Translate
sábado, 31 de agosto de 2024
sexta-feira, 30 de agosto de 2024
quarta-feira, 28 de agosto de 2024
Austeridade, uma serva da ordem do capital
Em "A ordem do capital", Clara Mattei atualiza a crítica marxista e desnuda a lógica do neoliberalismo, destacando que políticas de corte de gastos estão intimamente ligadas ao fascismo.
Publicado em 27/08/2024 // 1 comentário
“Lei e ordem em Lawrence” (Law and order in Lawrence) [1912]. Fonte: Digital Commonwealth
Por Raíssa Araújo Pacheco
Pensar que a guerra em Gaza é uma aberração irracional da história humana pode parecer um caminho preferível, direcionando a culpa para alguma expressão inexplicável do ser humano. Porém, sabemos que essa consideração estaria errada.
O que acontece ao povo palestino é a mais pura e crua manifestação dos princípios lógicos do sistema que rege nossa sociedade. Ou mudamos as coisas agora, ou esse será o destino da humanidade. É o que enfatiza a professora de economia Clara Mattei.
Em seu mais recente livro, A ordem do capital: como economistas inventaram a austeridade e abriram caminho para o fascismo, publicado pela Boitempo, a autora esmiúça vários argumentos centrais que moldam a lógica do sistema capitalista, oferecendo uma perspectiva renovada da economia política e do capitalismo de nosso tempo.
Com tradução de Heci Regina Candiani, texto de orelha de Luís Nassif, capa de Maikon Nery e apoio da Fundação Perseu Abramo, a obra analisa o papel do Estado na economia, fundamentando-se em uma abordagem influenciada pela teoria crítica marxista: a crítica do valor. Contudo, há uma visão atualizada sobre como o valor é produzido na contemporaneidade.
A partir de sua ampla e rigorosa investigação de dados de crescimento e decrescimento econômico e de como o valor é produzido e reproduzido nas relações de trabalho e nas trocas de mercado, Mattei defende que este é um conceito central para entender a dinâmica do capital.
Sua argumentação ressalta que o neoliberalismo não é apenas uma política econômica, mas uma forma de reorganizar a sociedade e a economia em torno da lógica do mercado. A guerra é uma consequência sistêmica necessária a essa organização.
O escrito é dividido em duas partes. Na primeira, “Guerra e crise”, Mattei desenvolve seu argumento de como as duas Grandes Guerras e as crises que permearam o século XX abriram terreno para a nova ordem econômica ditada pelo neoliberalismo.
A segunda toma mais páginas e é inteiramente dedicada à questão da austeridade. Começando pela sua “criação” engendrada por tecnocratas internacionais, passando por seus exemplos históricos, com foco na Inglaterra e na Itália – e como em ambos os casos, tal processo abriu veredas para o fascismo –, finalizando com uma demonstração dos cases de “sucesso” da austeridade, ou melhor dizendo, como tais políticas salvaram economias capitalistas quando estas estavam em crise. O resultado: fortalecimento das opressões de classe e desigualdade econômica – a “verdadeira medida de eficácia” da austeridade, como defende a autora.
No entanto, também são vários os exemplos de fracassos das políticas de austeridade, a Grande Depressão, ocorrida na década de 1930, como também a elevação das taxas de juro na Argentina em 2002, após sucessivas crises políticas e econômicas.
Os efeitos desses sucessos e fracassos são vistos nas ruas, com as revoltas e manifestações populares, tanto por melhores condições de trabalho, quanto por melhores condições socioeconômicas.
Seguindo seu argumento, a professora defende que por trás dos objetivos de “salvar a economia”, a austeridade tem um motivo muito mais insidioso: barrar os avanços das conquistas trabalhistas. Lançando uma contra ofensiva que busca salvar o capitalismo e suas relações de produção.
A austeridade é a tônica das governanças alinhadas ao capital, aprofundando desigualdades e precarizando as condições de trabalho. Através de seu estudo profundo e interdisciplinar, Mattei escancara a relação entre austeridade e ascensão do fascismo.
Além disso, a brochura faz uma revisão do neoliberalismo e suas consequências. Enquanto muitos trabalhos discutem o neoliberalismo em termos econômicos e políticos, Mattei analisa como essas políticas transformaram e precarizaram as condições de trabalho e sociais, aprofundando a desigualdade e a exploração.
Uma miríade de ferramentas teóricas são utilizadas para destrinchar como as dinâmicas do capital se manifestam em diferentes esferas da vida econômica e social. Sendo notável a abordagem interdisciplinar da obra, que combina teoria econômica, crítica social e análise política.
Longe de se restringir apenas à crítica, a professora apresenta uma série de alternativas possíveis ao fim do mundo, como a economia solidária e a experimentação de modelos alternativos econômicos que não se baseiem exclusivamente na lógica do mercado, além de priorizarem o bem-estar humano e ambiental, ao invés do crescimento econômico a todo custo.
Uma reforma significativa nas relações de trabalho para combater a precarização e melhorar as condições de trabalho; a integração de preocupações ambientais nas políticas econômicas e a transição para práticas sustentáveis; além da participação democrática nas decisões econômicas e uma economia mais transparente e participativa, também são soluções exploradas para a criação de um futuro mais equilibrado e justo.
Publicado originalmente no site Outras Palavras.
Por mais de um
século, diferentes países e governos enfrentaram crises financeiras ao
aplicar cortes em políticas públicas e precarizar as relações de
trabalho. Embora tenham sido bem-sucedidos em acalmar os credores e o
mercado, os efeitos no bem-estar social e econômico da classe
trabalhadora foram devastadores. Em tempos de crises e incertezas, a
austeridade continua sendo praticada em todo o globo. A ordem do capital, de Clara Mattei, é um estudo profundo e interdisciplinar sobre a relação entre austeridade e ascensão do fascismo.
Voltando
ao início do século XX, a economista traça as origens da austeridade no
entreguerras na Grã-Bretanha e na Itália, revelando como a autonomia da
classe trabalhadora nos anos pós-Primeira Guerra Mundial incentivaram
um conjunto de políticas econômicas de cima para baixo que sufocou os
trabalhadores e impôs uma hierarquia ainda mais rígida em suas
sociedades. Foi quando a austeridade revelou seu principal objetivo, a
proteção do capital e a eliminação de todas as alternativas ao sistema
capitalista, e foi nesse contexto que a política econômica funcionou
como aliada ao fortalecimento do fascismo.
Acompanhe a série sobre A ordem do capital, com Clara Mattei, na TV Boitempo:
A Era Do Capital Improdutivo
Nova Arquitetura Do Poder - Dominação Financeira, Sequestro Da Democracia E Destruição Do Planeta
de Ladislau Dowbor
terça-feira, 27 de agosto de 2024
As fêmeas de milheirinha preferem amarelo. Agora sabemos porquê
A extraordinária e variada coloração das aves é produto da selecção sexual. A história da milheirinha, o parente mais próximo do canário, comprova-o. As fêmeas preferem mesmo os machos mais amarelos.
Paulo Gama Mota
Biólogo, professor associado da Universidade de Coimbra de evolução e comportamento animal e humano e investigador do Biopolis-Cibio. Os meus interesses científicos são em evolução do comportamento. Dirigi vários museus, incluindo o Museu da Ciência da Universidade de Coimbra, considerado o melhor museu de ciência da Europa em 2008. Amante de livros, gosto de fazer caminhadas, nadar no mar e andar de bicicleta. As férias para descomprimir têm de incluir boa literatura e mar.
Ver todos os cientistas↗A milheirinha (Serinus serinus) é uma pequena ave europeia, muito comum em Portugal, e o parente mais próximo do canário, que se pode encontrar em jardins e parques, hortas e campos agrícolas. É fácil de observar, especialmente na Primavera, quando os machos cantam intensamente, chegando a acompanhar o canto com rápidos voos acrobáticos, numa autêntica coreografia cantada. São aves que se distinguem pela coloração amarela que se pode observar sobre a cauda em machos e fêmeas e que se apresenta com intensidade na cabeça e no peito dos machos, e os torna muito visíveis, apesar do seu tamanho reduzido.
O amarelo intenso das suas penas deve-se à deposição de um pigmento, um carotenóide, durante a sua formação. A natureza é muito colorida. As cores resultam ou da presença de pigmentos que absorvem partes do espectro electromagnético a que chamamos “luz visível”, ou da forma como as estruturas reflectem a luz, ou de uma combinação das duas. Nos animais, as cores amarelas, laranja e vermelhas resultam da presença de carotenóides nos tecidos ou em estruturas como as penas das aves.
A minha decisão de investigar esta ave foi um daqueles momentos definidores que têm uma parte de escolha intencional e uma parte de acaso. No Outono de 1990, procurava, com um dos meus orientadores de doutoramento, Tim Birkhead, da Universidade de Sheffield (Inglaterra), uma espécie cujo comportamento pudesse estudar e fosse interessante para os objectivos que tínhamos. Idealmente uma ave, porque são fáceis de observar e de marcar com anilhas coloridas, que nos permitem saber quem é quem à distância de uns binóculos. Precisávamos que fosse comum, porque é sempre importante ter um bom tamanho de amostra, que fosse fácil de capturar e de acompanhar a sua actividade reprodutiva, posturas e desenvolvimento das crias e que fosse possível obter ADN para análises de paternidade.
A minha passagem por Sheffield deu-se num período complicado. A guerra no Iraque levou a um grande aumento de tensão, com prisões e encerramentos da actividade de iraquianos que viviam nas ilhas britânicas. Foi o que sucedeu ao dono da pizaria onde eu comprava pizas, nos meus regressos nocturnos do departamento, apenas porque era iraquiano, ao que soube.
Foi também a altura em que a doença das vacas loucas apareceu nos tablóides e gerou um grande pânico social, já que mostrava sinais de passagem para os humanos, por consumo de carne de bovino contaminada, de uma encefalopatia espongiforme intratável que deixava o cérebro cheio de buracos e acabava com toda a possibilidade de raciocínio. Matou centenas de pessoas e levou ao abate de centenas de milhares de animais. Assustador, especialmente porque, como qualquer bolseiro sem recursos, eu recorria regularmente a refeições de hambúrgueres. Deixei de comer hambúrgueres sem saber se ainda ia a tempo...
Ave com pouco mais de dez gramas
A escolha recaiu sobre a milheirinha porque nos pareceu preencher os requisitos que definimos. Mas poderíamos ter escolhido outra espécie. Não imaginava então como esta escolha iria definir a maior parte da minha vida científica, que foi passada, em grande medida, a explorar o comportamento destas aves. Estou hoje em crer que provavelmente a jornada teria sido menos interessante e mais curta se a escolha tivesse sido outra.
O estudo do comportamento animal tem um pouco de voyeurismo científico. Foram milhares de horas no campo a seguir estas aves, numa área de estudo que escolhi próximo do paul de Arzila, a poucos quilómetros de Coimbra, a observar o seu comportamento, a anilhar, medir, recolher amostras, de adultos e crias, para no final termos um quadro detalhado do seu comportamento. Surpreendeu-me a intensa luta que estas pequenas aves, com pouco mais de dez gramas, travam contra as adversidades do ambiente, enfrentando a fortíssima predação que atinge mais de 70% dos ninhos e que deita tudo a perder, para recomeçarem uma e outra vez até atingirem o objectivo último de passar os seus genes para as gerações seguintes.
Durante esses três anos de trabalho de campo intenso, entre 1991 e 1993, houve dois aspectos do seu comportamento que despertaram o meu interesse, por serem muito espectaculares e visíveis e por haver uma teoria geral sólida para os investigar e explicar. Estávamos numa altura em que fervilhavam hipóteses alternativas que pediam para ser testadas no mundo real. O canto foi o primeiro desses comportamentos que decidi estudar imediatamente a seguir.
A milheirinha tem um canto extremamente complexo, constituído por uma sucessão rapidíssima de sons, por vezes ascendentes e descendentes em simultâneo, como um pianista pode fazer, mas não um flautista, num virtuosismo vocal extraordinário, sendo uma das aves que produzem mais sons por unidade de tempo.
O segundo aspecto que me interessou foi a coloração. Os machos apresentam um amarelo intenso bem perceptível na cabeça, no pescoço e ao longo do peito, as partes do corpo que uma ave exibe quando está face a face com outra. Tinha todas as características de um sinal. Um sinal sexual, porque só os machos são assim tão coloridos.
Dar razão a Darwin 100 anos depois
A ideia de que este tipo de sinais mais ou menos exuberantes e presentes em um só sexo, especialmente comuns em aves e em alguns peixes, como a presença de cores vibrantes, ou de caudas longas, como no pavão, estariam envolvidos em competições por acasalamento foi originalmente avançada por Darwin, em 1871. Surpreendia-o que características que comprometiam a sobrevivência dos animais pudessem ter sido seleccionadas; parecia um contra-senso para a teoria de selecção natural.
A explicação que Darwin propôs era a de que o custo de ter tais sinais seria mais do que compensado pelo maior sucesso na reprodução, ao serem preferidos pelas fêmeas da sua espécie, que os considerariam mais atractivos. Esta ideia revelou-se demasiado “fora da caixa” e nunca foi levada a sério pelos académicos seus contemporâneos, que achavam absurdo imaginar que as fêmeas dos animais pudessem escolher os machos.
Tivemos de esperar 100 anos para dar razão a Darwin, quando novos estudos começaram a provar que as fêmeas escolhiam realmente os machos, especialmente os que tinham características mais exóticas.
Aplicando a teoria de selecção sexual às milheirinhas, a minha hipótese era a de que as fêmeas preferiam os machos com amarelo mais intenso. Avancei para testar a hipótese.
Primeiro, era necessário ter uma medida quantitativa da sua cor, que é devida a um tipo de carotenóides presente no grupo dos canários, chamados “xantofilas de canário”. A cor não é uma propriedade dos objectos, pois depende da luz incidente. Uma maçã vermelha ao meio-dia não tem a mesma cor ao fim da tarde.
Além disso, as aves não vêem exactamente como nós. Conseguem ver mais cores, por terem quatro cones na sua retina, o que lhes permite ver nos ultravioleta. A retina dos nossos olhos tem apenas três tipos de cones que designamos por azul, verde e vermelho, porque captam a luz em três regiões do espectro electromagnético, mas não dá para ver no ultravioleta.
Então, para medir a cor das milheirinhas e determinar se esta era objecto de selecção, capturámos adultos dos dois sexos que trouxemos para o Laboratório de Etologia do Cibio, na Universidade de Coimbra, para realizar experiências controladas.
Medimos a coloração dos machos com um espectrofotómetro de reflexão e separámo-los em mais e menos coloridos. De seguida, apresentámos um macho de cada grupo a diferentes fêmeas para avaliar se elas escolhiam alguns, em detrimento de outros. Cada fêmea tinha dois machos à sua frente para escolher. E a escolha foi clara: os machos mais amarelos eram os preferidos. Ficava explicado por que eram os machos mais coloridos que as fêmeas nestas aves: as fêmeas preferiam mais amarelo.
A hipótese do macho saudável
Nesse momento, como é frequente em ciência, a resposta que tivemos deu origem a novas perguntas. As fêmeas preferem o amarelo; mas porquê? Qual a vantagem de as milheirinhas preferirem machos mais amarelos? Seria por eles serem mais saudáveis ou terem uma melhor qualidade genética, que, de alguma forma, se expressa na intensidade da cor do sinal, ou talvez seja só porque são mais vistosos e isso é atraente para as fêmeas?
Estas perguntas enunciam algumas das novas possíveis respostas que faziam sentido do ponto de vista da teoria evolutiva. Uma vez que se sabe que os carotenóides contribuem para reforçar o sistema imunitário na nossa e em outras espécies, preferimos testar a hipótese do macho saudável. Segundo esta, a coloração seria um sinal indicador da condição imunitária dos machos, e os mais saudáveis seriam preferidos pelas fêmeas.
Para realizar uma experiência que respondesse a estas perguntas, que foi parte central do doutoramento pela Universidade de Coimbra da minha aluna Sandra Trigo, tínhamos de ir mais longe. Precisávamos de manipular a coloração que os machos conseguiam produzir. Tal como todos os vertebrados, as milheirinhas não conseguem produzir carotenóides. Têm de os obter nas sementes que comem e depois podem ou não transformá-los e usá-los na coloração. Era, portanto, uma questão de manipular a sua dieta.
Fomos, de novo, para o campo capturar machos e fêmeas de milheirinha. Trouxemo-los para o laboratório e medimos a coloração dos machos e a sua condição imunitária. Sujeitámo-los depois a dois regimes de alimentação, seguindo um procedimento experimental comum: se queremos saber se algo é a causa de um fenómeno, procuramos manter tudo igual menos esse factor e ver se há diferenças causadas pela diferença de tratamento. Metade dos machos foi colocada num regime sem carotenóides e a outra metade recebeu doses suplementares de carotenóides. Depois esperámos que realizassem a muda das penas e voltámos a medir a sua coloração e sua condição imunitária.
No início da experiência, os dois grupos de machos não diferiam na cor nem na condição imunitária. Mas, no final da experiência, os machos com suplemento de carotenóides eram mais coloridos e tinham uma condição imunitária muito superior. Os machos com acesso aos carotenóides tinham conseguido produzir cores mais intensas e também estavam mais saudáveis do que os outros. Para uma prova definitiva, submetemo-los à escolha das fêmeas. E estas, como antes, preferiram os mais amarelos. Desta vez, tínhamos uma explicação para a escolha que as fêmeas fazem na natureza: escolhem os machos mais coloridos porque é um sinal de eles serem mais saudáveis.
A história completou-se. Ou talvez não, porque, entretanto, outras perguntas surgiram. Por exemplo, como é que a coloração pode ser um sinal indicador fiável da condição imunitária do animal? Será porque os carotenóides são escassos na natureza e há a necessidade de dosear o seu uso em diferentes funções? Poderá a transformação metabólica dos carotenóides ser um indicador da condição e capacidade de funcionamento celular do animal? A busca de respostas continua.
Quiz
As fêmeas de milheirinha preferem os machos mais amarelos porque:
segunda-feira, 26 de agosto de 2024
Fraude ou revolução: porque a direita não ganha mais na Venezuela?
« Primeiro ponto: os aspectos internos da oposição que se dividem em dois agrupamentos. O primeiro, a direita tradicional organizada pela AD e o COPEI. Essas siglas são representantes da chamada “Quarta República”, a ordem liberal que existia antes da Revolução Bolivariana. São forças desacreditadas perante a população e sobrevivem elegendo alguns parlamentares e mantendo um ou outro governo estadual ou municipal. Uma espécie de “Centrão” local, porém com muito menos força do que seu equivalente brasileiro. Se tornou um ator ultrapassado e perdeu a interlocução preferencial com os Estados Unidos.
O outro agrupamento de oposição é a extrema direita. Pela demonização
costumaz da Venezuela na imprensa empresarial, pouca gente notou que
antes de Trump, Bolsonaro ou Milei, foi a direita venezuelana a primeira
a passar pelo processo de fascistização no continente. Mudando de
líderes a todo momento (Henrique Caprilles, Leopoldo López, Juan Guaidó,
Maria Corina Machado) e criando frágeis coligações que sobrevivem
apenas por um ciclo eleitoral, brigam entre si pelos dólares de
Washington no lucrativo negócio da “dissidência política”. Ao longo dos
anos sempre optaram pela abstenção eleitoral e investiram no golpe de
Estado: tentativas de fracionar as Forças Armadas, atos terroristas,
magnicídio e até clamor de invasão do próprio país pelos EUA foram
insistentemente realizados na última década. Sua defesa de “eleições
democráticas” é pura cortina de fumaça e a maior parte da população do
país assim a vê.» JACOBIN
sábado, 17 de agosto de 2024
A ARTE e a barbárie. Esta financia aquela
Bienal de Veneza: acertam-se contas no mundo da arte
Cheira a cacau no Pavilhão dos Países Baixos. O aroma vem das esculturas criadas pelos agricultores-artistas do CATPC – Cercle d'Art des Travailleurs de Plantation Congolaise (Círculo de Arte dos Trabalhadores Congoleses das Plantações), colectivo nascido e sediado em Lusanga, na República Democrática do Congo.
Bienal de Veneza: acertam-se contas no mundo da arte
Das paredes brancas escorre um líquido cuja coloração se assemelha ao óleo de palma, outro dos produtos das plantações de Lusanga usados nas esculturas, a par do cacau, do açúcar e da argila. Escorre como sangue. Para os habitantes desta aldeia congolesa, o óleo de palma e o cacau são, antes de mais, sinónimo de trabalho escravo, mortes, violações, pobreza crónica, expropr
Bienal de Veneza: acertam-se contas no mundo da arte
O fio condutor da exposição The International Celebration of Blasphemy and The Sacred (A Celebração Internacional da Blasfémia e do Sagrado) é uma violenta história de agro-colonialismo iniciada em 1911 – quando o governo da Bélgica concedeu ao industrial britânico Lord Leverhulme vastas concessões em terras, situadas em áreas florestais do Congo repletas de palmeirais de óleo que correspondiam ao dobro do tamanho da Bélgica –; engrandecida em 1929 – quando a empresa de Leverhulme deu origem à Unilever, gigante multinacional anglo-holandesa do sector alimentar que edificou o seu império graças a plantações industriais de palma e respectivo trabalho escravo –; e prosseguida até hoje pela mão de empresas descendentes da Unilever, nomeadamente a multinacional Feronia Inc..
.Bienal de Veneza: acertam-se contas no mundo da arte
Concebido em colaboração com o artista holandês Renzo Martens e o curador Hicham Khalidi, o projecto do pavilhão holandês na 60.ª Bienal de Arte de Veneza, a decorrer até 24 de Novembro, é mais um passo no acerto de contas com o mundo da arte que o CATPC tem posto em marcha desde o seu nascimento, em 2014, apoiado pelo instituto Human Activities de Renzo Martens.
Bienal de Veneza: acertam-se contas no mundo da arte
O colectivo congolês vira as regras do jogo: aproveitando o interesse crescente do circuito expositivo e do mercado da arte em narrativas não-ocidentais e em expiar a culpa branca herdeira do colonialismo, os trabalhadores das plantações vendem a sua arte para comprar de volta a terra que lhes foi retirada pela Unilever e empresas subsidiárias. Até agora conseguiram reaver 200 hectares, onde desenvolvem um sistema autónomo de “economia sustentável e de regeneração da floresta sagrada” a que chamam de “pós-plantação”.
Bienal de Veneza: acertam-se contas no mundo da arte
“Colocando a nossa arte ao serviço da nossa comunidade, podemos libertar a nossa terra, restabelecer a ligação com os nossos antepassados e possibilitar uma coexistência pacífica entre humanos e natureza”, diz Ced’art Tamasala, porta-voz do CATPC, ao Ípsilon. “A nossa arte está verdadeiramente ancorada nas nossas vidas.”
Bienal de Veneza: acertam-se contas no mundo da arte
Este contra-ataque revela-se ainda mais acutilante face ao facto de vários museus e galerias europeus terem sido em parte financiados – e continuarem a ser – com os lucros das plantações, gerados à custa da “exploração sem fim” de trabalhadores agrícolas, lembrou Renzo Martens na cerimónia de abertura do Pavilhão dos Países Baixos, em Abril. “Actualmente, no Congo, há trabalhadores que ganham nove dólares por mês [oito euros]. Isto não é uma coisa do passado.”
Bienal de Veneza: acertam-se contas no mundo da arte
“A Tate Modern, em Londres, foi fundada com os lucros do comércio da cana-de-açúcar do Brasil [entre 2000-2012 a instituição teve um projecto anual de comissões a artistas patrocinado pela Unilever, o Unilever Series]; a Lady Lever Gallery, em Liverpool, com a venda de óleo de palma do Congo utilizado na produção de sabão; o Museu Ludwig, em Colónia, beneficiou das receitas da produção de chocolate, também derivado do óleo de palma, e o Museu Stedelijk, em Amesterdão, das plantações na Indonésia – e a lista continua”, referem os elementos do CATPC. “Somos nós que tornamos o museu possível.”
Bienal de Veneza: acertam-se contas no mundo da arte
Como lembra a cientista política Françoise Vergès no seu mais recente livro, Decolonizar o Museu – Programa de Desordem Absoluta (ed. Orfeu Negro, 2024), “o conforto da vida cultural e artística é possível porque homens e mulheres são explorados/as”. Numa obra tutelar para deslindar assuntos que estão hoje no centro do debate do ecossistema artístico – a descolonização das instituições e a restituição de bens culturais, ambos directamente abordados pelo CATPC na exposição –, a investigadora francesa frisa que “produtos da escravatura” como o açúcar, o café, o cacau ou o tabaco contribuíram não só para a construção dos museus ocidentais, que “ecoam as desigualdades estruturais globais criadas pelo colonialismo e pelo imperialismo”, mas também “para um maior bem-estar de toda a sociedade” e “hábitos” transversais a diferentes classes sociais.
(Mariana Duarte em Veneza)
segunda-feira, 12 de agosto de 2024
Jacques Baud : Yahya Sinwar, offensive Koursk, émeutes en Angleterre et ...
domingo, 11 de agosto de 2024
O Inferno
A barbárie está legitimada, observamos os crimes em direto,
não nos revoltamos, os governantes e a sociedade civil
preocupam-se com a Venezuela e continuam a cooperar com
os sionistas. É a vida, diria Guterres.
E rasgar o recto com um pau, é legítimo?
Público - 10 Aug 2024 AMIR COHEN/REUTERS
Alexandra Lucas Coelho, jornalista
1. Será de graça e basta um telefone. Não devia ser para menores, mas
muitos dos torturados são menores. Não devia ser para ninguém, mas
continua a acontecer agora. Então, é para quem está vivo agora.
Começo com aquele já histórico diálogo no Knesset, parlamento de
Israel, a 29 de Julho:
“E inserir um pau no recto de alguém, é legítimo?”, pergunta o
deputado exaltado, interrompendo outro.
“Cale a boca!”, diz o interrompido. “Sim! Se for um Nukhba, é
legítimo fazer-lhe tudo! Tudo!”
O vídeo está online, com legendas em inglês, fácil de achar.
Os Nukhba são comandos do Hamas. Depois de 7 de Outubro, Israel
prendeu milhares de palestinianos sem culpa formada. Cerca de 1400
foram levados para Sde Teiman, base no deserto do Negev, a cerca de
30 quilómetros de Gaza. Desde então “centro de detenção”, comparado
a Guantánamo por quem de lá saía. Em Maio-Junho, relatos de
tortura chegaram à CNN e ao The New York Times. Sob pressão,
Israel retirou centenas de detidos, não todos. No fim de Julho, a polícia
israelita foi lá buscar nove soldados reservistas, suspeitos de violarem
um palestiniano que estava no hospital de costelas partidas, recto
rasgado e intestinos rompidos, devido a penetrações com um objecto,
diz o relatório médico. Ben-Gvir, o supremacista de extrema-direita
que é ministro da Segurança Nacional, incendiou as redes dizendo
“tirem as mãos dos nossos heróis”. Smotrich, ministro das Finanças,
idem. Uma turba de israelitas disparou para Sde Teiman, trepando
vedações, empurrando guardas. Talvez a primeira invasão do mundo
pelo direito inalienável a violar.
Eram colonos, mas também mascarados armados, paisanos e paisanas,
deputados, um ministro de Netanyahu. Ele mesmo, Bibi, fez depois
uma declaração a condenar a desordem. Entretanto, os ministros à sua
direita puxavam por ela. De Sde Teiman, a multidão rumou à base
para onde tinham sido levados os reservistas. Nova invasão pelo direito
à barbárie no Estado de direito.
O mesmo direito que, por sua vez, o deputado Milwidsky (do Likud de
Netanyahu) defendia inflamado no parlamento, enquanto uns faziam
scroll no telefone, outros se esparramavam na cadeira. O Knesset no
seu normal, só interrompido pelo deputado Ahmad Tibi (palestiniano-
israelita do partido Ta’al). Foi dele a pergunta sobre o pau no recto &
a lei. Além de deputado, é ginecologista. Tem noção médica do que
estava a ser dito. No parlamento de uma, hã, democracia.
2. Quatro reservistas foram libertados pouco depois. Dos cinco que
continuam detidos, dois são suspeitos do mais grave. Passaram pelo
polígrafo, deu que mentiam ao negar a violação.
Terça-feira passada, o Canal 12 da TV israelita revelou um curto vídeo
de Sde Teiman com o relato sobre a violação. Nas imagens, das
câmaras de segurança, há dezenas de palestinianos deitados no chão,
de mãos atadas. Um grupo de soldados levanta o último da fila, leva-o
para um canto. Alguns soldados tapam com escudos. Vê-se que dois
estão a fazer algo sobre a zona lombar do prisioneiro, depois
hospitalizado. Que não era comando do Hamas nenhum, revelou o
Canal 12. Só um polícia de Gaza que nada teve a ver com o 7 de
Outubro.
A Associação Para os Direitos Civis em Israel levara já uma petição ao
Supremo Tribunal de Justiça para fechar Sde Teiman. Na quarta-feira,
o Supremo tentou discuti-la e uma nova turba perturbou a sessão com
protestos. Ben-Gvir protestou nas redes.
E havia dois dias já que a B’Tselem (a mais famosa organização de
direitos humanos em Israel) publicara um relatório de 118 páginas,
com vídeos, intitulado: “Bem-vindos ao inferno — o sistema prisional
israelita como uma rede de campos de tortura.”
3. A gente lê, vê e diz palavrões para não chorar. Já vimos o que vimos
em Gaza. E aqui estão estes homens, estas mulheres, estes adolescentes
com ar de menino, a dar cara e nome completo em tantos casos: 55
testemunhos.
Como? Onde foram buscar mais coragem, depois de lhes partirem os
ossos, largarem mastins às dentadas, apagarem cigarros na boca,
meterem paus (e ferros quentes, e aparelhos eléctricos) no recto,
prenderem os testículos a um peso, darem choques, cuspirem na cara,
sufocarem com gás de pimenta, atirarem granadas de atordoamento,
pisarem feridas, privarem de sono por semanas, de sol por 191 dias,
com sanitas sem água 23 horas por dia, um penso higiénico para uma
menstruação inteira, obrigados a ficarem nus, muitos de fralda, aos 15
e 20 em celas imundas, a dormirem no chão, com sarna, com bichos,
com feridas, a mesma roupa meses, sem sabão, dois pratos para a cela
inteira, só arroz cru em água quente, comida podre, fora de prazo,
espancamentos com bastões, semanas de joelhos, mãos amarradas e
olhos vendados, membros amputados de tão apertados. Obrigados a
beijar a bandeira de Israel, dizer O Povo de Israel Vive, enquanto
morrem. E constantemente filmados. “Em live streaming para Ben-
Gvir!”, disse um dos soldados, numa das orgias diárias.
Como não pensar de novo na Saló fascista que Pasolini encenou? Só
que esta Sodoma vai em mais de 300 dias e é a vida, é a morte. É live
streaming & death streaming para Ben-Gvir.
Porque ele é o joker de IsraHell, mas o baralho não acaba. É o governo
e é o Estado. Os tribunais. A polícia. O exército. Não só soldados
homens. Soldadas que sodomizam detidos e chamam “putas” a
palestinianas forçadas a deixar os filhos. Algumas a amamentar. Qual
democracia? A que há mais de 300 dias mata os jornalistas de Gaza,
não deixa entrar os outros e bane a Al Jazeera? Ou aquela que tortura
milhares, depois de ter prendido já centenas de milhares ao longo de
décadas, o que faz com que não haja qualquer família palestiniana que
não tenha tido alguém numa prisão de Israel?
Seriam precisas páginas de jornal para o que se lê-vê neste relatório. O
toco da coxa de Sufian, 42 anos, taxista de Gaza, pai de quatro filhos,
amputado depois de espancamentos. Os dedos partidos das mãos de
Muhammad, 18 anos, da Cisjordânia Ocupada. Os 20 quilos perdidos
de outro Muhammad, 16 anos, de Jerusalém Oriental Ocupada.
Imaginem o vosso filho, irmão, sobrinho, primo, neto a perder 20
quilos aos 16 anos em pouquíssimo tempo.
E a ouvir os gritos dos que eram mortos. Porque, diz o relatório, pelo
menos 60 palestinianos morreram detidos, de tortura ou negligência,
desde 7 de Outubro, muitíssimo mais do que em anos de Guantánamo.
Detidos, às vezes, por causa de um post de Facebook.
4. Este relatório é uma carta terrível de Israel sobre Israel. Tão terrível
que já não pede nem espera resposta de Israel. Pede e espera resposta
do mundo: que ponha fim a isto. “Israel está a cometer tortura que
constitui crime de guerra e até crime contra a Humanidade. Apelamos
a todas as nações, instituições e órgãos, incluindo o Tribunal Penal
Internacional, para que façam todo o possível para pôr um fim às
crueldades que os palestinianos sofrem no sistema prisional israelita, e
para reconhecer o regime israelita que opera esse sistema como um
regime de apartheid que tem de acabar.”
O “ataque horrífico” do Hamas a 7 de Outubro, diz a B’Tselem, deu
“ao governo e ao ministro Ben-Gvir a oportunidade de manipular a
vontade de vingança, de a usar”, pondo em prática “a sua ideologia
racista, através de mecanismos opressivos”. E a Procuradoria e o
Supremo de Israel “curvaram as suas cabeças em submissão à agenda
de Ben-Gvir, permitindo abusos e a total desumanização destes
prisioneiros”.
No momento em que este relatório — apelo — carta — chega ao
mundo, mais de 9000 palestinianos continuam “prisioneiros de
segurança” numa “rede de campos de tortura”, diz a B’Tselem.
Centenas são menores, como alerta há muito o Comité dos Prisioneiros
Palestinianos.
Nunca o horror humano foi tão documentado em tempo real. Isto é
sobre nós. E cada dia em que a Europa não faz nada, mais se afunda —
António Costa: também é consigo. Com o Governo português. Quem
trabalha sobre lei, tortura, direitos humanos. E como é que algum herdeiro da Shoah pode não ver estas pessoas agora?
…E QUE, AINDA POR CIMA, ACABOU POR TER RESULTADOS DESASTROSOS
A hereditariedade é governada por tantas leis ou condições desconhecidas
que até parece agir de maneira caprichosa.
Charles Darwin
Fique culto nesta Verão
ESTE SABER VAI OCUPAR UM LUGAR COMPLETAMENTE VAZIO
A partir do último livro de Charles Darwin, THE ASCENT OF MEN & THE SEXUAL SELECTION
No contexto de uma nova tradução, revista e comentada, de todas as obras de Darwin, que entrará em publicação a partir de Dezembro de 2024 na editora Exclamação
“Uma Casa de Gosto é uma casa de bom gosto, onde todas as coisas são um reflexo de pensamentos refinados e desejos castos. Num tal lar, a Beleza preside à educação dos sentimentos, o intelecto é aperfeiçoado, e a natureza moral é depurada através dos apelos silenciosos da Natureza e da Arte, que são os alicerces do Gosto.[1]”
James Shirley[2] Hibberd, em RUSTIC ADORNMENTS FOR HOMES OF TASTE: CONTAINS SUGGESTIONS FOR THE FLORAL EMBELLISHMENT OF THE HOME, THE GARDEN, BALCONY, WINDOW, GREENHOUSE AND CONSERVATORY: WITH HINTS ON THE FORMATION AND MANAGEMENT OF FRESH-WATER AND MARINE AQUARIUMS, VIVARIUMS, ETC. Desde cerca de 1855 até à publicação em Oxford de todos os fascículos num único opúsculo de capa dura, em 1895.
Antes de mais nada, há um herói da cultura e das belas causas que pode ser uma criatura algo irritante, mas para todos os efeitos é a grande estrela desconhecida desta história. O britânico Herbert Spencer, um dos grandes representantes do liberalismo clássico do seu tempo, nasceu em 1820 e morreu em 1903. Destacou-se a vida inteira enquanto notável opositor dos governos militares e autoritários, do colonialismo, do imperialismo, e de qualquer forma de guerra. Além disso, aplicou à sociologia ideias que eram próprias das ciências naturais, por forma a criar um sistema de pensamento que foi muito influente na sua época. As conclusões dos seus estudos levaram-no a defender a primazia do indivíduo perante a sociedade e o Estado, e a Natureza como fonte da verdade, incluindo a verdade moral. No campo pedagógico, Spencer fez uma verdadeira campanha pelo ensino escolar da ciência, combateu a interferência do Estado na educação, e afirmou que o principal objetivo da escola era a construção do caráter[3].
As suas cruzadas filosóficas foram sempre extremamente populares, e os números resultantes falam por si. Enquanto a maioria dos filósofos não consegue atingir muitos seguidores fora do grupo de colegas de profissão, entre 1870 e 1880 Spencer tinha alcançado uma popularidade sem precedentes. Foi provavelmente a primeira, e talvez a única vez na história, que um filósofo vendeu mais de um milhão de cópias de seus trabalhos durante a sua vida.
Não se trata aqui de um mero fenómeno de vendas, mas, muito provavelmente, de um verdadeiro benefício para a humanidade. Nos Estados Unidos, onde as edições piratas ainda eram comuns, a sua editora autorizada, a Appleton, vendeu 368.755 cópias entre 1860 e 1903. Este valor não difere muito das vendas na sua Inglaterra natal, e, quando adicionamos as edições do resto do mundo e o das edições pirata, o valor de um milhão de cópias parece ser uma estimativa conservadora. Como observou o filósofo e psicólogo americano William James,[4] Spencer “ampliou a imaginação, e libertou a mente especulativa de inúmeros médicos, engenheiros, advogados, físicos, químicos, e dos leigos em geral“. A parte do seu sistema de pensamento que enfatizava o autoaperfeiçoamento do indivíduo encontrou um público imediatamente interessado na classe trabalhadora qualificada.
Vale a pena notar, aliás, que o endeusamento da Natureza, que poderia ter sido escandaloso em tempos anteriores, e pode parecer-nos legitimamente ridículo hoje, é uma das posturas mais características dos intelectuais da segunda metade do século XIX, sobretudo nos Estados Unidos. Veja-se, por exemplo, toda a comunidade de pobres voluntários que escolheu viver em contacto estreito com a Natureza em torno do Lago Concord, no Massachusetts. Foi nesta comunidade que Louisa May Alcott escreveu, entre muitos outros, o seu quase autobiográfico MULHERZINHAS. Foi também aqui que o respeitadíssimo Ralph Waldo Emerson, considerado o grande expoente do Transcendentalismo, escreveu o livro A NATUREZA, que viria a ter uma influência impressionante sobre os jovens do seu tempo. Considerando a Natureza a fonte da verdade Herbert Spencer está, portanto, a reproduzir em Inglaterra muito do que foi escrito nos ensaios e poemas americanos, surtindo desde logo o mesmo impacto sobre o público, sobretudo o público mais jovem.
Como era próprio da época, Spencer teve várias especializações: foi antropólogo, filósofo e biólogo. Nesta última condição, tornou-se um profundo admirador da obra de Charles Darwin. Depois de ler A ORIGEM DAS ESPÉCIES, decidiu escrever um livro em que estabeleceria diversos paralelismos entre teorias económicas e teorias biológicas.
Para isso, evidentemente, era preciso que todos os leitores conseguissem compreender sem esforço as teorias biológicas – uma vez que as económicas, essas, para o efeito a que se destinavam, não levantavam qualquer problema.
Spencer não demorou muito tempo a reparar que é extremamente difícil explicar aos leigos que, tal como Darwin parecia postulá-la, a seleção natural funciona, ao que parece, e se não é bem assim é qualquer coisa deste género,
“pela sobrevivência do conjunto de mutações que, completamente por acaso, estão melhor adaptadas à transformação ambiental seguinte, sendo que ninguém pode prever que transformação vai ser essa, pelo que nunca é possível prever que mutações é que vão ser favoráveis para cada espécie; e uma espécie beneficiada num determinado contexto pode ser prejudicada logo a seguir por mudanças de contexto que também não podemos anticipar”
Portanto, temos aqui um grande problema. É importante que as pessoas percebam como é que funciona a evolução; mas, se vamos tentar explicá-la através da selecção natural, vamos mantê-las permanentemente confusas.
Com todo o seu treino de Filosofia, Psicologia, e Comunicação acessível até aos menos dotados, Spencer refletiu muito sobre este dilema, à procura de uma fórmula simples, de preferência uma única frase de uma única oração, que permitisse a toda a gente entender imediatamente como funciona a selecção natural, sem necessidade de mais explicações.
Não sabemos durante quanto tempo andou às voltas com o problema da simples frase.
Mas sabemos que conseguiu arranjá-la.
Querem saber como é que a evolução funciona, é?
Pois bem, é muito simples: a evolução funciona pela sobrevivência do mais apto.
Foi assim que a selecção natural apareceu descrita em 1864 no livro de Spencer PRINCIPLES OF BIOLOGY, que o autor se apressou a autografar e enviar ao seu Grande Herói Intelectual Charles Darwin.
Darwin, no entanto, achava a Biologia de Spencer “pouco útil”, e comentou uma vez, sigilosamente, ao seu grande amigo e colega de Geologia Sir Charles Lyell[5], que tinha uma certa dificuldade em ler todos aqueles best-sellers por causa do seu “estilo detestável”.
Consequentemente, tudo isto poderia ter-se ficado pelas páginas de um autor vitoriano de best-sellers científicos que agora ninguém recorda (os tais momentos de lugar ao sol que depois se somem no nevoeiro de que falava Charles Dickens exactamente nessa altura), se não fosse Alfred Russell Wallace. Este homem, que não conhecia Darwin de lado nenhum e chegou à teoria da origem das espécies precisamente ao mesmo tempo do que ele, publicou o seu trabalho separadamente e nunca mais deixou de trocar correspondência com o colega miraculoso. Cada um deles usava terminologia diferente, e Wallace já protestara várias vezes antes contra o termo darwiniano “selecção natural” porque, na sua opinião, era uma escolha de palavras que implicava que a existência de um “selecionador inteligente” com “pensamento e direcção” era fundamental no processo, quando na realidade o processo era totalmente aleatório, como ambos sabiam – mas os leitores com menos formação ficavam frequentemente confusos. Numa longa carta datada de 1866, Wallace pede então repetidamente a Darwin que experimente minimizar essa confusão utilizando antes “o termo de Spencer” – a saber, “a sobrevivência do mais apto”.
Mesmo sem gostar nem do termo nem da prosa de Spencer, Darwin não se furtou à experiência. Um pouco às apalpadelas, introduziu “o termo de Spencer” no seu VARIATIONS OF ANIMALS AND PLANTS UNDER DOMESTICATION de 1868, o seu livro mais volumoso de sempre[6]. Por fim, em 1869, chegou mesmo ao ponto de polvilhar com alguns “a sobrevivência” do mais apto” a sua quinta edição de A ORIGEM DAS ESPÉCIES, mas sempre, e fundamentalmente, enquanto auxiliar e explicação de “seleção natural”, um termo bastante mais complexo mas inescapavelmente necessário, uma vez que, tal como o autor nunca se cansou de insistir, a evolução é um processo sem vitórias: os vencedores da “luta pela existência[7]” (um termo que Darwin foi buscar ao economista e demógrafo inglês Thomas Malthus) podem tornar-se os vencidos se as circunstâncias mudarem. Por exemplo, a evidência fóssil indica que o Mamute Peludo estava perfeitamente adaptado durante a última Idade do Gelo, que acabou há cerca de 11.700 anos – mas tornou-se cada vez menos adaptado à medida que o clima foi aquecendo e os humanos aprenderam a caçá-lo cada vez melhor. Finalmente, a mesma evidência fóssil indica que este colosso terá sido dado por extinto alguns milhares de anos mais tarde.
Por esta altura, a introdução na linguagem científica da “frase de Spencer” já não causava estranheza a ninguém, gostasse-se dela ou não: toda a gente admitia que, mesmo que pudesse dar uma imagem um tanto ou quanto desfocada da selecção natural darwiniana, tinha o seu lugar justificado na literatura como forma de simplificar o entendimento do público mais generalista. E, naquela época, naquele meio, educar cientificamente o público laico era mais do que um dever: era uma missão quase sagrada a que ninguém que soubesse do seu ofício quereria furtar-se.
E foi assim, com a circulação incessante de obras e palestras destinadas à educação do público, que o chamado “darwinismo social” pôs a cabeça de fora.
Aplicado exclusivamente ao ser humano, e baseado sem mais complicações na “frase de Spencer”, o “darwinismo social[8]” defendia o que já se consegue imaginar daqui: que há pessoas melhores e pessoas piores, e é apenas justo, porque apenas normal e cientificamente justificado, que as piores morram e as melhores triunfem.
Regressemos, por exemplo, ao louvor que Shirley Hibberd fez em fascículos durante a segunda metade do século XIX, com um sucesso tão grande que foi a própria Universidade de Oxford a tomar a iniciativa de juntá-los a todos num único livro de capa dura. Tal como os fascículos que o antecederam, o livro está cheio de desenhos demonstrativos dos vários conceitos que o autor vai desenvolvendo, todos eles indiscutivelmente belos e apelativos. Todos esses desenhos foram feitos pelo próprio Shirley, na sua campanha de demonstração de como a Beleza exterior do jardim condicionaria a Beleza interior da casa – e, com ela, a Beleza e a Felicidade das famílias aí residentes.
Note-se que Shirley foi o grande e reconhecido pioneiro da jardinagem ao ar livre em grande escala, e com grande beleza, requerendo para o efeito um enorme esforço de manutenção – e tudo isto pelas suas próprias mãos. Toda a gente admirou não só o desenho dos seus jardins mas também a sua energia, aparentemente inesgotável. Mas nem toda a gente tinha qualquer espécie de interesse em ir lá para fora expor-se aos elementos (passando-se esta história em Inglaterra, deduz-se que estaria a chover quase todos os dias…) por causa de um jardim, cujo desenho, plantação, e abertura de estradas planas, de areia lisa, onde pudesse passar um automóvel, bem como pequenos caminhos de grandes pedras que pareciam ter-se encostado assim umas às outras completamente por acaso, para não falar do grande lago plácido com mesas de chá e de cartas, toldos, e encantadoras aves exóticas, poderia encomendar a Shirley – e depois pagar mal a uma série de empregados, oferecendo-lhes péssimas condições de trabalho, para manterem o seu Louvor à Beleza a funcionar de noite e de dia, melhor ainda do que VERSAILLES, para não dizer nada daquele famoso JARDIN LES DÉLICES, da famosa grande musa e mecenas Madame de Chatelêt, onde indivíduos como Voltaire e Rousseau se abrigavam para recuperarem as forças entre duas grandes batalhas da razão contra a reacção bruta, e depois se reuniam para jantar com vários outros pares interessantes que ali acorriam a convite da anfitriã, debatendo os grandes do temas do momento com a mais requintada ironia e deliciosas exposições ao ridículo dos seus adversários. Entretanto, como num milagre, dezenas de tochas balsâmicas iluminavam a noite, seguradas tranquilamente, mas com grande dignidade, por jovens “de pele e feições vagamente africanas, e com enormes olhos claros, rasgados, mesmo no sorriso semelhantes aos olhos da serpente, e mais hipnóticos ainda do que os do animal. Submeti-me por mais do que uma vez à experiência quando estava pronto para ir dormir, e não posso dizer que conheça outra minimamente mais agradável.[9]” A avaliar pelas amostras de correspondência recolhidas entre vários dos membros destes jantares, parece que os comensais também eram frequentemente maravilhados por rapazes bonitos, musculosos, cuidadosamente selecionados pela sua pele morena e estatura elevada, que dançavam para eles “terríveis danças de guerra, provavelmente comparáveis às dos machos que se exibem para conquistar uma fêmea.[10]”
É assim que o darwinismo social separa as águas: quem tem meios para manter sempre a funcionar o seu jardim magnífico está no topo da pirâmide evolutiva e deve considerar-se mais apto com toda a justiça; enquanto que quem não tem meios para assegurar a presença, em torno de sua casa, de um jardim digno desse nome, está algures mais abaixo na pirâmide, vê-se obrigado a trabalhar sem descanso no jardim dos outros para conseguir sustentar a família, que já agora tende a ser cada vez mais, à medida que a escala da pobreza desce pelo interior da pirâmide, uma família em que a mulher fica envelhecida e encovada muito depressa, e muitos filhos morrem ao longo do percurso, por simples falta de acesso aos mais elementares de todos os cuidados médicos. É evidente que estão pouco aptos, e a sua sobrevivência é extremamente discutível.
Isto seria, digamos, a história de como um partido de extrema-direita da época defenderia o seu direito à existência pela lógica da razão pura.
Infelizmente, a história foi ainda pior.
O desastre consumou-se através de um meio-primo mais novo de Darwin, de seu nome Francis Galton, que se instalou cedo e confortavelmente na poltrona do darwinismo social, com tanto trabalho desenvolvido no estudo da inteligência humana e da sua transmissão que, em 1909, depois de 340 publicações, foi armado cavaleiro pelas suas contribuições para a ciência. E estas abundavam, porque o indivíduo era, no mínimo, e isto temos que conceder-lhe – era extremamente curioso. Galton foi o criador da expressão “nature versus nurture[11]”. Também foi o introdutor do uso das impressões digitais na ciência forênsica. Além disso foi antropólogo, matemático, estatístico, e especialista de metereologia, disciplina onde criou os primeiros mapas do clima e propôs a teoria dos anticiclones[12]. Ou seja, era considerado e respeitado enquanto cientista, pelo que arcava com a responsabilidade social de todos os seus pares. Portanto, quando publicou em 1883 o seu INQUIRIES INTO HUMAN FACULTY AND ITS DEVELOPMENT, apresentando pela primeira vez ao mundo culto do seu tempo o conceito de eugenia[13], legitimado cientificamente pela sobrevivência do mais apto, se fez asneira em grande estilo só fez porque quis. Era impossível que um cientista da craveira de Francis Galton, escrevendo em fins do século XIX, inspirado pelas publicações do seu primo[14], depois da redescoberta das obras de Mendel, e de tudo o que o registo fóssil já tinha revelado[15], não conseguisse entender que não pode existir nenhum fenómeno natural passível de ter como base um modelo tão simplista como a sobrevivência do mais apto.
O modelo foi-lhe muito conveniente, o que é outra coisa.
Em última análise, foi conveniente para todos os habitantes do Ocidente de pele clara, preferencialmente os de olhos azuis e cabelo louro: a sobrevivência do mais apto foi a primeira grande demonstração científica da supremacia branca, com todos os estragos que fez logo na altura e com os que ainda virá a fazer no futuro.
Extra-texto I
Pensem em todos os métodos que, hoje em dia, os bancos de sémen têm vindo a financiar para conseguirem vender produtos superiores. Por superior entende-se, sempre, “tipo escandinavo”, além de estudantes com notas mais altas e mesmo Prémios Nobel. A gente detesta engolir a parte em que a Eugenia, em vez de morrer para todo o sempre, agora voltou a acordar para nos angustiar de novo[16]. Mas e Eugenia é como a hidra. Já os gregos se temiam destas coisas. Cortem-lhe uma cabeça, cortem. Nascem-lhe logo outras duas. Não temos qualquer balística que combata este mito. Resta-nos o mais importante de tudo, que é a informação.
Por todas estas razões pouco bonitas, nesse fim de século ainda meio mundo discutia Darwin, mas já toda a gente entendia Galton[17] e respeitava sem margem para dúvidas a sua enorme respeitabilidade científica. E foi então que o futuro cavaleiro propôs que, segundo o conceito da eugenia, só deviam poder reproduzir-se os exemplares superiores da raça humana para que a população melhorasse como um todo[18]. Nesse sentido, a função reprodutiva, aquela que, de todas as que há no mundo, carrega consigo a maior das responsabilidades, passaria a ficar automaticamente vedada, fosse por esterilização ou fosse por prisão em instituições a criar para o efeito[19], aos deficientes, aos loucos, aos presos, aos criminosos, aos “débeis mentais[20]”, às prostitutas… e aos pobres.
A ideia básica deste plano era acelerar a lentidão infinda do Tempo Geológigo para a Rapidez Humana de duas ou três gerações, despachando com grande rapidez o que a selecção natural faria de forma extremamente lenta: introduzir, através de boas políticas medico-sociais, os protocolos necessários para melhorar rapidamente a espécie humana. Que é que tem? Há séculos que veterinários e agricultores vinham fazendo isso mesmo com crescente sucesso, e não menos aplauso público. Agora, meus senhores, a ciência permite finalmente esta intrépida mudança de paradigma, que leva ao mesmo melhoramento, finalmente possível no humano.
Se nos parecer estranho agora que nenhum dos visados enquanto “exemplares deletérios” da raça humana tenha armado qualquer espécie de tentativa de revolução, é apenas porque, nos mais inconscientes de todos os nossos níveis emocionais, todos somos profundamente moldados pela ideia que os outros têm de nós – e, se aqueles que nos desprezam o disserem em voz alta, se usarem até um megafone, acabamos por não conseguir sentir por quem somos mais do que um profundo desprezo. Durante as campanhas da Eugenia, houve milhões de pessoas, em todo o Ocidente, que foram seriamente pressionadas no sentido de se considerarem uma acabada porcaria, um erro crasso da natureza, até, que mais valia castrar para não contaminar a espécie no futuro. E, impotentes, baixaram a cabeça.
Os cientistas americanos que visitaram a Inglaterra durante a Idade de Ouro de Francis Galtonficaram tão seduzidos com este conceito de supremacia branca, comprovada pela sobrevivência do mais apto, e portanto com o selo de honra da aprovação cientifica, que agarraram na Eugenia e a levaram para casa. As ideias de Galton já tinham encontrado ecos entusiásticos em vários países europeus[21], e a resposta dos Estados Unidos não foi só um eco: foi um êxtase. E um êxtase muito bem financiado, diga-se de passagem. Os estudos sobre a questão de como melhor implantar a Eugenia Americana tiveram o apoio da Fundação Rockfeller, do Carnegie Mellon Institute, e da fortuma doada por Mary Harriman, viúva do grande barão dos caminhos de ferro americanos, E. H.Harriman, dono da linha de comboio costa a costa. Em 1906, J. H. Kellogg, o médico imortalizado na foto daquele velhote simpático que ainda hoje aparece nas caixas dos cereais que inventou, cobriu todos os custos da construção da Race Betterment Foundation[22], em Battle Creek, Michigan. Logo a seguir, em 1911, com o apoio das autoridades locais e por iniciativa do famoso e muito respeitado biólogo Charles B. Davenport, treinado em Harvard e docente na mesma universidade até ao início da sua cruzada eugénica, construiu-se em Cold Spring Harbor, Nova York, o Eugenics Record Office[23]. Davenport entregou a direcção do Departamento a um psicólogo seu amigo, também ele de enorme respeitabilidade, chamado Harry H. Laughlin. Além destes auxiliares de primeira linha mais vistosos, Davenport também contou sempre, na chuva de publicações que fizeram parte da cruzada épica que ele mesmo tratou de desencadear sobre o seu país para que a genética mendeliana pudesse ser aplicada aos humanos sem quaisquer entraves, com a colaboração da sua mulher, Gertrude Davenport, uma geneticista e embriologista de enorme renome.
Uma das tarefas a que este trio de projecção e propaganda, encarregue de assegurar novas gerações de americanos cada vez mais bem constituídos e mais inteligentes, meteu ombros sem demora, foi a questão de como diminuir os efectivos da população indesejável, que formava uma maioria ameaçadora para o melhoramento americano. Estabeleceu-se para a discussão de estratégias um regime de reuniões semestrais com um comité de sete colegas, todos eles imensamente qualificados em áreas mutuamente complementares. Foi numa destas reuniões de estratégia, realizada em 1933 sem qualquer espécie de secretismo, que se falou de Extermínio em Massa pela primeira vez.
Se o ano de 1933 vos disser alguma coisa, então deve ser porque Hitler foi democraticamente eleito a 5 de Março de 1933.
Davenport era um grande mestre da arte do lobbying, ao ponto de conseguir aliar a maioria das mulheres brancas, e até alguns intelectuais negros, na sua cruzada para elevar o povo americano acima de todas as outras raças do mundo. A definição do futuro americano ainda estava em aberto, pelo que a credibilidade científica da Eugenia, com todos os traços deletérios considerados hereditários[24], e portanto incorrigíveis, se transformou com o tempo num pretexto fantástico para impedir a entrada no país de tudo quanto fosse imigrante do Sul da Europa, de origem judaica, ou portador de outros estigmas considerados opostos à construção de uma sociedade perfeita[25]. O Immigration Act de 1924, que observa todas estas restrições, é claramente um triunfo dos eugenistas sobre os congressistas. E, ao mesmo tempo, já há uns bons dez anos que se promoviam, com grande sucesso e maior concorrência, cada vez mais concursos como “a melhor família americana”, ou “o melhor bebé americano”[26].
Logo em 1911, o problema dos defeitos hereditários, e o esforço científico de gizar bons métodos para acabar com a sua transmissão imutável de pais para filhos, levara Davenport a convocar mais uma reunião de especialistas, onde também não se observou qualquer secretismo. Ao fim de dois dias, estava elaborada, e assinada por todos os seus proponentes, uma lista de dezoito métodos para conter o flagelo imutável da hereditariedade. O oitavo método era a eutanásia. E, no sentido de tornar essa mesma eutanásia mais rápida e funcional, sugeria-se a construção de uma câmara de gás anexa aos hospitais.
Há detalhes históricos que não é prudente deixarmos cair no esquecimento, e estes fazem parte desse número: a ideia do Extermínio em Massa nasceu em Cold Spring Harbor em 1933, e ideia da câmara de gás nasceu em Nova York logo em 1911.
O projecto não se realizou apenas porque os fundos começaram a tornar-se mais escassos, uma vez que todas as facções envolvidas sustentavam que um programa desta envergadura, destinado a salvar o povo americano do declínio, deveria por força ser financiado pelo Tesouro Federal. À falta de melhor, enquanto toda a gente discutia foram-se explorando alternativas menos rápidas mas perfeitamente seguras, como a esterilização forçada de homens e mulheres: os números oficiais indicam que, entre 1907 e 1963, mais de sessenta e quatro mil pessoas foram anestesiadas e depois esterilizadas sem o seu conhecimento prévio[27]. A Califórnia, que só por si esterilizou mais pessoas do que todos os outros estados juntos, começou a partir de 1933 a enviar literatura especializada para hospitais, clínicas, e laboratórios farmacêuticos alemães, e a convidar os seus dirigentes a virem observar no terreno todo o seu imenso trabalho de campo.
De onde viria este cortejamento tão específico que os especialistas americanos começam a fazer à Alemanha, exactamente quando Hitler sobe ao poder? O entusiasmo popular e o interesse científico com que os alemães acompanhavam as actividades velozes da Califórnia teve de certeza um papel neste estranho noivado. Além disso, as tentativas repetidas que Davenport foi fazendo no sentido de criar Sociedades Eugénicas Internacionais não tinham surtido grande efeito entre os europeus à excepção dos escandinavos, pelo que uma aliança internacional com a aderência garantida da Alemanha caía muito bem nos seus propósitos propagandísticos.”
A avaliar pela correspondência trocada entre os investidores e empresários da época, o Grande Capital, só por si, pode muito bem ter desempenhado nesta história o papel mais relevante de todos. Qualquer capitalista que quer crescer precisa de novos clientes. Numa Europa toda ela empobrecida na sequência da I Guerra, a Alemanha aparecia como uma nação bastante rica, povoada por pessoas eugenicamente correctas, tão perfeitamente superiores como o Siegfried de Wagner. E os seus maiores expoentes tecnológicos e científicos pareciam tão interessados nas várias metodologias eugénicas americanas que, depois de todas as técnicas devidamente patenteadas, estava ali uma mina de ouro de certeza.
Não foi só a Califórnia que valorizou devidamente este interesse caloroso dos nacional-socialistas. Mostrando a boa-vontade e o interesse dos americanos em melhorar não só o seu país mas também o mundo das raças superiores, a Fundação Rockefeller estudou a fundo vários programas eugénicos alemães, apoiou o seu desenvolvimento, e, sobretudo, assegurou na totalidade o seu financiamento.
Os eruditos americanos ainda andaram ali desenganados por uns anos consideráveis, cheios de orgulho na importância que tinham adquirido junto dos grandes cientistas alemães, tão dedicados à causa eugénica e tão disciplinados na sua experimentação. Não houve conferência das diversas Sociedades Internacionais de Eugenia em que não repetissem que estavam cheios de orgulho. Aliás, deixaram-se andar cheios de orgulho até já ser tarde demais.
Todos aqueles nacional-socialistas alemães que vieram estudar o fenómeno no terreno regressaram à base cheios de grandes ideias. Sem conhecimento do resto da Europa[28], construíram com essas ideias um edifício teórico e bélico cada vez mais grandioso. No epicentro desse edifício, Adolf Hitler deixou de falar aos alemães de paz e prosperidade para falar antes da coragem de renovados sacrifícios, suficientemente grandes para que a raça alemã se tornasse superior a todas as outras. Vamos cerrar fileiras contra todos os que tentarem deter-nos, e dentro de duas ou três gerações o Siegfried seremos todos nós.
Foi este mesmo edifício que levou ao Holocausto.
Francis Galton morreu em 1944, sem poder assistir ao último acto da tragédia terrível criada no século XX pela sobrevivência do mais apto.
Quando foram julgados no Tribunal de Nuremberga, os obreiros da Solução Final garantiram que não tinham feito mais do que implementar os conhecimentos adquiridos na América junto dos maiores peritos da Ciência da Eugenia, que aliás financiaram os estudos dos nacional-socialistas, tanto quanto se percebia a fundo perdido.
Na altura, com a Europa ainda em estado de choque depois de ter visto aqueles filmes insuportáveis sobre o estado em que se descobriram os judeus encarcerados nos campos de extermínio, e com a Guerra ganha depois de, no seu último ano, os americanos se associarem aos Aliados, ninguém quis ouvi-los.
Mas, na realidade, aqueles réus detestáveis estavam positivamente cheios de razão.
Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora
Texto a partir do último livro de Charles Darwin, THE ASCENT OF MEN & THE SEXUAL SELECTION
No contexto de uma nova edição, traduzida, revista, e comentada, de todas as obras de Charles Darwin, que entrará em publicação a partir de Dezembro de 2024 na editora Exclamação. O primeiro livro será exactamente o último, este A ASCENDÊNCIA DO HOMEM, onde Darwin conclui, reúne, e discute todo o seu formidável conhecimento de causa.
Extra-história
A ignorância causada pelo medo das espécies diferentes das outras que,
ouvindo notícias preocupantes,
foram esconder-se nos confins do bosque e nunca mais saíram de lá
HISTÓRIA DOS DOIS ANIMAIS DESCONHECIDOS
Dois animais que andavam há anos escondidos num bosque enorme com medo de uma razia aos animais estranhos de que toda a gente falava foram ao fim da tarde a um bebedouro num lugar onde a vegetação era tão densa que o tornava quase invisível. Ao contrário do que costumava acontecer, no entanto, chegaram ambos exactamente ao mesmo tempo. Ficaram estupefactos a olhar um para o outro, porque nunca tinham visto ninguém assim na variegada fauna do bosque.
“És um animal muito estranho,” disse, por fim, o primeiro. “Vivo há anos aqui escondido, e nunca vi nenhum animal assim. Podes dizer-me quem és?”
“Bem…”, principiou o segundo, com uma olhadela em volta para ter a certeza de que não estava mais ninguém a ouvir. “Eu sou um cão-lobo.”
“Um cão-lobo?”, indagou o primeiro. “Mas eu nunca ouvi falar disso. O que é exactamente um cão-lobo?”
“Então,” esclareceu o segundo, agora já com algum orgulho. “Eu sou um cão-lobo porque a minha mãe era uma cadelinha… muito bonita… que se perdeu neste bosque… onde encontrou o meu pai, que era um lobo… e foi assim que eu nasci. E tu, já agora, que também és muito estranho – que raio de animal é que tu és?”
“Eu? Ah, eu sou apenas um urso-formigueiro.”
“Eh pá, não gozes comigo.”
[1] Pode não parecer, e pode até aparecer à primeira vista como um opúsculo extremamente irritante destinado às donas de casa de tenham como sonho criar e manter a toda a sua volta um lar perfeito para toda a família, mas um livro destes, nesta altura, é na realidade uma autêntica bomba-relógio, pronta a explodir assim que lhe carreguem no botão. E os segredos das formas de chegar ao botão estão cheios de armadilhas. Convém ir avisando. Neste caso concreto, convém mesmo.
[2] O nome “Shirley” é andrógino no século XIX.
[3] Não admira que este Sistema fosse influente. Ainda hoje gostaríamos dele, mesmo com muito ensino de ciência na escola. Os lugares-comuns são sempre reconfortantes, e a ausência do Estado, mesmo que leve rapidamente ao caos total ou ao abandono escolar exponencial, de início é sempre uma ideia excitante. Para o período vitoriano, o conceito de procurar a verdade na Natureza não podia estar mais na ordem do dia.
[4] James também não é um psicólogo e filósofo qualquer. Na realidade, foi o primeiro intelectual a oferecer um curso de psicologia nas universidades dos Estados Unidos. James foi também um dos principais pensadores do final do século XIX, e é considerado por muitos como um dos filósofos mais influentes da história dos Estados Unidos, enquanto outros o rotularam mesmo como “pai da psicologia americana”.
[5] Charles Lyell é mais um destes personagens enormes do período vitoriano que operaram a grande mudança de paradigma que separa o século XIX do século XX. O seu PRINCIPLES OF GEOLOGY, e todos os debates a que deu azo, contribuíram decisivamente para alterar de vez a História do Tempo, transformando o Dilúvio numa mera cheia do rio Jordão, eliminando de vez o episódio da Arca de Noé com todos os seus animais, e estabelecendo firmemente que o tempo da vida na Terra não era mensurável em termos humanos. A sua teoria do uniformitarianismo, não obstante alguns erros de raciocínio absolutamente notáveis, teve o enorme mérito de tornar o tempo infinito de uma vez por todas.
[6] E se o são todos, escritos, como eram, num tempo em que havia tempo.
[7] “Struggle for existence”, no original.
[8] Com o qual Darwin nunca concordou enquanto ainda em vida, professando antes um profundo desgosto pelo uso que estava a ser feito do seu trabalho.
[9] Anónimo. Em COLECÇÃO DE CARTAS DO JARDIN LES DÉLICES
[10] Idem.
[11] “A natureza ou a criação.”
[12] Durante este período, era frequente as “mentes brilhantes”, sobretudo se não tivessem preocupações económicas, investirem a sua sabedoria e a sua capacidade de estudo em tantas áreas quantas pudessem. Hoje em dia, uma dispersão por tantas disciplinas tão diferentes como a de Galton seria impossível – e, acima de tudo, extremamente mal vista.
[13] O termo é tirado do grego para “bem-nascido”.
[14] Galton já tinha ficado entusiasmadíssimo com a leitura de A ORIGEM DAS ESPÉCIES. O que o levou a avançar até aio conceito de eugenia, no entanto, foi a leitura de A ASCENDÊNCIA DO HOMEM.
[15] Incluindo dinossauros, montes deles, correctamente entendidos e reconstruídos como tal. E algumas das aves gigantescas das ilhas onde anteriormente não existiam predadores, com uma datação dos seus ossos perfeitamente estabelecida. E tudo isto em estratos de rocha datáveis, também eles de épocas geológicas diferentes.
[16] Sobre os métodos de recolha e isolamento de sémen considerado “superior”, ver a passagem sobre SNIPs em FEAR, WONDER, AND SCIENCE.
[17] Há que ver que, mesmo para entender facilitismos como “a sobrevivência do mais apto”, é preciso saber ler e escrever, capacidade que estava vedada à esmagadora maioria das pessoas. Este “toda a gente” limita-se, portanto, apenas aos tais “bem-nascidos”. É naturalíssimo que entendessem: aquilo queria apenas dizer, agora com aprovação científica, que eles eram o topo natural da pirâmide. De TODAS as pirâmides, vendo bem as coisas.
[18] Para mais informações sobre o programa da Eugenia, as catástrofes que causou no seu tempo, e as formas como tem vindo a ser re-criada no século XXI graças aos bancos de sémen equipados com SNIPs para determinadas características genéticas do embrião, tais como os olhos azuis e o cabelo loiro, ver Gilbert & Pinto-Correia, FEAR, WONDER, AND SCIENCE, 2018.
[19] Ver Stephen Jay Gould, A FALSA MEDIDA DO HOMEM, 2004, para estudos alargados e bem fundamentados de todo o estrago causado pelas tentativas de implementar programas de esterilização e de encarceramento “em instituições a criar para o efeito.”
[20] Mesma fonte. O conceito de Eugenia acabou por levar ao conceito “científico” dos testes de QI, e a vasta maioria dos testes de QI usados até à II Guerra foram sendo cada vez mais inflexíveis em “provar” que todos os pobres, todos os pretos, e todos os filhos desta gentalha são “débeis mentais.” E, como isto é “hereditário”, não há nada nem ninguém que possa mudar-lhes o destino.
[21] Este “todos”, embora muito usado, é francamente relativo. A Eugenia foi acolhida de braços abertos pelos países do Norte da Europa, onde o povo era quase todo de pele clara, e pelo menos metade das pessoas era loura e de olhos azuis. Nos países do Sul, foi mais um motivo para as classes dominantes, tradicionalmente compostas por pessoas de pele clara casadas entre si, se considerarem no direito de usufruir de ainda mais privilégios, e acharem natural a proibição do voto popular.
[22] “Fundação para o Melhoramento da Raça.” A coisa promete, não é.
[23] “Departamento dos Registos Eugénicos,” que procurava reunir as árvores genealógicas de todos os americanos e detectar se algum deles, alguma vez, teria sido “contaminado” por sangue negro, o que podia levar à perda de alguns benefícios sociais, e sobretudo ditar uma esterilização imediata, para que aquele “vício” tão bem dissimulado não contaminasse mais ninguém.
[24] Estamos a falar de um tempo filosófico já habituado às ideias de Lamarck, e ainda desconhecedor, ou muito desconfiado, das ideias da Darwin. A ideia de que as características dos pais se tornavam hereditárias e eram transmitidas aos filhos (a famosa “teoria de como cresceu o pescoço da girafa”, para simplificar razões) era, portanto, perfeitamente aceitável. E, sobretudo, uma vez mais – no que respeita à inteligência humana, era muitíssimo conveniente.
[25] A este respeito, consultar uma vez mais Stephen Jay Gould, A FALSA MEDIDA DO HOMEM.
[26] Por “melhor” entenda-se “mais bonito” e mesmo “mais loiro”, e não “mais inteligente”. A tradição estendeu-se também à América Latina, como política preventiva contra a miscigenação. Supostamente, estas famílias, ou estes bebés, receberiam apoios estaduais, ou mesmo federais, para melhor crescerem e se multiplicarem. Não sabemos se os receberam mesmo. Para mais informações, consultar THE HOUR OF EUGENICS, de Nancy Leys Stepan, 1991. Consultar Também Gilbert e Pinto-Correia, 2018.
[27] Esta era a forma mais suave de esterilização. Utilizaram-se obviamente outras técnicas mais brutais, sobretudo em cadastrados, criminosos – e, claro, centenas e centenas daquela porcaria daqueles pretos.
[28] Um exemplo claro deste desrespeito alemão pelos acordos de paz da época, saliente-se que a RAF, a temível frota de aviação de guerra alemã, foi totalmente montada em segredo absoluto, ainda antes do início da Guerra.
PÁGINA UM – O jornalismo independente (só) depende dos leitores.
Nascemos em Dezembro de 2021. Acreditamos que a qualidade e independência são valores reconhecidos pelos leitores. Fazemos jornalismo sem medos nem concessões. Não dependemos de grupos económicos nem do Estado. Não temos publicidade. Não temos dívidas. Não fazemos fretes. Fazemos jornalismo para os leitores, mas só sobreviveremos com o seu apoio financeiro. Apoie AQUI, de forma regular ou pontual.
APOIOS PONTUAIS
IBAN: PT50 0018 0003 5564 8737 0201 1
MBWAY: 961696930 ou 935600604
FUNDO JURÍDICO: https://www.mightycause.com/story/90n0ff
BTC (BITCOIN): bc1q63l9vjurzsdng28fz6cpk85fp6mqtd65pumwua
Em caso de dúvida ou para informações, escreva para subscritores@paginaum.pt ou geral@paginaum.pt.
Caso seja uma empresa e pretende conceder um donativo (máximo 500 euros por semestre), contacte subscritores@paginaum.pt, após a leitura do Código de Princípios.