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sábado, 10 de agosto de 2024

 Nem nos deixam matar à fome
 Público - 9 Aug 2024
 Por António Rodrigues

Jornalista. Escreve à sexta-feira

Nestes tempos em que se ataca a liberdade de expressão por
delito de opinião e se reivindica a liberdade de expressão para
os discursos mais odiosos, divisíveis e difamatórios, já não
admira que um extremista como o ministro das Finanças de
Israel, Bezalel Smotrich, possa defender sem ser demitido,
que seria “justo e moral” obrigar dois milhões de
palestinianos a morrer à fome.
“Não é possível, na realidade global de hoje, gerir uma
guerra” em que se possa usar a fome como arma de guerra,
desabafou o ministro na segunda-feira: “Ninguém nos permite
matar à fome dois milhões de pessoas, mesmo que isso seja
justo e moral até eles devolverem os reféns.”
A frase não está deslocada nem fora de contexto na boca de
alguém que defende a ideia de que os palestinianos estão por
“engano” naquela terra que é dos judeus há séculos, só
porque o antigo primeiro-ministro Ben Gurion “não acabou o
seu trabalho”. O deslocado é que um perigoso extremista
religioso sirva no Governo de Israel.
A União Europeia lembrou a Smotrich, citada pela Euronews,
que “matar à fome deliberadamente é um crime de guerra” e
Josep Borrell, o ainda representante da política externa dos
27, classificou as declarações como estando “para lá da
ignomínia”, demonstrando que o ministro não respeita “os
mais básicos princípios humanitários”.

Ontem, depois da tempestade provocada, Smotrich recorreu à
fórmula habitual de dizer que os seus comentários tinham
sido retirados de contexto e “mal interpretados”, embora
voltasse a defender que a entrada de ajuda humanitária em
Gaza devia ser condicionada à entrega dos reféns pelo Hamas.
O ministro não entende o conceito de ajuda humanitária, nem
que a mesma não entra em conta quando se trata de condenar
um povo a morrer à fome por causa dos seus líderes.

Já não há indignação
A determinado momento na sua História, Israel perdeu-se.
Tomado pelas ideologias mais extremistas, afectado por uma
religiosidade messiânica que vê os judeus como povo escolhido
e os palestinianos como inimigo a abater ou a expulsar da
Terra Santa, assumiu que os fins justificam os meios e que
tudo lhes está permitido com o beneplácito dos seus aliados
ocidentais (sempre a medir palavras para não acabarem a ser
acusados de anti-semitismo).
O relatório publicado esta semana pela ONG israelita
B’Tselem sobre a forma como são tratados os palestinianos
nas prisões israelitas é um exemplo de como a situação amoral
se instituiu em Israel, se normalizou e é digna de indiferença
ou mesmo aplaudida. O título é elucidativo, Bem-Vindo ao
Inferno,e o subtítulo sintetiza: “O sistema prisional israelita
como rede de campos de tortura.”
Como escreve Gideon Levy, o relatório da B’Tselem “não é
apenas sobre o que está a acontecer nas prisões de Israel; é
um relatório sobre Israel”. Por isso, “qualquer pessoa que
queira saber o que é Israel deve ler este relatório antes de
qualquer outro documento sobre a democracia israelita”.
Israel vem usando ao longo dos anos o seu sistema prisional
como “ferramenta para oprimir e controlar a população
palestiniana”, porém, diz a B’Tselem, o que este relatório põe
a nu é que “mais de uma dúzia de instalações prisionais

israelitas, tanto militares como civis, foram convertidas numa
rede de campos dedicados ao abuso de reclusos”. São “campos
de tortura de facto”, onde “cada recluso é intencionalmente
condenado a sofrer dor e sofrimento incessantes”.
No entanto, sinal de como a sociedade israelita está
completamente anestesiada ao sofrimento palestiniano, e uma
parte substancial até festeja a prática da violação sistemática
dos seus direitos, a imprensa de Israel praticamente ignorou
um relatório que, como salienta Levy, noutros tempos teria
causado “indignação e choque em Israel”
Diplomacia de retaliação
Na visão redutora das relações internacionais do actual
Governo liderado por Benjamin Netanyahu, só há espaço
para amigos e inimigos. “Há um preço a pagar por
comportamento anti-israelita”, afirmou ontem o ministro dos
Negócios Estrangeiros israelita, Israel Katz, para justificar o
facto de Israel ter retirado o estatuto diplomata a oito
noruegueses que serviam nos territórios ocupados.
Para Israel, o facto de a Noruega ter reconhecido o Estado da
Palestina e apoiar a acção contra Israel por crimes de guerra
cometidos em Gaza no Tribunal Penal Internacional traz
consequências. A Noruega chamou-lhe uma “acção
extremista” que irá “afectar” a sua capacidade de “ajudar a
população palestiniana”, o que não será algo que tire o sono a
Katz, Netanyahu e aos outros membros do executivo israelita.
O chefe da diplomacia norueguesa, Espen Barth Eide,
também avisou, em comunicado, que haverá “consequências”
para a decisão tomada por Israel, prevendo-se uma reacção
da mesma dimensão a tomar pelo Governo norueguês.
“Estamos a considerar as medidas que a Noruega tomará
para responder à situação que o Governo de Benjamin
Netanyahu agora criou”, diz o comunicado, citado pelo
Jerusalem Post.

Eide aproveitou para lembrar ao seu homólogo que “a
Noruega será sempre amiga de Israel e do povo israelita”, ao
mesmo tempo que “tem sido clara nas suas críticas à
ocupação, à forma como a guerra em Gaza tem sido
conduzida e ao sofrimento que tem causado à população civil
palestiniana”. Numa entrevista em Maio ao The Times of
Israel, o ministro garantia que a solução dos dois Estados era
“realmente uma medida anti-Hamas”, porque o movimento
palestiniano a rejeita e por ser o mais correcto a fazer para
conseguir a paz para Israel.
O Hamas serve para justificar tudo
Os crimes de guerra que Israel tem cometido na Faixa de
Gaza para se vingar dos ataques do Hamas de 7 de Outubro
são sempre justificados com a necessidade de destruir as
infra-estruturas do grupo palestiniano, matar os seus
comandantes, destruir as suas fileiras e erradicar os radicais
palestinianos da face da terra.
Com a premissa de acabar com o Hamas, Israel não vê
nenhum mal em bombardear áreas residenciais densamente
povoadas, hospitais, escolas, atacar ambulâncias, civis
desarmados, jornalistas — homens, mulheres e crianças,
mortos, feridos, sem abrigo nem comida.
Israel justificou a morte do último dos 113 jornalistas
assassinados, o repórter da Al-Jazeera Ismail al-Ghoul, morto
a 31 de Julho junto com o seu operador de câmara, Ramil al
Rifi, quando o carro onde seguiam foi bombardeado
deliberadamente pela aviação israelita, com o facto de
pertencer ao Hamas. A Al-Jazeera Media Network nega
rotundamente a acusação e pede uma investigação
internacional independente “aos crimes brutais e atrozes
cometidos pelas forças de ocupação israelitas contra os seus
jornalistas e funcionários desde o princípio da guerra em
Gaza”.

Como sempre, Israel não apresentou nenhuma prova da
relação de Al-Ghoul com o Hamas, e a Al-Jazeera lembra que
a 18 de Março o jornalista foi detido pelas forças israelitas,
quando estas invadiram o Hospital Al-Shifa de Gaza,
acabando por ser libertado. Se era um membro tão
importante da ala militar do Hamas para que o seu automóvel
fosse directamente atacado pela aviação israelita, porque o
libertaram?
A verdade é que, nesta guerra brutal e sem misericórdia, os
militares israelitas puseram de lado todas as regras da
Convenção de Genebra e assumiram que toda a população da
Faixa de Gaza apoia o Hamas e, como tal, não são civis, mas
alvos legítimos de uma guerra sem quartel que deixou um
rasto de mais de 40 mil mortos em dez meses.

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