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sábado, 17 de agosto de 2024

A ARTE e a barbárie. Esta financia aquela

 Bienal de Veneza: acertam-se contas no mundo da arte

 
Cheira a cacau no Pavilhão dos Países Baixos. O aroma vem das esculturas criadas pelos agricultores-artistas do CATPC – Cercle d'Art des Travailleurs de Plantation Congolaise (Círculo de Arte dos Trabalhadores Congoleses das Plantações), colectivo nascido e sediado em Lusanga, na República Democrática do Congo.
Bienal de Veneza: acertam-se contas no mundo da arte
Das paredes brancas escorre um líquido cuja coloração se assemelha ao óleo de palma, outro dos produtos das plantações de Lusanga usados nas esculturas, a par do cacau, do açúcar e da argila. Escorre como sangue. Para os habitantes desta aldeia congolesa, o óleo de palma e o cacau são, antes de mais, sinónimo de trabalho escravo, mortes, violações, pobreza crónica, expropr
Bienal de Veneza: acertam-se contas no mundo da arte
O fio condutor da exposição The International Celebration of Blasphemy and The Sacred (A Celebração Internacional da Blasfémia e do Sagrado) é uma violenta história de agro-colonialismo iniciada em 1911 – quando o governo da Bélgica concedeu ao industrial britânico Lord Leverhulme vastas concessões em terras, situadas em áreas florestais do Congo repletas de palmeirais de óleo que correspondiam ao dobro do tamanho da Bélgica –; engrandecida em 1929 – quando a empresa de Leverhulme deu origem à Unilever, gigante multinacional anglo-holandesa do sector alimentar que edificou o seu império graças a plantações industriais de palma e respectivo trabalho escravo –; e prosseguida até hoje pela mão de empresas descendentes da Unilever, nomeadamente a multinacional Feronia Inc..
.Bienal de Veneza: acertam-se contas no mundo da arte
Concebido em colaboração com o artista holandês Renzo Martens e o curador Hicham Khalidi, o projecto do pavilhão holandês na 60.ª Bienal de Arte de Veneza, a decorrer até 24 de Novembro, é mais um passo no acerto de contas com o mundo da arte que o CATPC tem posto em marcha desde o seu nascimento, em 2014, apoiado pelo instituto Human Activities de Renzo Martens.
Bienal de Veneza: acertam-se contas no mundo da arte
O colectivo congolês vira as regras do jogo: aproveitando o interesse crescente do circuito expositivo e do mercado da arte em narrativas não-ocidentais e em expiar a culpa branca herdeira do colonialismo, os trabalhadores das plantações vendem a sua arte para comprar de volta a terra que lhes foi retirada pela Unilever e empresas subsidiárias. Até agora conseguiram reaver 200 hectares, onde desenvolvem um sistema autónomo de “economia sustentável e de regeneração da floresta sagrada” a que chamam de “pós-plantação”.

Bienal de Veneza: acertam-se contas no mundo da arte
“Colocando a nossa arte ao serviço da nossa comunidade, podemos libertar a nossa terra, restabelecer a ligação com os nossos antepassados e possibilitar uma coexistência pacífica entre humanos e natureza”, diz Ced’art Tamasala, porta-voz do CATPC, ao Ípsilon. “A nossa arte está verdadeiramente ancorada nas nossas vidas.”

Bienal de Veneza: acertam-se contas no mundo da arte
Este contra-ataque revela-se ainda mais acutilante face ao facto de vários museus e galerias europeus terem sido em parte financiados – e continuarem a ser – com os lucros das plantações, gerados à custa da “exploração sem fim” de trabalhadores agrícolas, lembrou Renzo Martens na cerimónia de abertura do Pavilhão dos Países Baixos, em Abril. “Actualmente, no Congo, há trabalhadores que ganham nove dólares por mês [oito euros]. Isto não é uma coisa do passado.”

Bienal de Veneza: acertam-se contas no mundo da arte
“A Tate Modern, em Londres, foi fundada com os lucros do comércio da cana-de-açúcar do Brasil [entre 2000-2012 a instituição teve um projecto anual de comissões a artistas patrocinado pela Unilever, o Unilever Series]; a Lady Lever Gallery, em Liverpool, com a venda de óleo de palma do Congo utilizado na produção de sabão; o Museu Ludwig, em Colónia, beneficiou das receitas da produção de chocolate, também derivado do óleo de palma, e o Museu Stedelijk, em Amesterdão, das plantações na Indonésia – e a lista continua”, referem os elementos do CATPC. “Somos nós que tornamos o museu possível.”

Bienal de Veneza: acertam-se contas no mundo da arte
Como lembra a cientista política Françoise Vergès no seu mais recente livro, Decolonizar o Museu – Programa de Desordem Absoluta (ed. Orfeu Negro, 2024), “o conforto da vida cultural e artística é possível porque homens e mulheres são explorados/as”. Numa obra tutelar para deslindar assuntos que estão hoje no centro do debate do ecossistema artístico – a descolonização das instituições e a restituição de bens culturais, ambos directamente abordados pelo CATPC na exposição –, a investigadora francesa frisa que “produtos da escravatura” como o açúcar, o café, o cacau ou o tabaco contribuíram não só para a construção dos museus ocidentais, que “ecoam as desigualdades estruturais globais criadas pelo colonialismo e pelo imperialismo”, mas também “para um maior bem-estar de toda a sociedade” e “hábitos” transversais a diferentes classes sociais.

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