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sábado, 27 de agosto de 2022

Muitas reformas socialistas (e haverá socialismo sem democracias avançadas?) necessitava a URSS, mas não a rua ruína, o saque dos oligarcas, a mortalidade infantil, a fome...Quem é que no"Ocidente" ligou essa catástrofe, a essa roubalheira abençoada pelo Papa?

 


Recomendamos-lhe a leitura deste lúcido artigo de um camarada suíço. Não é verdade que a perestroika liquidacionista estava na continuação da linha histórica soviética: como os precursores do atual PRCF demonstraram na época (enquanto todo o Comité Central do PCF na época estava entusiasmado com Gorbachev ...), não foi nada mais que a rampa de lançamento para a contrarrevolução. Notaremos também no artigo a seguir as justas considerações antiutópicas do seu autor, as suas referências implícitas à análise dialética-materialista do comunismo e o seu justo questionamento da expressão “socialismo de mercado”.

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Yuri Andropov, ou a reforma do socialismo que infelizmente não ocorreu

Alexander Corsier *

Quem quer o fortalecimento da democracia deve querer também o fortalecimento e não o enfraquecimento do movimento socialista; renunciar à luta pelo socialismo é renunciar ao mesmo tempo ao movimento operário e à própria democracia”.

Rosa Luxemburgo

Publicado em 1983 no jornal Kommounist (jornal teórico do PCUS), por ocasião do centenário da morte de Karl Marx, o artigo de Yuri Andropov intitulado “A doutrina de Karl Marx e certas questões da construção socialista na URSS” , teve um certo impacto e foi sistematicamente citado em publicações soviéticas contemporâneas. Foi mesmo – para além da homenagem prestada ao fundador do socialismo científico – a oportunidade de o novo secretário-geral do PCUS, recém-nomeado, redigir um artigo programático detalhando as prioridades políticas e as principais orientações que pretendia implementar durante o seu mandato. Este artigo foi rapidamente esquecido; três anos após a sua redação, de facto, começava a perestroika. Não deveria, pois, ter sido lido e merece ser lido e relido hoje, de tal forma é esclarecedor e instrutivo sobre o marxismo e a luta ideológica e política de um partido comunista sobre a realidade soviética dos anos 80, sobre os problemas reais que existiam então e as soluções que, para eles, era possível apontar. Longe de ser apologética, rotineira, esclerosada e desligada da realidade de que tem a reputação – infundada – o marxismo soviético tardio, revela-se um pensamento vivo, profundo e lúcido que é sempre instrutivo e se deve estudar hoje.

Eleito secretário-geral do PCUS, substituindo Leonid Brejnev, em 12 de novembro de 1982, Yuri Andropov ocupou o cargo mais alto à frente do Partido e do Estado apenas durante 15 meses, tendo infelizmente partido demasiado cedo, devido à doença, em 9 de fevereiro de 1984. Tinha apenas 69 anos quando deixou este mundo. Constantin Tchernenko sucedeu-lhe durante um ano, o mais injustamente esquecido dos secretários-gerais do PCUS (de quem tínhamos falado no número anterior de Encre Rouge), que também partiu demasiado cedo. Seguiu-se-lhes Mikhail Gorbachev ...

Tendo exercido muitas funções no Partido e no Estado – designadamente à frente do KGB, mas é importante lembrar que o próprio Andropov não era proveniente dessa força, e que a sua ação à frente dos serviços secretos tinha como objetivo, em particular, trazê-los de volta ao controlo do poder civil e para reforçar a legalidade socialista contra os abusos cometidos no passado – profundo e brilhante teórico marxista, homem de grande cultura, Yuri Andropov tinha plena consciência das contradições e das dificuldades reais que se acumulavam, e das insuficiências da direção de Brejnev, que demorava a tomar as medidas enérgicas exigidas.

Ele estava determinado a falar francamente sobre os problemas reais e a empenhar-se nas reformas que fossem necessárias. Reformas que, no entanto, deviam aparecer na continuidade, que deviam estar em conformidade com o sistema socialista da URSS, ser um passo em frente no desenvolvimento do socialismo, na direção do comunismo, não uma regressão, um remendo do sistema com elementos estranhos, como foi o caso com Gorbachev, com o resultado que conhecemos. 15 meses, claramente, não são suficientes para reformar um país. No entanto, as medidas tomadas por Yuri Andropov durante o seu mandato, como a sua ação anterior, bem como os seus escritos, provam que ele tinha a capacidade e a vontade para o fazer, que o triste desfecho de 1991 não era fatal, que o socialismo soviético ainda possuía grandes potencialidades, que exigiam apenas ser desenvolvidas.

O socialismo desenvolvido e os seus problemas económicos

O estágio de desenvolvimento alcançado pela sociedade soviética na década de 1970 foi definido pelo PCUS como “socialismo desenvolvido”. Esta frase tem sido muitas vezes mal compreendida – de boa ou má-fé – e interpretada como um termo apologético, destinado a qualificar a URSS, senão um paraíso socialista, pelo menos uma sociedade plenamente desenvolvida, moderna e próspera. No entanto, este não é o seu significado, e é uma categoria científica e não apologética. “Socialismo desenvolvido” significa uma sociedade que se tornou de certo modo totalmente socialista, que já não tem (ou apenas marginalmente) elementos não socialistas (capitalistas ou pré-capitalistas), e que forma um sistema: um sistema socialista coerente operando de acordo com as leis internas que lhe são próprias.

Mas é verdade que essa expressão poderia induzir a ideia de uma certa finalização, que favorecia formas de imobilidade, de ver menos as contradições reais do sistema e as exigências de desenvolvimento, de mudança, de reforma. Também é verdade que a propaganda do período de Brejnev, se nunca ignorou completamente os problemas e insuficiências existentes, muitas vezes tendeu a insistir demasiado nos sucessos – muito reais, aliás – a ponto de exagerá-los e apresentar a realidade soviética melhor do que ela realmente era.

Ora, a realidade soviética estava longe de ser sempre estimulante e correspondia apenas imperfeitamente à imagem de uma sociedade socialista desenvolvida: a escassez era real, as necessidades da população em bens de consumo não eram suficientemente satisfeitas e as técnicas e infraestruturas, às vezes, estavam longe de serem modernas, principalmente no campo. Como resultado, os cidadãos soviéticos sentiam cada vez mais uma profunda desconexão entre a retórica do Partido e a realidade das suas vidas. Isso deixava à propaganda burguesa e de “esquerda” ocidental não comunista a possibilidade de abrir brechas para denegrir o socialismo soviético, para todos os esquerdistas afirmarem que nem sequer era socialismo, uma vez que não correspondia à sua definição, completamente dogmática e abstrata, do que o socialismo deve ser. A essas pessoas, Yuri Andropov deu uma resposta contundente:

Até hoje, os ideólogos da burguesia e do reformismo constroem sistemas inteiros de argumentos que procuram provar que a nova sociedade criada na URSS e nos demais países irmãos não corresponderia ao modelo de socialismo concebido por Marx. Haverá, a acreditar neles, um divórcio entre a realidade e o ideal. Mas, com conhecimento de causa ou por ignorância, esquecemos que, ao desenvolver a sua doutrina, Marx não foi minimamente guiado pelas exigências de um ideal abstrato de um ‘socialismo’ limpinho e organizado. A ideia que ele teve do futuro regime veio de uma análise das contradições objetivas da grande produção capitalista. É precisamente esta abordagem, a única científica, que lhe permitiu definir infalivelmente os traços essenciais da sociedade que devia nascer nas tempestades purificadoras das revoluções sociais do século XX”.

Esta resposta é correta, e é aquela que ainda hoje deve ser dada a todos os esquerdistas que afirmam ser a favor da revolução e do socialismo em teoria, mas contra todas as revoluções e experiências reais de socialismo na prática. Não merecem receber outra, e a sua pretensão de serem marxistas é completamente artificial, não importa quantas citações dos clássicos com que se adornem. O povo soviético, em contrapartida, merecia uma resposta verdadeira.

O socialismo soviético, no início da década de 1980, estava longe de estar em crise. No entanto, a situação estava a começar a tornar-se preocupante. O balanço da liderança de Brejnev estava longe de ser mau. O desenvolvimento económico foi real e, em geral, espetacular, assim como o progresso social. O nível e a qualidade de vida dos soviéticos aumentaram consideravelmente. O cliché que designa esse período como de “estagnação” é totalmente falso e desonesto. Ao nível das próprias reformas, havia discussões sérias no topo do Partido, e o primeiro-ministro, Alexei Kosygin, tinha proposto reformas económicas importantes, às vezes bastante radicais, e foi capaz de implementá-las. Não foi seguido pelo politburo nas suas ideias mais radicais; que significavam, é verdade, abrir mais espaço para os mecanismos de mercado, o que poderia ser incompatível com o caráter socialista da economia soviética.

Mas, apesar de todos os sucessos alcançados, foi de longe insatisfatório, a escassez permaneceu e as necessidades da população não foram totalmente satisfeitas. Antes de criticar essas lacunas, no entanto, devemos levar em conta o ponto de partida – a pobreza absoluta e o atraso herdado do czarismo – a devastação colossal, material e humana, decorrente da Guerra Civil e da Segunda Guerra Mundial, e os constrangimentos da corrida aos armamentos, impostos pelo imperialismo, apesar de todos os esforços da diplomacia soviética em favor da coexistência pacífica. Mais grave, a economia soviética estava a perder o seu dinamismo no início dos anos 1980, o crescimento económico era cada vez mais difícil, os investimentos produziam resultados cada vez menos satisfatórios e os estrangulamentos multiplicavam-se. Tornava-se urgente identificar a origem destes problemas e procurar soluções para eles.

Se Yuri Andropov continuou a usar a expressão “socialismo desenvolvido” – na medida em que era uma categoria cientificamente correta – ia-lhe retirando qualquer conotação apologética. De facto, ele tinha plena consciência dos reais problemas e contradições, do nível na realidade pouco avançado no desenvolvimento do socialismo na URSS, da realidade económica e, mais ainda, na consciência de que o caminho ainda seria longo. Ele devia ter compreendido que Leonid Brejnev tinha falado demasiado cedo ao qualificar como “irreversível” o caráter socialista da sociedade soviética, uma vez que tinha identificado claramente as circunstâncias objetivas e subjetivas que tornariam a restauração do capitalismo possível menos de dez anos depois:

A experiência do socialismo real mostra que a transformação do 'meu', do particular, em 'nosso', em comum, não é coisa fácil. A revolução nas relações de propriedade não se reduz a um ato único em que os principais meios de produção se tornam prerrogativa de todo o povo. Obter o direito de ser o dono e tornar-se dono – autêntico, sábio, parcimonioso – estão longe de ser a mesma coisa. O povo que fez a revolução socialista ainda tem de assimilar por muito tempo a sua nova situação de dono supremo e sem partilha de toda a riqueza social: assimilar isto economicamente, politicamente e, se quiserem, psicologicamente, refinando a consciência e a conduta coletivistas. Só se pode considerar como socialista completo aquele que não é indiferente não só aos seus próprios sucessos no trabalho, ao seu bem-estar, ao seu prestígio, mas também aos assuntos dos seus colegas de trabalho, do coletivo de trabalhadores, dos interesses de todo o país, dos trabalhadores, de todo o mundo”.

Quanto a esta transformação do ‘meu’ em ‘nosso’, não podemos esquecer que se trata de um processo longo e muito variado, que não deve ser simplificado. Mesmo quando as relações socialistas de produção triunfam definitivamente, alguns ainda conservam hábitos individualistas que às vezes se reproduzem, uma aspiração de enriquecimento à custa dos outros, à custa da sociedade. Tudo isso, para usar as palavras de Marx, deriva das consequências da alienação do trabalho, que não desaparece automática ou repentinamente da consciência, embora a própria alienação já tenha sido liquidada”.

Problemas económicos e reformas para os resolver

Feito o diagnóstico geral, que soluções Yuri Andropov queria pôr em prática? O seu plano de reformas era abrangente e ambicioso. A direção geral, a máxima orientadora à luz da qual essas reformas devem ser executadas, foi formulada por ele da seguinte forma:

Hoje, a primeira tarefa é o desenvolvimento e, consequentemente, a tomada de medidas capazes de proporcionar um campo mais amplo de ação às imensas forças criativas de que a nossa economia dispõe. Essas medidas devem ser elaboradas com cuidado, ser realistas, o que significa que para as desenvolver é essencial estar baseado nas leis de desenvolvimento do socialismo. O caráter objetivo dessas leis exige que abandonemos todos os tipos de tentativas de administrar a economia por métodos estranhos à sua natureza. Não é supérfluo lembrar aqui a advertência de Lénine contra o perigo representado pela fé ingénua de certos trabalhadores que pensam poder resolver todas as suas tarefas por meio de ‘decretos comunistas’”.

Uma perestroika antes do tempo?

Como entender esse princípio de fazer a economia funcionar de acordo com suas próprias leis, e não por métodos que lhe são estranhos? Devemos começar por mencionar uma lenda tenaz, em voga na historiografia e no debate público na Rússia hoje. Segundo essa leitura, por “métodos estranhos”, devemos entender os métodos administrativos, as intervenções burocráticas do aparelho estatal, e pelas “próprias leis da economia” simplesmente ... o mercado. Essa lenda, de facto, faz de Andropov o precursor de Gorbachev – afinal ele não tinha promovido a sua carreira? – que, se tivesse vivido mais, teria reformado a URSS na direção de uma economia de mercado com orientação socialista, ou pelo menos de uma economia socialista com mercado (os números de 50% de participação da economia estatal, 30% para o setor cooperativo e 20% para a iniciativa privada). Essa lenda, entretanto, não se baseia em nenhuma evidência sólida e virtualmente não tem hipótese de ser verdadeira.

Trata-se, de facto, de pura especulação, que não encontra confirmação nos próprios escritos ou ações de Andropov e não é confirmada pelos arquivos dos tempos do seu mandato (que ainda não foram desclassificados). É baseada apenas em escritos pós-soviéticos, especialmente em memórias e declarações de ex-líderes soviéticos, principalmente da tendência de Gorbachev. No entanto, essas fontes estão longe de ser confiáveis. Partindo do pressuposto de que os autores em questão são sinceros – e isso ainda precisa de ser demonstrado – resta levar em conta o facto de que a memória humana é evolutiva, em perpétua reconstrução, reinterpretando o passado à luz do presente. Nada prova que as palavras usadas por Andropov tivessem o mesmo significado que tiveram sob Gorbachev (há muitos exemplos em contrário). É bem possível que, tentando dar sentido às suas ações a posteriori, através do prisma deformador do desastre ocorrido entretanto, deem às suas ações passadas um significado totalmente diferente do que tinham na época.

Yuri Andropov tinha a intenção de reformar a URSS em direção ao socialismo de mercado? É muito pouco provável. Recorde-se que escreveu, na passagem atrás citada: “é indispensável basearmo-nos nas leis de desenvolvimento do socialismo”, e que ele continuou a referir-se ao conceito de socialismo desenvolvido, porque era, apesar de suas conotações apologéticas indesejáveis, uma categoria cientificamente correta. Ora, esta noção significa precisamente um socialismo que forma um sistema, todos os elementos do qual são ajustados de forma coerente e que funciona de acordo com as suas próprias leis. Tal sistema não pode ser “melhorado” pela junção de elementos de natureza estranha, que pressupõem outras leis, como os elementos de mercado. Isso, faria com que todo o sistema funcionasse mal. Foi isso exatamente o que aconteceu durante a perestroika ...

Pode-se objetar que Gorbachev também disse esse tipo de coisas antes de implementar as reformas de mercado mesmo assim, e que, portanto, talvez Andropov também estivesse a jogar um jogo duplo ... Não podemos prová-lo, mas o próprio rigor teórico de Andropov, em oposição à tagarelice vazia de Gorbachev, faz acreditar na sua seriedade.

Mais seriamente, pode-se objetar que a China, o Vietname e o Laos implementaram reformas de mercado, embora mantivessem pelo menos uma forma de socialismo, e que isso os beneficiou. Mas esses países estavam longe de serem sociedades socialistas desenvolvidas antes das suas políticas de “reforma e abertura”. O Partido Revolucionário do Povo do Laos chega a afirmar que o Laos não pode reivindicar ser um país socialista até hoje, e que a introdução do mercado foi necessária porque a economia do Laos era muito subdesenvolvida para ser capaz de funcionar sob as leis do socialismo. Não discutiremos aqui a difícil e controversa questão de saber se o “socialismo de mercado” ainda é socialismo, e se essa noção é realmente consistente. Observemos simplesmente que, se Jiang Zemin teve de ir mais longe nas políticas de abertura ao mercado do que Deng Xiaoping, é porque, para que o mercado funcione como tal, e não como gerador de efeitos perversos e incitamento a fraudes contabilísticas nas empresas estatais, ele considerou necessário privatizar essas empresas. Portanto, podemos pensar que o socialismo e o capitalismo formam de facto dois sistemas distintos, operando de acordo com leis distintas e incompatíveis, e que o sintagma “socialismo de mercado” constitui uma solução que é mais verbal do que real. A República de Cuba, que estabeleceu um “socialismo com mercado” (mantendo assim as esferas mercantil e socialista claramente diferenciadas), deve, no entanto, gerir as novas dificuldades e proceder a medidas corretivas, depois corretivas das corretivas, por causa das incompatibilidades profundas entre os dois sistemas.

Reformas económicas planeadas por Andropov

Que reformas estruturais Yuri Andropov realmente queria implementar? A primeira causa das dificuldades era o facto de os métodos de gestão da economia, que tinham sido muito eficazes no início, já não serem adequados ... em parte devido ao seu próprio sucesso, que os tornava obsoletos.

O planeamento fortemente centralizado e o desenvolvimento extensivo tiveram a sua razão de ser quando era necessário criar a indústria quase do nada, quando tudo ainda estava por fazer. Mas, devido ao próprio nível de desenvolvimento alcançado pela economia soviética, eles deixaram de ser adequados. O número de ministérios setoriais estava inflacionado, criando assim uma burocracia pesada, frequentemente redundante e ineficiente. O primado da indústria pesada acabou por se tornar uma espécie de dogma, aplicado em detrimento da produção de bens de consumo e até mesmo da eficiência económica. Os maus incentivos (objetivos avaliados em volume e não em valor, critérios de avaliação nem sempre adaptados) prejudicaram a qualidade do produto. Os incentivos desatualizados tendiam a encorajar o investimento em novas unidades de produção caras nem sempre adaptadas aos padrões recentes – transformando-se num desperdício de sobreinvestimento – ao contrário de melhorar as unidades existentes (investimentos produtivos em empresas já existentes eram desencorajados pelo facto de que, por não dar frutos imediatamente, corriam o risco de atrasar o cumprimento dos objetivos do plano). Esses métodos desatualizados retardaram a modernização técnica da economia e levaram a um desperdício significativo e injustificado de matérias-primas e energia.

Andropov queria, portanto, uma reforma do mecanismo de gestão da economia para remover os maus incentivos, passar do desenvolvimento extensivo para o intensivo, melhorar o planeamento, fazer um esforço sério em termos de modernização tecnológica, de inovação, e, como prioridade absoluta, a economia de matérias-primas e energias. Conceder mais autonomia, aliada à responsabilidade, também às empresas, mas sem desmantelar o planeamento centralizado.

Dados os desperdícios mencionados, o equilíbrio ecológico da URSS não era muito bom; mas por causa dos esforços económicos que Yuri Andropov queria impulsionar, bem como das sérias discussões sobre questões ecológicas conduzidas pelos cientistas soviéticos e pelo PCUS (muito mais sérias do que então existia no mundo capitalista), e se levarmos em consideração as conquistas da República de Cuba nesta área, não há dúvida de que a URSS, se tivesse sobrevivido, teria conseguido hoje desenvolver uma economia que respeitasse os equilíbrios naturais e a economia de recursos ou, pelo menos, seria muito mais avançada do que o mundo capitalista nesta direção.

Estas medidas de reforma implicaram também uma luta pela disciplina no trabalho, contra o absentismo, acompanhada de sanções. Este tipo de medidas, obviamente, não era popular, mas sem dúvida era essencial para melhorar a eficiência da economia e aumentar a oferta de bens de consumo, de que, com razão, a população se queixava de ser insuficiente.

Yuri Andropov também insistia no princípio enunciado por Marx de que no socialismo a máxima “de cada um de acordo com suas capacidades, a cada um de acordo com o seu trabalho” deve ser estritamente aplicada. Isso implica que o socialismo não pode ser um sistema perfeitamente igualitário e que um nivelamento de salários está repleto de consequências prejudiciais. Tal reflexão pode parecer desagradável, senão pouco de esquerda, se tomarmos um ponto de vista um tanto ingénuo e idealista, se precisamente concebermos o socialismo como tendo de se conformar a um ideal preconcebido a priori e não à realidade, sobre as suas contradições e possibilidades reais. Esta abordagem foi criticada por Andropov com razão.

Ora, ele diz isso sem rodeios, a escassez é real e não pode desaparecer tão cedo. O estado de desenvolvimento das forças produtivas na URSS não era suficiente para permitir prosperidade para todos. Se a liderança do PCUS tivesse falado com mais frequência dessa forma franca sobre a realidade como ela era, embora às vezes pouco exaltante, em vez de a embelezar, sem dúvida teria conquistado mais a compreensão do povo. Admitir aumentar um poder de compra superior à oferta existente só poderia, portanto, aumentar a escassez e a irritação a esse respeito. E dificilmente se conseguiria aumentar a produção, a produtividade e a qualidade do trabalho – essencial para aumentar a oferta de bens de consumo – sem incentivos materiais e, também, sem negligenciar os incentivos morais e, portanto, sem que o salário dependesse do resultado do trabalho e, assim, sem desigualdades salariais. É claro que estamos a falar sobre diferenças salariais devido ao trabalho realmente realizado. Os privilégios dos dirigentes evidentemente não se justificavam. O próprio Yuri Andropov, no entanto, tinha um estilo de vida bastante austero, desaprovava essas más práticas e, durante seu breve mandato, limitou alguns desses privilégios, em particular pondo fim à imobilidade dos quadros e demitindo muitos deles.

As medidas de reforma económica de Andropov também envolveram – elemento absolutamente central – uma luta drástica contra a corrupção. O fenómeno tinha de facto tomado uma magnitude preocupante no final dos anos de Brejnev, favorecido pelo individualismo e pela ganância que subsistia (e que Andropov com razão reprimiu), pelas insuficiências da economia socialista, por um certo laxismo e pela decomposição moral de certos quadros inamovíveis. Desde o roubo de bens sociais em pequena escala, o desvio de fundos públicos, a corrupção de funcionários, o fenómeno podia chegar até às verdadeiras redes criminosas, um mercado negro cuja dimensão é difícil de estimar, mas que começava a tornar-se considerável. Esta “segunda economia” estava a começar a assumir a aparência de um capitalismo paralelo, cujos efeitos danosos – pelo desvio de recursos – sobre a economia oficial se tornaram percetíveis e contribuíram para a escassez de forma não despicienda. Se se deixasse prosseguir, essa segunda economia corria o risco de emergir à superfície e levar à restauração do capitalismo.

Yuri Andropov estava certo em não mostrar qualquer tolerância por esse fenómeno criminoso e perigoso para o socialismo. Ele lutou com firmeza, como líder da KGB, e ainda mais como secretário-geral, com todos os recursos repressivos à sua disposição, derrubando muitos escroques a todos os níveis, incluindo altos funcionários do Partido, que ele prendeu em grande número, desmantelando redes inteiras. Essa política tenderia a demonstrar, além disso, que ele não era a favor de um sistema de mercado, uma vez que buscava erradicar o capitalismo reemergente. Gorbachev, ao contrário, permitirá que a segunda economia saia do seu buraco, legalizando as “cooperativas” (simples cobertura “socialista” para empresas privadas), através das quais o capital mafioso foi legalizado, desviou maciçamente os recursos do país entre 1989 e 1991, e desempenhou por fim o seu detestável papel na privatização-pilhagem depois de 1991. Muitos oligarcas do espaço ex-soviético provêm desses meios.

Se a perestroika encontrou pouca oposição dentro do PCUS, antes que fosse tarde demais é, por um lado, certamente porque as reformas estavam a tornar-se essenciais, mas também e sobretudo porque Gorbachev parecia no início caminhar na continuidade de Andropov, continuando as reformas úteis que ele tinha iniciado, com menos consistência e eficiência do que ele, antes de mudar de rumo, impercetivelmente no início, depois virando francamente na via da liquidação.

Firmeza no marxismo

Compreender-se-á que Yuri Andropov atribuiu importância fundamental à teoria marxista-leninista, ao seu estudo e ao seu desenvolvimento criativo, essenciais para a resolução correta das tarefas políticas. Portanto, terminaremos com uma citação que deve sempre estar presente:

Às vezes ouvimos dizer que novos fenómenos da vida social ‘não se encaixam’ nas conceções do marxismo-leninismo, que este está a passar por uma ‘crise’ e que deve ser ‘galvanizado’ por ideias extraídas da sociologia e da filosofia ou ciência política ocidentais . O problema não é o de uma ‘crise’ imaginária do marxismo. Trata-se de outra coisa, em particular da incapacidade de certos teóricos, que se autodenominam marxistas, de atingir a verdadeira envergadura do pensamento teórico de Marx, Engels e Lenine; da incapacidade que demonstram, quando fazem um estudo concreto de problemas concretos, de aproveitar todo o poder intelectual da sua doutrina. Eu gostaria de acrescentar que um grande número de teóricos burgueses – filósofos, sociólogos e especialistas em economia política – obtiveram notoriedade virando as ideias marxistas de cabeça para baixo, à sua própria maneira.”

Não é bom que os comunistas se deixem seduzir pelas frases mordazes dos ‘melhoradores’ de todas as vertentes da doutrina marxista, para se apegara produtos fabricados pela ciência burguesa. Se queremos compreender e resolver novos problemas, não devemos corroer a doutrina marxista-leninista, mas, pelo contrário, lutar pela sua pureza e desenvolvimento criativo. Só esta abordagem responde às tradições e ao espírito da nossa doutrina, às exigências do movimento comunista.”

O que era justo em 1983 ainda o é hoje, e todos os comunistas deveriam pensar sempre neste ensinamento de Yuri Andropov: para compreender a realidade e mudá-la, nunca negligenciar o trabalho teórico e, para isso, estudar o marxismo e desenvolvê-lo criativamente para entender as novas realidades, de acordo com os seus próprios princípios, ao invés de, preguiçosamente, pegar em todas as “novas” ideias da moda, que estarão desatualizadas no dia seguinte.

* Alexander Corsier, Genebra, Suíça – “Sou doutorado em filosofia latina medieval e presidente do Partido do Trabalho de Genebra. Estou convencido de que hoje o comunismo é mais necessário do que nunca e que, apesar da queda do socialismo na URSS, o marxismo-leninismo continua a ser o único caminho para um mundo mais justo”.

Fonte: https://www.initiative-communiste.fr/articles/culture-debats/ligne-andropov-ou-ligne-gorbatchev-ou-lurss-a-la-croisee-des-chemins/, publicado em 2021/07/22, acedido em 2021/07/27. Retirado de: https://voix-du-proletariat.blogspot.com/2021/07/youri-andropov-ou-la-reforme-du.html?m=1.

Tradução do francês de TAM

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