988, vol. IV, p.241). Nesse sentido, a
transferência para a forma dinheiro do capital das propriedades de gerar um valor a mais
faz surgir uma nova mercadoria. Ainda segundo Marx, “nessa qualidade de capital
possível, de meio para a produção de lucro, torna-se mercadoria, mas uma mercadoria
sui generis. Ou, o que dá no mesmo, o capital enquanto capital se torna mercadoria”25
(Marx, 1988, vol. IV, p.241).
A mercadoria-capital, assim como definida por Marx, é a terceira que
consideramos como especial no modo de produção capitalista.
Essa autonomização da forma dinheiro do capital separa este último em
capital-propriedade e capital-função. O primeiro define o capitalista prestamista que
possui o dinheiro-capital mas não deseja consumir o seu valor de uso de funcionar como
capital. Por outro lado, o segundo define o capitalista industrial que, embora deseje
iniciar um processo de circulação do capital, não possui os meios necessários para tal
iniciativa. Assim, o capitalista prestamista transfere ao capitalista industrial, sem receber
nenhum equivalente imediato por isso, e este se encarrega de comprar os meios de
produção e a força de trabalho necessários para o processo produtivo, além de procurar
garantir a realização da produção. Com o resultado desta, ele pode pagar o empréstimo,
acrescido dos juros, ao prestamista e, ainda assim, apropriar-se de um lucro (ganho
empresarial).
Essa apresentação sintética do que Marx chamou de capital portador de juros
pode deixar passar alguns pontos importantes. A transferência do capital do proprietário
para o capitalista em função não expressa ato algum de compra nem de venda; ela não
constitui etapa do real processo de circulação do capital, que só é realizado pelo
25 Embora a forma por excelência da mercadoria-capital seja o dinheiro, Marx (1988, vol.IV,
p.245) faz referência ao empréstimo de capital fixo como uma outra forma. Marcelo Dias Carcanholo
PESQUISA & DEBATE, volume 9, número 2 (14), p. 17-43, 1998
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capitalista industrial. Ora, se não existe compra nem venda, isto é, intercâmbio de
mercadorias equivalentes, tampouco existe transferência da propriedade da mercadoria.
O que o prestamista aliena não é a propriedade de sua mercadoria - é justamente por isso
que ele pode cobrar o juro posteriormente -, mas o dinheiro-capital, ou seja, o capital
funcionando como produtor de mais-valia. A venda da mercadoria-capital assume a
forma especial de empréstimo e o que o vendedor aliena é o seu valor de uso, ou
melhor, a mercadoria-capital como valor de uso de produzir mais-valia. Esta
característica é que torna a mercadoria-capital peculiar e especial.
Se é uma mercadoria, além do valor de uso formal (produzir excedente), deve
possuir um valor e uma forma de expressão deste. De fato, as formas dinheiro e
mercadoria possuem valores determinados pelos seus tempos de trabalho socialmente
necessários para produção. Entretanto, o que se vende na mercadoria-capital não é sua
forma mas sua capacidade de funcionar como capital, com a propriedade específica de
produzir excedente. Vende-se uma função, uma capacidade, e não um tempo de trabalho
específico. Pode-se dizer que a mercadoria-capital não tem um valor próprio, embora
tenha a capacidade de acrescentar valor àquele presente nas suas formas. Por
conseguinte, se o preço é a expressão em dinheiro do valor e, se este último não pode
ser concebido, o preço torna-se uma categoria “irracional”. O capitalista industrial paga
juros ao prestamista porque o que é pago não é o valor da mercadoria-capital, mas o
direito à valorização do dinheiro-capital 26. A determinação desse “preço” também
segue os meandros da oferta e da procura, representadas pelo conjunto de proprietários
do capital e de capitalistas em função respectivamente.
A mercadoria-capital, além de ser especial por causa de seu valor de uso
formal de ser produtora de mais-valia, é peculiar. Sua peculiaridade reside na
26 “Se se quiser chamar o juro de preço do capital monetário, então essa é uma forma
irracional de preço, completamente em contradição com o conceito de preço da mercadoria.
O preço se reduz aqui a sua forma puramente abstrata e sem conteúdo, ou seja, ele é
determinada soma de dinheiro paga por qualquer coisa que, de uma maneira ou de outra,
figura como valor de uso; enquanto, segundo seu conceito, o preço é igual ao valor expresso
em dinheiro desse valor de uso.” (Marx, 1988, vol.IV, p.251-252). valor de uso em Marx
PESQUISA & DEBATE, SP volume 9, número 2(14), p. 17-43, 1998.
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incapacidade de definir-lhe um valor, como fora feito para as outras, já que o que é
negociado é sua função e não sua propriedade.
6. Conclusão
O resgate da importância da categoria valor de uso que este trabalho se propôs
a fazer não é, de forma alguma, conceder espaço para a abordagem tradicional da teoria
subjetiva do valor. O valor de uso, em Marx, embora seja uma pré-condição, continua
não regulando as trocas pelas razões expostas anteriormente. O que tal resgate procurou
fazer foi mostrar que o valor de uso é fundamental para a teoria de Marx sobre o modo
de produção capitalista quando ele é modificado pelas relações formais da economia
capitalista, ou ainda, quando ele modifica essa relações, ou seja, quando ele se torna
uma determinação formal econômica, um valor de uso formal.
A especificidade do valor de uso formal nos permitiu definir as mercadorias
especiais. Marx explicita isto quando diz 27:
“...en el desarrollo de la forma de valor de la mercancía y en última instancia
de su forma-dinero y, por lo tanto, del dinero, el valor de una mercancía se
manifiesta en el valor de uso de otra ... la propia plusvalía se deriva del valor
de uso de la fuerza de trabajo ... en mi obra el valor de uso desempeña un
papel importante muy distinto del que desempeña en toda la economía
anterior ...” (Marx, 1987b, p.417, destaques originais).
A única ressalva que nos atrevemos a fazer a Marx é que o crucial papel que o
valor de uso joga em sua teoria não só é muito distinto da economia anterior, mas
também de toda aquela que a sucedeu..
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
27Talvez pelo fato de não ter conseguido desenvolver plenamente os conceitos do livro III,
Marx tenha esquecido de citar a importância da mercadoria-capital. Marcelo Dias Carcanholo
PESQUISA & DEBATE, volume 9, número 2 (14), p. 17-43,

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