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domingo, 11 de agosto de 2024

 O Inferno


A barbárie está legitimada, observamos os crimes em direto,
não nos revoltamos, os governantes e a sociedade civil
preocupam-se com a Venezuela e continuam a cooperar com
os sionistas. É a vida, diria Guterres.
E rasgar o recto com um pau, é legítimo?

Público - 10 Aug 2024 AMIR COHEN/REUTERS

Alexandra Lucas Coelho, jornalista


1. Será de graça e basta um telefone. Não devia ser para menores, mas
muitos dos torturados são menores. Não devia ser para ninguém, mas
continua a acontecer agora. Então, é para quem está vivo agora.
Começo com aquele já histórico diálogo no Knesset, parlamento de
Israel, a 29 de Julho:
“E inserir um pau no recto de alguém, é legítimo?”, pergunta o
deputado exaltado, interrompendo outro.

“Cale a boca!”, diz o interrompido. “Sim! Se for um Nukhba, é
legítimo fazer-lhe tudo! Tudo!”
O vídeo está online, com legendas em inglês, fácil de achar.
Os Nukhba são comandos do Hamas. Depois de 7 de Outubro, Israel
prendeu milhares de palestinianos sem culpa formada. Cerca de 1400
foram levados para Sde Teiman, base no deserto do Negev, a cerca de
30 quilómetros de Gaza. Desde então “centro de detenção”, comparado
a Guantánamo por quem de lá saía. Em Maio-Junho, relatos de
tortura chegaram à CNN e ao The New York Times. Sob pressão,
Israel retirou centenas de detidos, não todos. No fim de Julho, a polícia
israelita foi lá buscar nove soldados reservistas, suspeitos de violarem
um palestiniano que estava no hospital de costelas partidas, recto
rasgado e intestinos rompidos, devido a penetrações com um objecto,
diz o relatório médico. Ben-Gvir, o supremacista de extrema-direita
que é ministro da Segurança Nacional, incendiou as redes dizendo
“tirem as mãos dos nossos heróis”. Smotrich, ministro das Finanças,
idem. Uma turba de israelitas disparou para Sde Teiman, trepando
vedações, empurrando guardas. Talvez a primeira invasão do mundo
pelo direito inalienável a violar.
Eram colonos, mas também mascarados armados, paisanos e paisanas,
deputados, um ministro de Netanyahu. Ele mesmo, Bibi, fez depois
uma declaração a condenar a desordem. Entretanto, os ministros à sua
direita puxavam por ela. De Sde Teiman, a multidão rumou à base
para onde tinham sido levados os reservistas. Nova invasão pelo direito
à barbárie no Estado de direito.
O mesmo direito que, por sua vez, o deputado Milwidsky (do Likud de
Netanyahu) defendia inflamado no parlamento, enquanto uns faziam
scroll no telefone, outros se esparramavam na cadeira. O Knesset no
seu normal, só interrompido pelo deputado Ahmad Tibi (palestiniano-
israelita do partido Ta’al). Foi dele a pergunta sobre o pau no recto &
a lei. Além de deputado, é ginecologista. Tem noção médica do que
estava a ser dito. No parlamento de uma, hã, democracia.
2. Quatro reservistas foram libertados pouco depois. Dos cinco que
continuam detidos, dois são suspeitos do mais grave. Passaram pelo
polígrafo, deu que mentiam ao negar a violação.
Terça-feira passada, o Canal 12 da TV israelita revelou um curto vídeo
de Sde Teiman com o relato sobre a violação. Nas imagens, das
câmaras de segurança, há dezenas de palestinianos deitados no chão,

de mãos atadas. Um grupo de soldados levanta o último da fila, leva-o
para um canto. Alguns soldados tapam com escudos. Vê-se que dois
estão a fazer algo sobre a zona lombar do prisioneiro, depois
hospitalizado. Que não era comando do Hamas nenhum, revelou o
Canal 12. Só um polícia de Gaza que nada teve a ver com o 7 de
Outubro.
A Associação Para os Direitos Civis em Israel levara já uma petição ao
Supremo Tribunal de Justiça para fechar Sde Teiman. Na quarta-feira,
o Supremo tentou discuti-la e uma nova turba perturbou a sessão com
protestos. Ben-Gvir protestou nas redes.
E havia dois dias já que a B’Tselem (a mais famosa organização de
direitos humanos em Israel) publicara um relatório de 118 páginas,
com vídeos, intitulado: “Bem-vindos ao inferno — o sistema prisional
israelita como uma rede de campos de tortura.”
3. A gente lê, vê e diz palavrões para não chorar. Já vimos o que vimos
em Gaza. E aqui estão estes homens, estas mulheres, estes adolescentes
com ar de menino, a dar cara e nome completo em tantos casos: 55
testemunhos.
Como? Onde foram buscar mais coragem, depois de lhes partirem os
ossos, largarem mastins às dentadas, apagarem cigarros na boca,
meterem paus (e ferros quentes, e aparelhos eléctricos) no recto,
prenderem os testículos a um peso, darem choques, cuspirem na cara,
sufocarem com gás de pimenta, atirarem granadas de atordoamento,
pisarem feridas, privarem de sono por semanas, de sol por 191 dias,
com sanitas sem água 23 horas por dia, um penso higiénico para uma
menstruação inteira, obrigados a ficarem nus, muitos de fralda, aos 15
e 20 em celas imundas, a dormirem no chão, com sarna, com bichos,
com feridas, a mesma roupa meses, sem sabão, dois pratos para a cela
inteira, só arroz cru em água quente, comida podre, fora de prazo,
espancamentos com bastões, semanas de joelhos, mãos amarradas e
olhos vendados, membros amputados de tão apertados. Obrigados a
beijar a bandeira de Israel, dizer O Povo de Israel Vive, enquanto
morrem. E constantemente filmados. “Em live streaming para Ben-
Gvir!”, disse um dos soldados, numa das orgias diárias.
Como não pensar de novo na Saló fascista que Pasolini encenou? Só
que esta Sodoma vai em mais de 300 dias e é a vida, é a morte. É live
streaming & death streaming para Ben-Gvir.

Porque ele é o joker de IsraHell, mas o baralho não acaba. É o governo
e é o Estado. Os tribunais. A polícia. O exército. Não só soldados
homens. Soldadas que sodomizam detidos e chamam “putas” a
palestinianas forçadas a deixar os filhos. Algumas a amamentar. Qual
democracia? A que há mais de 300 dias mata os jornalistas de Gaza,
não deixa entrar os outros e bane a Al Jazeera? Ou aquela que tortura
milhares, depois de ter prendido já centenas de milhares ao longo de
décadas, o que faz com que não haja qualquer família palestiniana que
não tenha tido alguém numa prisão de Israel?
Seriam precisas páginas de jornal para o que se lê-vê neste relatório. O
toco da coxa de Sufian, 42 anos, taxista de Gaza, pai de quatro filhos,
amputado depois de espancamentos. Os dedos partidos das mãos de
Muhammad, 18 anos, da Cisjordânia Ocupada. Os 20 quilos perdidos
de outro Muhammad, 16 anos, de Jerusalém Oriental Ocupada.
Imaginem o vosso filho, irmão, sobrinho, primo, neto a perder 20
quilos aos 16 anos em pouquíssimo tempo.
E a ouvir os gritos dos que eram mortos. Porque, diz o relatório, pelo
menos 60 palestinianos morreram detidos, de tortura ou negligência,
desde 7 de Outubro, muitíssimo mais do que em anos de Guantánamo.
Detidos, às vezes, por causa de um post de Facebook.
4. Este relatório é uma carta terrível de Israel sobre Israel. Tão terrível
que já não pede nem espera resposta de Israel. Pede e espera resposta
do mundo: que ponha fim a isto. “Israel está a cometer tortura que
constitui crime de guerra e até crime contra a Humanidade. Apelamos
a todas as nações, instituições e órgãos, incluindo o Tribunal Penal
Internacional, para que façam todo o possível para pôr um fim às
crueldades que os palestinianos sofrem no sistema prisional israelita, e
para reconhecer o regime israelita que opera esse sistema como um
regime de apartheid que tem de acabar.”
O “ataque horrífico” do Hamas a 7 de Outubro, diz a B’Tselem, deu
“ao governo e ao ministro Ben-Gvir a oportunidade de manipular a
vontade de vingança, de a usar”, pondo em prática “a sua ideologia
racista, através de mecanismos opressivos”. E a Procuradoria e o
Supremo de Israel “curvaram as suas cabeças em submissão à agenda
de Ben-Gvir, permitindo abusos e a total desumanização destes
prisioneiros”.
No momento em que este relatório — apelo — carta — chega ao
mundo, mais de 9000 palestinianos continuam “prisioneiros de
segurança” numa “rede de campos de tortura”, diz a B’Tselem.

Centenas são menores, como alerta há muito o Comité dos Prisioneiros
Palestinianos.
Nunca o horror humano foi tão documentado em tempo real. Isto é
sobre nós. E cada dia em que a Europa não faz nada, mais se afunda —
António Costa: também é consigo. Com o Governo português. Quem
trabalha sobre lei, tortura, direitos humanos. E como é que algum herdeiro da Shoah pode não ver estas pessoas agora?

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