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sábado, 8 de março de 2025

Alfred Sohn-Rethel- fetichismo, mercadoria, valor abstrato, pensamento abstrato, capitalismo.

 

No funeral de Theodor W. Adorno: Alfred Sohn-Rethel e a Teoria Crítica

Bruna Della Torre conta a história por trás de "Trabalho intelectual e manual: para a epistemologia da história ocidental". A obra-prima de Alfred Sohn-Rethel chega em dezembro aos assinantes do Armas da Crítica, o clube do livro da Boitempo.

Exemplar de Filosofia da nova música dedicado pelo autor ao “Meu querido Alfred, amigo de longa data” em julho de 1958
Foto: Wikimedia Commons

Por Bruna Della Torre

Trabalho intelectual e manual: para a epistemologia da história ocidental nasceu, como escreve Sohn-Rethel no prefácio da obra, de um insight que o autor teve em 1921 quando realizava seus estudos em Heidelberg: “a descoberta do sujeito transcendental na forma mercadoria, um dos princípios do materialismo histórico”. Heidelberg, que abrigava nesse período intelectuais como Max e seu irmão Alfred Weber, Heinrich Rickert, entre outros, era, então, o berço do neokantismo, cujo objeto privilegiado é a teoria do conhecimento. Sohn-Rethel repensaria a teoria do conhecimento de maneira marxista, demonstrando como o pensamento abstrato deriva da forma mercadoria, e como o desenvolvimento do dinheiro e da ciência correm em paralelo. O livro, que nasce nesse encontro inusitado entre Kant e Marx (mediado por Hegel), foi recusado pela editora Lawrence & Wishart em 1951, sendo publicado apenas a partir do encontro de Sohn-Rethel com Siegfried Unseld, editor da Suhrkamp, no funeral de Theodor W. Adorno em 1969. Que o livro de Sohn-Rethel tenha vindo a público após a morte de Adorno é um dado histórico aparentemente sem relevância, mas que se torna pleno de significado quando o assunto é relação de Sohn-Rethel com a Escola de Frankfurt.

Sohn-Rethel conheceu Adorno e Walter Benjamin na década de 1920, via Ernst Bloch. Os quatro, mais Sigfried Kracauer, encontraram-se em Capri em 1925. O primeiro contato com Sohn-Rethel não impressionou Adorno. Numa carta enviada a Kracauer em 1926, ele diz que, em Sohn-Rethel, “todos os conteúdos do marxismo são Heidelberguianamente equivocados, aprofundados de forma diletante”. E acrescenta: “A rejeição banal de qualquer comunista atingiria Sohn com mais razão ainda do que Lukács, de quem ele é a revelação pastoral-gentia. Não, este trabalho não presta.”

Apesar disso, são conhecidos os esforços de Adorno na década seguinte para incorporar Benjamin, Bloch e Sohn-Rethel aos trabalhos do Instituto de Pesquisa Social (ao menos como colaboradores) – talvez como um contraponto dialético ao modelo de crítica da ideologia praticado por Leo Löwenthal e Herbert Marcuse, ao qual Adorno era crítico. Quando leu, em 1936, o “Exposé de Lucerna”, Adorno escreveu a Sohn-Rethel dizendo que esta havia sido a maior perturbação espiritual que sentira em filosofia desde o primeiro encontro com o trabalho de Benjamin, em 1923. Adorno alinha ao seu o trabalho de Sohn-Rethel de explosão do idealismo por dentro – não pela práxis (como em Marx) – mas por meio de sua própria antinomia. E diz ainda que fará “tudo que está ao meu alcance para que você colabore com o Instituto”. Com uma bolsa do Institudo de Pesquisa Social, Sohn-Rethel prepara, então, o exposé “Liquidação crítica do apriorismo”, com esperanças de estreitar laços com o Instituto. Max Horkheimer, no entanto, não se entusiasma com seu texto que, segundo ele, é excessivamente especulativo e acadêmico. Em dezembro do mesmo ano, ele escreve a Adorno dizendo que ele e Marcuse não viam nenhuma novidade no trabalho, cheio de declarações grandiosas e pretensiosas, e a proposta de texto de Sohn-Rethel ficou sem resposta. Na década de 1960, Adorno e Sohn-Rethel ainda se corresponderam a respeito de Dialética Negativa, enviado a Sohn-Rethel com uma dedicatória. Sohn-Rethel aparece citado no livro de Adorno como “o primeiro a ver o trabalho social escondido nas atividades do espírito”. Sohn-Rethel, por sua vez, responde a Adorno criticando-o por sua resignação diante das tentativas de transformação do mundo, especialmente por sua desconsideração da Revolução Chinesa.

A rejeição de Horkheimer, depois assentida por Adorno, transformou Sohn-Rethel numa figura marginal na história do Instituto, e sua influência sobre esses autores é até hoje considerada questionável pela fortuna crítica. Essa é mais uma das várias histórias que atestam o péssimo clima de trabalho e competitividade da primeira geração da Escola de Frankfurt, o que nos impele a refletir também sobre como a teoria crítica (e esse clima foi replicado em vários dos lugares onde ela se estabeleceu) deve repensar suas práticas institucionais para sobreviver.

Sohn-Rethel passou três décadas e meia na Inglaterra, onde escreveu outra obra fundamental, até hoje pouco conhecida: A economia e a estrutura de classes do fascismo alemão (1973), na qual descreve as dimensões econômicas do fascismo. O livro é baseado em sua experiência trabalhando no Mitteleuropäische Wirtschaftstag (MWT), uma associação dos principais conglomerados, bancos e associações econômicas da Alemanha que funcionou de 1931 a 1944 com o objetivo de ampliar a dominação econômica do país na Europa. Ele só retornou para a Alemanha na década de 1970. Redescoberto pela geração de 1968, Sohn-Rethel encontrou boa recepção entre os alunos de Adorno: Oscar Negt, Detlev Claussen e Hans Jürgen-Krahl. A morte de Adorno abriu portas para a sua recepção e seu trabalho é hoje reconhecido como um dos precursores da chamada “Nova Leitura de Marx”.

A história de Alfred Sohn-Rethel desafia a linearidade com que frequentemente narramos a trajetória de ideias na filosofia e na teoria crítica. Sua marginalização inicial e subsequente redescoberta sugerem que a relevância de um pensamento não depende apenas de sua acomodação institucional imediata, mas também de sua capacidade de ressoar em determinados momentos históricos e políticos. Mais do que uma anedota sobre a Escola de Frankfurt, seu caso revela não só a complexa relação entre teoria crítica e institucionalização do marxismo, mas a potência de certas teorias críticas – como é o caso da de Benjamin – de sobreviver aos gatekeepers da academia oficial. Trabalho intelectual e manual: para a epistemologia da história ocidental chega à leitora brasileira em plena crise do capitalismo global e num momento de ascensão do neofascismo. Embora profundamente teórico, o livro fala ao presente na medida em que consiste numa das maiores críticas imanentes da razão ocidental na melhor tradição do marxismo como teoria crítica.


Caro Alfred,

creio não exagerar se lhe digo que sua carta significou o maior abalo intelectual que experimentei desde que me deparei pela primeira vez com o trabalho de Benjamin – e isso foi em 1923! Esse abalo registra a grandeza e a força de sua concepção – mas ele registra também a profundidade de uma coincidência que vai incomparavelmente mais longe do que o senhor podia imaginar e do que eu mesmo imaginava. (…) Depois disso, nem preciso dizer o quanto anseio pelo nosso encontro. Leibniz deve ter se sentido assim quando ouviu falar da descoberta de Newton, e vice-versa. Não me tome por louco. (…) Mas eu gostaria de dizer algo que mais tarde vai soar ridículo – que irei fazer junto ao Instituto tudo o que for capaz pelo seu trabalho! (…)

Do seu amigo,
Teddie.1

Nota

  1. A tradução da carta é de Luiz Philipe de Caux, no artigo “CONCEITO, VALOR, IMANÊNCIA: SOHN-RETHEL E A FORMAÇÃO DA IDEIA DE CRÍTICA IMANENTE EM ADORNO”, modificada. Editoria do blog da Boitempo. ↩︎

Qual a relação entre dinheiro e conhecimento? Nesta genealogia da separação entre trabalho intelectual e manual, Alfred Sohn-Rethel revela as afinidades estruturais e estruturantes entre as abstrações conceituais do pensamento ocidental e a forma mercadoria. Um dos principais textos da teoria marxista do pós-guerra, Trabalho intelectual e manual exerceu influência decisiva sobre os principais autores da chamada Escola de Frankfurt, como Theodor Adorno e Walter Benjamin.

Sohn-Rethel desenvolve a tese ousada de que a análise marxiana da mercadoria é chave não só da crítica da economia política, mas também da origem histórica do próprio pensamento conceitual ocidental e da divisão entre “cabeça e mão” que dele decorre: “a separação entre trabalho intelectual e manual é tão imprescindível para a dominação da classe burguesa quanto a propriedade privada dos meios de produção.” Ao cunhar o conceito de “abstração real” e reposicionar as discussões sobre ciência, técnica e epistemologia no campo marxista, a obra de Sohn-Rethel apresenta fertilidade duradoura para a filosofia crítica contemporânea, inspirando autores como Slavoj Žižek, Anselm Jappe, Antonio Negri e Giorgio Agamben, entre outros.

“Alfred Sohn-Rethel foi o primeiro a chamar a atenção para o fato de que na atividade universal e necessária do espírito, se esconde incondicionadamente trabalho social.”
Theodor W. Adorno

Fruto de mais de cinquenta anos de elaboração e reelaboração, Trabalho intelectual e manual chega pela primeira vez às livrarias brasileiras com tradução direta do alemão feita por a partir da edição mais recente da obra, consolidada após detalhada revisão do autor. Com prefácio de Olgária Matos e orelha de Vladimir Safatle, a edição da Boitempo vem incrementada de preciosos anexos que documentam a rica interlocução de Sohn-Rethel com Adorno e Benjamin.

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***
Bruna Della Torre é coordenadora científica e pesquisadora no Centro Käte Hamburger de Estudos Apocalípticos e Pós-apocalípticos da Universidade de Heidelberg, onde também edita a revista Apocalyptica. Integra o comitê editorial da revista Crítica Marxista e o conselho científico de Constelaciones: Revista de Teoría Crítica (Madrid). Em 2023, foi Horkheimer Fellow no Instituto de Pesquisa Social em Frankfurt (Otto Brenner Stiftung). Realizou pós-doutorado no Departamento de Teoria Literária e Literatura Comparada da USP sob a supervisão de Jorge de Almeida (2018-2021), com estágio de pesquisa na Universidade Humboldt (anfitriã: Rahel Jaeggi) e no Departamento de Sociologia da Unicamp sob supervisão de Marcelo Ridenti (Fapesp). Doutora em Sociologia (bolsista Capes), mestra em Antropologia Social sob a orientação de Lilia Katri Moritz Schwarcz (bolsista Fapesp) e bacharel em Ciências Sociais pela Universidade de São Paulo. Durante o doutorado, realizou estágio de pesquisa na Universidade Goethe, em Frankfurt e no Departamento de Literatura da Universidade de Duke (anfitrião: Fredric Jameson), com bolsa da Capes. Tem experiência de pesquisa em e organização de arquivos. Com bolsa do DAAD, conduziu pesquisa no Arquivo Walter Benjamin/Theodor W. Adorno da Akademie der Künste, em Berlim, em 2014 e em 2019 e no arquivo de Oswald de Andrade (CEDAE/Unicamp) em 2011 com bolsa Fapesp. Em 2024, fez parte do projeto da International Herbert Marcuse Society de organização dos arquivos de Douglas Kellner, abrigado pela Universidade de Columbia. Foi, entre 2017 e 2018 e em 2021, professora visitante na UNB. É autora do livro Vanguarda do atraso ou atraso da vanguarda? Oswald de Andrade e os teimosos destinos do Brasil. É membra da coletiva “marxismo feminista“.


1 comentário em No funeral de Theodor W. Adorno: Alfred Sohn-Rethel e a Teoria Crítica

  1. Fernando Pedrão // 28/11/2024 às 3:43 am // Responder

    Esse trabalho é oportuno, mas incorre em perda do sentido de totalidade progressiva essencial em Hegel, que Adorno enfrentou em sua Dialética Negativa.Precisamos interpretar e não só relatar

    Curtir

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