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terça-feira, 27 de agosto de 2024

 

As fêmeas de milheirinha preferem amarelo. Agora sabemos porquê

A extraordinária e variada coloração das aves é produto da selecção sexual. A história da milheirinha, o parente mais próximo do canário, comprova-o. As fêmeas preferem mesmo os machos mais amarelos.



Paulo Gama Mota

Paulo Gama Mota

Líder de grupo de investigação
Grupo de Investigação Biopolis-Cibio: BE

Biólogo, professor associado da Universidade de Coimbra de evolução e comportamento animal e humano e investigador do Biopolis-Cibio. Os meus interesses científicos são em evolução do comportamento. Dirigi vários museus, incluindo o Museu da Ciência da Universidade de Coimbra, considerado o melhor museu de ciência da Europa em 2008. Amante de livros, gosto de fazer caminhadas, nadar no mar e andar de bicicleta. As férias para descomprimir têm de incluir boa literatura e mar.

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A milheirinha (Serinus serinus) é uma pequena ave europeia, muito comum em Portugal, e o parente mais próximo do canário, que se pode encontrar em jardins e parques, hortas e campos agrícolas. É fácil de observar, especialmente na Primavera, quando os machos cantam intensamente, chegando a acompanhar o canto com rápidos voos acrobáticos, numa autêntica coreografia cantada. São aves que se distinguem pela coloração amarela que se pode observar sobre a cauda em machos e fêmeas e que se apresenta com intensidade na cabeça e no peito dos machos, e os torna muito visíveis, apesar do seu tamanho reduzido.

O amarelo intenso das suas penas deve-se à deposição de um pigmento, um carotenóide, durante a sua formação. A natureza é muito colorida. As cores resultam ou da presença de pigmentos que absorvem partes do espectro electromagnético a que chamamos “luz visível”, ou da forma como as estruturas reflectem a luz, ou de uma combinação das duas. Nos animais, as cores amarelas, laranja e vermelhas resultam da presença de carotenóides nos tecidos ou em estruturas como as penas das aves.

A minha decisão de investigar esta ave foi um daqueles momentos definidores que têm uma parte de escolha intencional e uma parte de acaso. No Outono de 1990, procurava, com um dos meus orientadores de doutoramento, Tim Birkhead, da Universidade de Sheffield (Inglaterra), uma espécie cujo comportamento pudesse estudar e fosse interessante para os objectivos que tínhamos. Idealmente uma ave, porque são fáceis de observar e de marcar com anilhas coloridas, que nos permitem saber quem é quem à distância de uns binóculos. Precisávamos que fosse comum, porque é sempre importante ter um bom tamanho de amostra, que fosse fácil de capturar e de acompanhar a sua actividade reprodutiva, posturas e desenvolvimento das crias e que fosse possível obter ADN para análises de paternidade.

Macho e fêmea de milheirinha depois da captura nas mãos da bióloga Ana Leitão, para comparar a coloração
Macho e fêmea de milheirinha depois da captura nas mãos da bióloga Ana Leitão, para comparar a coloraçãoCrédito: Paulo Gama Mota

A minha passagem por Sheffield deu-se num período complicado. A guerra no Iraque levou a um grande aumento de tensão, com prisões e encerramentos da actividade de iraquianos que viviam nas ilhas britânicas. Foi o que sucedeu ao dono da pizaria onde eu comprava pizas, nos meus regressos nocturnos do departamento, apenas porque era iraquiano, ao que soube.

Foi também a altura em que a doença das vacas loucas apareceu nos tablóides e gerou um grande pânico social, já que mostrava sinais de passagem para os humanos, por consumo de carne de bovino contaminada, de uma encefalopatia espongiforme intratável que deixava o cérebro cheio de buracos e acabava com toda a possibilidade de raciocínio. Matou centenas de pessoas e levou ao abate de centenas de milhares de animais. Assustador, especialmente porque, como qualquer bolseiro sem recursos, eu recorria regularmente a refeições de hambúrgueres. Deixei de comer hambúrgueres sem saber se ainda ia a tempo...

Ave com pouco mais de dez gramas

A escolha recaiu sobre a milheirinha porque nos pareceu preencher os requisitos que definimos. Mas poderíamos ter escolhido outra espécie. Não imaginava então como esta escolha iria definir a maior parte da minha vida científica, que foi passada, em grande medida, a explorar o comportamento destas aves. Estou hoje em crer que provavelmente a jornada teria sido menos interessante e mais curta se a escolha tivesse sido outra.

O estudo do comportamento animal tem um pouco de voyeurismo científico. Foram milhares de horas no campo a seguir estas aves, numa área de estudo que escolhi próximo do paul de Arzila, a poucos quilómetros de Coimbra, a observar o seu comportamento, a anilhar, medir, recolher amostras, de adultos e crias, para no final termos um quadro detalhado do seu comportamento. Surpreendeu-me a intensa luta que estas pequenas aves, com pouco mais de dez gramas, travam contra as adversidades do ambiente, enfrentando a fortíssima predação que atinge mais de 70% dos ninhos e que deita tudo a perder, para recomeçarem uma e outra vez até atingirem o objectivo último de passar os seus genes para as gerações seguintes.

Captura das aves com redes verticais
Captura das aves com redes verticaisCrédito: Paulo Gama Mota

Durante esses três anos de trabalho de campo intenso, entre 1991 e 1993, houve dois aspectos do seu comportamento que despertaram o meu interesse, por serem muito espectaculares e visíveis e por haver uma teoria geral sólida para os investigar e explicar. Estávamos numa altura em que fervilhavam hipóteses alternativas que pediam para ser testadas no mundo real. O canto foi o primeiro desses comportamentos que decidi estudar imediatamente a seguir.

A milheirinha tem um canto extremamente complexo, constituído por uma sucessão rapidíssima de sons, por vezes ascendentes e descendentes em simultâneo, como um pianista pode fazer, mas não um flautista, num virtuosismo vocal extraordinário, sendo uma das aves que produzem mais sons por unidade de tempo.

O segundo aspecto que me interessou foi a coloração. Os machos apresentam um amarelo intenso bem perceptível na cabeça, no pescoço e ao longo do peito, as partes do corpo que uma ave exibe quando está face a face com outra. Tinha todas as características de um sinal. Um sinal sexual, porque só os machos são assim tão coloridos.

Dar razão a Darwin 100 anos depois

A ideia de que este tipo de sinais mais ou menos exuberantes e presentes em um só sexo, especialmente comuns em aves e em alguns peixes, como a presença de cores vibrantes, ou de caudas longas, como no pavão, estariam envolvidos em competições por acasalamento foi originalmente avançada por Darwin, em 1871. Surpreendia-o que características que comprometiam a sobrevivência dos animais pudessem ter sido seleccionadas; parecia um contra-senso para a teoria de selecção natural.

A explicação que Darwin propôs era a de que o custo de ter tais sinais seria mais do que compensado pelo maior sucesso na reprodução, ao serem preferidos pelas fêmeas da sua espécie, que os considerariam mais atractivos. Esta ideia revelou-se demasiado “fora da caixa” e nunca foi levada a sério pelos académicos seus contemporâneos, que achavam absurdo imaginar que as fêmeas dos animais pudessem escolher os machos.

Tivemos de esperar 100 anos para dar razão a Darwin, quando novos estudos começaram a provar que as fêmeas escolhiam realmente os machos, especialmente os que tinham características mais exóticas.

Aplicando a teoria de selecção sexual às milheirinhas, a minha hipótese era a de que as fêmeas preferiam os machos com amarelo mais intenso. Avancei para testar a hipótese.

Primeiro, era necessário ter uma medida quantitativa da sua cor, que é devida a um tipo de carotenóides presente no grupo dos canários, chamados “xantofilas de canário”. A cor não é uma propriedade dos objectos, pois depende da luz incidente. Uma maçã vermelha ao meio-dia não tem a mesma cor ao fim da tarde.

Além disso, as aves não vêem exactamente como nós. Conseguem ver mais cores, por terem quatro cones na sua retina, o que lhes permite ver nos ultravioleta. A retina dos nossos olhos tem apenas três tipos de cones que designamos por azul, verde e vermelho, porque captam a luz em três regiões do espectro electromagnético, mas não dá para ver no ultravioleta.

Então, para medir a cor das milheirinhas e determinar se esta era objecto de selecção, capturámos adultos dos dois sexos que trouxemos para o Laboratório de Etologia do Cibio, na Universidade de Coimbra, para realizar experiências controladas.

Medimos a coloração dos machos com um espectrofotómetro de reflexão e separámo-los em mais e menos coloridos. De seguida, apresentámos um macho de cada grupo a diferentes fêmeas para avaliar se elas escolhiam alguns, em detrimento de outros. Cada fêmea tinha dois machos à sua frente para escolher. E a escolha foi clara: os machos mais amarelos eram os preferidos. Ficava explicado por que eram os machos mais coloridos que as fêmeas nestas aves: as fêmeas preferiam mais amarelo.

Paulo Gama Mota a fazer medições de espectrofotometria em peles de aves da família dos canários no Museu de História Natural de Londres, em Tring
Paulo Gama Mota a fazer medições de espectrofotometria em peles de aves da família dos canários no Museu de História Natural de Londres, em TringCrédito: DR

A hipótese do macho saudável

Nesse momento, como é frequente em ciência, a resposta que tivemos deu origem a novas perguntas. As fêmeas preferem o amarelo; mas porquê? Qual a vantagem de as milheirinhas preferirem machos mais amarelos? Seria por eles serem mais saudáveis ou terem uma melhor qualidade genética, que, de alguma forma, se expressa na intensidade da cor do sinal, ou talvez seja só porque são mais vistosos e isso é atraente para as fêmeas?

Estas perguntas enunciam algumas das novas possíveis respostas que faziam sentido do ponto de vista da teoria evolutiva. Uma vez que se sabe que os carotenóides contribuem para reforçar o sistema imunitário na nossa e em outras espécies, preferimos testar a hipótese do macho saudável. Segundo esta, a coloração seria um sinal indicador da condição imunitária dos machos, e os mais saudáveis seriam preferidos pelas fêmeas.

Para realizar uma experiência que respondesse a estas perguntas, que foi parte central do doutoramento pela Universidade de Coimbra da minha aluna Sandra Trigo, tínhamos de ir mais longe. Precisávamos de manipular a coloração que os machos conseguiam produzir. Tal como todos os vertebrados, as milheirinhas não conseguem produzir carotenóides. Têm de os obter nas sementes que comem e depois podem ou não transformá-los e usá-los na coloração. Era, portanto, uma questão de manipular a sua dieta.

Fomos, de novo, para o campo capturar machos e fêmeas de milheirinha. Trouxemo-los para o laboratório e medimos a coloração dos machos e a sua condição imunitária. Sujeitámo-los depois a dois regimes de alimentação, seguindo um procedimento experimental comum: se queremos saber se algo é a causa de um fenómeno, procuramos manter tudo igual menos esse factor e ver se há diferenças causadas pela diferença de tratamento. Metade dos machos foi colocada num regime sem carotenóides e a outra metade recebeu doses suplementares de carotenóides. Depois esperámos que realizassem a muda das penas e voltámos a medir a sua coloração e sua condição imunitária.

No início da experiência, os dois grupos de machos não diferiam na cor nem na condição imunitária. Mas, no final da experiência, os machos com suplemento de carotenóides eram mais coloridos e tinham uma condição imunitária muito superior. Os machos com acesso aos carotenóides tinham conseguido produzir cores mais intensas e também estavam mais saudáveis do que os outros. Para uma prova definitiva, submetemo-los à escolha das fêmeas. E estas, como antes, preferiram os mais amarelos. Desta vez, tínhamos uma explicação para a escolha que as fêmeas fazem na natureza: escolhem os machos mais coloridos porque é um sinal de eles serem mais saudáveis.

A história completou-se. Ou talvez não, porque, entretanto, outras perguntas surgiram. Por exemplo, como é que a coloração pode ser um sinal indicador fiável da condição imunitária do animal? Será porque os carotenóides são escassos na natureza e há a necessidade de dosear o seu uso em diferentes funções? Poderá a transformação metabólica dos carotenóides ser um indicador da condição e capacidade de funcionamento celular do animal? A busca de respostas continua.

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As fêmeas de milheirinha preferem os machos mais amarelos porque:

As fêmeas de milheirinha preferem amarelo. Agora sabemos porquê

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