Crítica da Razão Consensual
Materialismos e idealismos
Intróito
Instalou-se, de algum modo, uma forma de consenso entre intelectuais, sobretudo dos meios escolares e universitários, contra Marx. Marx estaria, segundo eles, definitivamente morto. Variantes: doutrina política sem interesse filosófico ou científico, que não oferece já um método competente para o exame das sociedades contemporâneas (isto é claramente notório na bibliografia sociológica); enfim, o que resiste e subsiste, segundo os comentadores mediáticos, é uma mera ideologia política partidária condenada (condenável). A “globalização” e a “pós-modernidade” já não comportam um pensamento do século XIX… que se revelou um fracasso na sua aplicação. Evidentemente que não há regra sem excepção: não falando já, por desnecessário, dos excelentes ensaístas marxistas que em todas as línguas devemos conhecer e enfatizar, há os que não sendo marxistas admitem a importância de “O Capital” e a actualidade “profética” de muito do que em Marx se lê. As universidades são corporações, sobre elas sabemos o bastante através de Bourdieu; pior do que isso, talvez, são as escolas do ensino médio – e público! - onde Marx é já um completo desconhecido.
Tentemos responder a esta espécie de comunidade ou consenso que se instalou contra Marx, sem a pretensão de pregar uma «verdade absoluta» contra os «ímpios» que só não a vêem porque andam cegos. E com algum humor, pois que não poucos dos que têm vindo a rejeitar Marx, formaram-se nas ideias dele, defenderam e ensinaram-no, pelejaram contra os adversários dele, foram dirigentes políticos de relevo, deputados, filósofos, historiadores, sociólogos, provocaram intensos debates que seguimos apaixonadamente na nossa juventude e, ao contrário de Marx, são actualmente autores estudados nas universidades (contra ou sem Marx). Porém, quantos deles, na verdade, nunca mais produziram nada de notável depois do abandono? Seria fácil elencá-los…Abateu-se sobre as escolas e universidades uma decisão consensual: excluir Marx dos programas. Passou definitivamente a época em que Marx e o marxismo eram decisivamente influentes? Que factores extra-filosóficos influíram?
Procuremos então demonstrar que este consenso negativo não descobre em Marx quase nada que contribua para a interpretação do mundo contemporâneo, precisamente porque não pretendem transformá-lo (ou não acreditam). A vontade de mudança radical é que morreu (neles). Contudo, de modo nenhum se pretende censurar-lhes o direito de pensar como pensam. Intolerável é a censura que se exerceu sobre Marx, nomeadamente nas Academias. Mais: há quem nesta Europa neo-liberal tente criminalizar os partidos comunistas e, portanto, os mestres fundadores. A coisa é grave. A luta ideológica passa por aqui e os intelectuais não podem assobiar para o lado.
Uma outra filosofia
A filosofia de Marx é realmente tão diferente da filosofia clássica que não parece, para alguns, filosofia, mas «Economia Política». Uma filosofia que mudou o mundo remetida para a economia…Pois, não é Política?
O autor de «O Capital» criou um drama em dois actos: encerrou o longo ciclo da filosofia ideológica – idealista - e retomou a filosofia. Marx foi, desde os tempos de universitário, um filósofo genial, pelo que lemos ainda hoje e pelo que dele escreveu quem o conheceu então. A última obra, obra de vinte anos de trabalho, O Capital, sendo, como é, científica, é também de filosofia. Filosofia da Política. O que surpreende é a atitude de filósofos contemporâneos que praticam novas e diferentes formas de filosofar e não admitem que a ciência de Marx possa estar em paralelo com a filosofia dele. Sim, é certo que Marx não praticou a filosofia clássica alemã, nem o materialismo francês. Sim, é verdade que Marx viu nas filosofias sucessivas tentativas de interpretação do mundo sem efeitos práticos, despiu-as do halo de autoridade e superioridade, retirou-lhes a autonomia que lhes permitia legitimar a independência das ideias e, por isso, o papel destas – central e motriz na vida dos homens; ou seja, os filósofos, ficaram, assim, convertidos naquilo que eram: ideólogos. Não possuíam nem autoridade nem eficácia para transformarem o mundo conforme os proclamados «superiores interesses da razão», precisamente porque exprimiam - conscientemente ou não - interesses particulares. Por outro lado, as ideias (as interpretações do mundo) não possuíam poder bastante se não fossem materializadas numa força social que representasse os interesses do todo. Essa força era o proletariado, principal vítima do capitalismo, fonte do lucro do capital e, por consequência, a classe social mais histórica e socialmente destinada a derrubá-lo. Num segundo acto Marx cria as bases para uma nova filosofia que não fosse mais uma «interpretação», mas a expressão do movimento social que, na vida real, defrontava a burguesia; uma teoria, é verdade, porém uma teoria com efeitos práticos baseada na realidade, que explicasse a exploração e a dominação em todos os níveis articulados (económica, política, ideológica) e unisse todos os movimentos protestativos – de composição operária – à volta de um programa comum efectivamente revolucionário, isto é, dirigido à conquista do poder e à edificação de uma sociedade não-capitalista. O meio para tanto só poderia ser o Estado, instrumento decisivo para construir a sociedade comunista por via de um socialismo revolucionário, mas um Estado completamente diferente que se desdobrasse, sem perder a face, em múltiplos poderes autonómicos, associativos e cooperativos, onde a participação dos trabalhadores fosse a chave principal do seu sucesso. O génio de Marx revela-se no contínuo processo de corrigir as suas próprias posições, na capacidade de extrair das ideias que circulavam no seu tempo, depois de proceder à limpeza da canga ideológica, os seus conteúdos racionais; mas, sobretudo, de saber deduzir das experiências os ensinamentos que mais fortaleciam a unidade dos movimentos revolucionários. Durante a sua vida não assistiu a nenhum êxito duradouro das revoluções, da orientação dos partidos operários, apesar disso em vez de desistir ou enveredar por qualquer das muitas profecias demagógicas e populistas, ocupou-se tenazmente em descobrir as tendências objectivas da formação social capitalista. A questão de encontrar-se uma data ou conceito que marcasse a ruptura do «velho» Marx com o «jovem» Marx está ultrapassada nos seus propósitos de debates conjunturais: o seu pensamento sofreu oscilações que os sucessos e insucessos práticos impuseram, criou novas perspectivas através das quais os conceitos (alienação-reificação, meios e relações de produção, contradição principal e contradições secundárias) encontrassem o seu lugar e a sua eficácia; de facto alguns conceitos nucleares permaneceram, ainda que corrigidos, servidos por um método de investigação cada vez mais científico. Nesses conceitos (cuja denominação inicial, é certo, nem sempre fora ele a inventar) figuram necessariamente os conceitos de ideologia, alienação, relações sociais, dialéctica, modo de produção, mais-valia e exploração, revolução, socialismo e comunismo. Todos se articulam entre si numa unidade coerente que constitui uma teoria integral, mas nunca uma teoria fechada, dogmática, em suma, um sistema.
Alguns destes conceitos já os abordámos em ensaios anteriores. Se aqui a eles voltamos será com brevidade, por exemplo os conceitos de ideologia e alienação que, em Marx, sempre descreviam fenómenos negativos: o primeiro conceito abarca as filosofias idealistas (ideologias no sentido negativo), e o segundo explica a situação sócio-psicológica dos operários (o trabalho é sempre alienado no capitalismo). Certamente que Marx classificou de ideologia uma determinada filosofia –a filosofia idealista alemã exemplificada pela «Sagrada Família», título da obra escrita e publicada - mas os argumentos que utilizou ainda hoje são actuais. Por sua vez, o fenómeno da alienação – ou estranheza – ainda hoje descreve bem a relação dos produtores com os produtos que fabricam, mas também a relação do produtor e consumidor com as mercadorias.
O que se diz é inseparável do contexto histórico biográfico. Por exemplo, enquanto conceitos como os que acima referimos podem e devem constituir ainda hoje (e não sei se mais do que ontem) debates de grande actualidade, já discutir se Marx foi um «humanista teórico» ou não, é de somenos importância. Vivemos um tempo particular onde os «humanismos» são os elementos tóxicos da propaganda política imperialista, porque ocultam o carácter rapace e desumano do capitalismo. Porque não contrapor-lhe o humanismo integral que a teoria de Marx contém e o socialismo promete (não é disto que se trata quando se questiona «Socialismo ou Barbárie»?). Se as ideologias filosóficas “pós-modernistas” desprezam as «narrativas humanistas», ao mesmo tempo que excluem Marx das suas fileiras e atiram o comunismo para o «passado de uma ilusão», porque não confrontá-los com a possibilidade (mais do que certa) de que elas, essas ideologias que julgam romper com todo o passado de uma cultura e de uma política, exprimam, e não mais do que isso muitas delas, as crises, as contradições, as debilidades e os putativos triunfos (agora em crise) do próprio capitalismo? Ideologias incapazes (ou desinteressadas) de ver a actualidade dos conceitos de feitiço (fetiche) da mercadoria, da subjectiva-objectiva alienação do trabalhador, do aprofundamento da contradição entre o carácter social da produção (mais do que nunca social) e a apropriação privada.
Consensos racionais?
Enfrentemos as nossas derrotas sem sectarismos defensivos e enquistamentos dogmáticos. Reconheçamos que Marx também as sofreu, por causa delas reviu e corrigiu-se, tendo como lema «duvidar sempre». Nunca desistiu, em cada derrota procurava descortinar onde estava a força do adversário e a fraqueza do proletariado, de modo a transformar a força do primeiro na sua fraqueza estrutural.
Muito boa gente se pergunta: porquê continuar a ser comunista depois das derrotas insofismáveis dos últimos decénios? Com mais de quarenta anos de militância comunista fiz a pergunta a mim próprio na devida altura. Respondi que sim e pensei nos porquês, critiquei determinados consensos através de diversos ensaios sob o título de «Crítica da Razão Consensual». Objectaram-me a propósito do título que os consensos são sempre desejáveis, criticá-los pode constituir um equívoco prejudicial. Evidentemente que sim, se tal fosse o real significado e alcance dos textos que escrevi, mas evidentemente que não, pois que o consenso que critico é a mistificação e a propaganda, o silenciamento do espírito crítico (e dos espaços onde se exprime, porque mais importante que o direito de pensar é o poder de pensar e exprimir), a difusão de uma visão dos fatos única, a exclusão de alternativas de governação que não sejam meras alternâncias , a dominação da ideologia neo-liberal que arrastou consigo os oportunismos das sociais-democracias (os partidos ditos socialistas servem atualmente apenas para iludir os trabalhadores), as tentativas de alojar num guetto o pensamento teórico-prático revolucionário. A Crítica da Razão Consensual é também, et pour cause, a crítica de uma certa racionalidade contemplativa, exclusivamente teórica, que despreza as razões práticas, como igualmente de um certo cientificismo que cultiva a neutralidade e omite as lutas de classes nas suas interpretações, e de um ensino corporativo controlado por interesses hegemónicos. Isso tudo e algo mais. Critica-se uma determinada racionalidade que exclui outras racionalidades (por exemplo: não existe exclusivamente o racionalismo cartesiano). Critica-se a pouca seriedade e a muita ideologia na “refutação” das teses nucleares da filosofia política marxista (notório nos livros de história da filosofia de origem britânica, muito consumidos por professores).Critica-se o consenso que os economistas neo-liberais procuram impor com o argumento de que a “realidade” é o que é, como se o conceito fosse inquestionável, como se a pergunta “O que é que é?” não fosse a questão capital da Filosofia.
Por definição os consensos não podem ser impostos por uma das partes apenas. Os consensos são possíveis e desejáveis quando os adversários, ou interlocutores, dispõem de um poder equivalente. Com este sentido, incluem-se os contratos e acordos. Entre vencedores e vencidos não há consensos mas rendições. As relações de força compõem discursos, contratos e acordos. A história das filosofias está repleta de sistemas e princípios com pretensões a estabelecer consensos racionais (postulados). As teorias políticas que começam em Platão e culminam no liberalismo, doutrinas do “direito natural” e teorias do “contrato social”, ambicionam a solução universal finalmente capaz de merecer o consenso. Na verdade, as primitivas teorias liberais exprimiam a co-relação de forças entre a burguesia e a nobreza, entre esta e o poder da coroa. Nas negociações sindicatos-patronato se as partes dispuserem em determinada altura de um poder equivalente o consenso é possível. Na guerra de classes o que ambiciona qualquer uma das classes em conflito? A derrota da outra. Segue-se esta ideia: os conflitos são permanentes e o movimento revolucionário é conflitual por natureza.
Sempre que uma classe social se torna hegemónica difunde a sua ideologia como hegemónica, ou seja, consensual. Antes de alcançar o poder político, se, acaso, dispuser já de hegemonia cultural, o poder está ao seu alcance.
1. A tarefa dos intelectuais deveria ser o desmascaramento de pseudo consensos, ou consensos conseguidos através da manipulação. Na sua génese a Filosofia (amar o saber é amar a verdade) é um trabalho permanente de desmitificação. O exame das paixões negativas, das ilusões, dos mitos, das utopias abstractas, do erro e da mentira, é uma actividade filosófica por excelência. Examinar é julgar. Quem julga é a razão. Quem decide é o poder que efectivamente se detém.
2. A religião constituiu um instrumento decisivo para fundar o consentimento. Por isso os materialismos, desde os primórdios, milénios atrás, utilizaram a sua filosofia numa máquina de guerra contra a religião. Um povo esclarecido seria mais livre. Na verdade, de maneira geral, as igrejas desempenharam um papel decisivo nas contra-revoluções. A identificação do materialismo com o ateísmo sempre alimentou a perseguição dos reaccionários obscurantistas. Perseguir os ateus e os heréticos foi sempre a ocupação obsessiva das ortodoxias. O marxismo não é um ateísmo militante (talvez seja antes uma a-teologia): não se ocupa a negar deuses e a perseguir crentes, mas a explicar cientificamente porque motivos os indivíduos procuram pela imaginação um bálsamo para as suas dores terrenas, e praticamente a retirar à nobreza e, depois, à burguesia, o poder cultural absoluto de manipular os sentimentos dos mais fracos e assim subjugar os explorados. Contudo, e isso logo o compreenderam alguns materialistas antigos e modernos, a força de uma crença pode ser determinante num conflito: em diversos períodos da História, tal como se verifica hoje, as crenças religiosas exprimem não apenas um ópio, mas um fermento, como já o entendera Marx. A filosofia política tem que prestar toda a atenção a estas variáveis, e trabalhar revolucionariamente no interior delas.
3. Não é a religião o fundamento: é o Mercado. Nem é a política institucional, é a exploração. A formação, acumulação e circulação do Capital é que é o espaço de todos os consentimentos impostos. É o topos do consenso universal. É devido à ganância que há crises, é pela mentira que se fabricam consensos voluntários. O marketing é uma poderosa fábrica de promessas. Conquistar um nicho do mercado, associar um bem desejável a um sabonete, eis um consenso obtido. É assim que se fabricam consensos: associar uma ilusão a uma coisa (sendo que até a própria “coisa” é uma mistificação). A publicidade ou propaganda é a máquina de fabricar desejos, alimentá-los interminavelmente. Arma de guerra na mais despudorada concorrência, tanto nos mercados como na política, para fazer vergar consumidores e cidadãos.
4. Dentro da classe dominante firmam-se consensos, os diversos grupos do grande capital em guerra intestina permanente unem-se para atacarem o inimigo comum –os assalariados. A seguir, exportam esse consenso para as outras classes sociais para as ganhar como aliadas (o que é bom para o capital é bom para a nação). Temos aqui o famigerado acordo com a troika como um exemplo: o capital financeiro provocou a crise, lucra com elas e faz pagar a factura aos trabalhadores, utilizando uma artilharia de aldrabices. Mas, pior que as mentiras, é persuadir que os seus interesses (obter o lucro máximo) correspondem aos interesses das classes subjugadas. A mais flagrante contradição é quando a massa dos explorados consente na sua própria exploração. É a submissão voluntária. Por isso a emancipação dos trabalhadores tem que ser obra dos próprios trabalhadores. É disso que se ocupa o marxismo.
5. Fabricam-se mentiras que parecem verdades para se justificar a submissão. É a ocupação dos ideólogos. Vendem-se espectáculos e distracções. É a técnica da “indústria cultural”. Esta “cultura” é hoje uma poderosa fonte de negócios e de evasão.
6. Uma opinião pública esclarecida é um índice do grau de cidadania e é a matriz das doutrinas liberais; na prática, porém, centrais de notícias difundem a informação e fornecem os temas e conteúdos das opiniões. Não só infundem o que se deve discutir, mas também como discutir, isto é, formam as estruturas do pensar. Daí as atitudes, que são predisposições para agir. São mais resistentes do que se julga.
7. Os «mercados livres» ilustram a fabricação de um mito; aqueles que advogam agora a sua regulamentação e «moralização» reforçam o carácter sagrado do mito. Os dogmas excluem a controvérsia. Quem mais defende mais ética aos mercados capitalistas são aqueles que mais nele acreditam.
8. Regra geral as críticas ao capitalismo não significam rejeição do capitalismo. A eternidade do capitalismo hoje parece consensual. Não poucos dos filósofos, historiadores e cientistas sociais, de maior fama mundial, já não consideram, como já consideraram no passado, a eliminação do capitalismo. Nunca foi tão grande o consenso: o capitalismo não é totalmente bom, mas o socialismo é pior. Proferem conferências nos quatro cantos do mundo, publicam livros, criticam alguns com acerto os excessos, a falta de ética, os abusos, as aventuras militares, os fenómenos negativos da vida social, mas a alternativa ao capitalismo não aparece. Progridem até ao reformismo, mas ainda assim com muitas dúvidas sobre o degrau da social-democracia, a qual, de resto, faliu quase ao mesmo tempo que os regimes do leste (a social-democracia não fora mais que uma resposta aos regimes socialistas; portanto, deixou de fazer falta).
9. Há um consenso sobre a falta de alternativas viáveis, fiáveis, sobretudo depois do desmoronamento dos regimes do leste. Qualquer «saída» revolucionária é logo questionada, posta sob suspeita. Admite-se que o capitalismo, embora contenha terríveis ameaças, é o fim da história. Bastaria dar como exemplo os escritos mais “subversivos” de G. Deleuze: o capitalismo produz muitas taras mas possui um potencial libertador; seja como for, para ele o marxismo estava morto. Refiro Deleuze porque, apesar de tudo, foi um extraordinário pensador e um homem decente, não perco tempo aqui a referir os medíocres e os indecentes.
10. Na verdade, os consensos são construídos e, como tal, podem ser destruídos. As ideias vão e vêm como as marés, e há mais marés que marinheiros. São para combater, por exemplo, os consensos como o do Tratado de Lisboa porque cozinhou o colaboracionismo de determinadas federações internacionais de sindicatos com os patrões e os governos. O grande capital financeiro, as potências que governam a UE (com a Alemanha hegemónica à cabeça), procuram impor consensos, isto é, políticas económicas, para a «estabilidade» do Euro, isto é, das suas economias hegemónicas.
11. O consenso é-nos apresentado pelos partidos que se alternam no poder como sinónimo de racionalidade, ser racional, demonstrar bom senso. Sinónimo de senso-comum, pragmático e realista. Não temos alternativa, dizem, todos os países seguem a mesma opção, como podemos ir contra a maioria? Se todos agem assim é porque está certo. É curioso que há pouco os mercados escreviam sempre bem ainda que parecesse por linhas tortas, hoje possuem uma força misteriosa, incontrolável. A economia não é ciência alguma (está minada pela ideologia), mas pretensiosismo não lhe falta. Os economistas são os novos ideólogos. É também curioso constatar-se que a nova ideologia do capitalismo (financeiro) é o economicismo, quando tanto se dedicaram a desacreditar o «economicismo» marxista…
12. O princípio cautelar é um bom princípio tanto em diplomacia como em filosofia. Velho de milénios foi a atitude seguida e aconselhada pelos antigos estóicos, e, portanto, por Montaigne, Descartes e Espinosa. A atitude dubitativa é a máxima lição de Montaigne. É a “suspeita” que Marx, Darwin, Nietzsche e Freud nos legaram, depois de nos desvelarem os interesses velados pela Ideologia dos Valores, pela religião, pela razão discursiva e pelo consciente. Desconfiar é uma atitude previdente, se não confundirmos desconfiança com este cepticismo emproado que parece reinar entre os bem-pensantes, ecléticos e petulantes niilistas de breviário na mão. Simulacros invadem-nos por todos os lados, e nisso tinha razão Gilles Deleuze. No fundo, não é essa a lição exemplar do velho Platão? Imagens-mensagens induzem-nos a acreditar que não vale a pena despir as aparências, como se os fenómenos (aquilo que aparece) se explicassem a si próprios: aparências sem essências, apenas superfícies… A exploração é uma “virtualidade”? Fenomenologias idealistas que mastigam abstrusos enunciados de Heidegger, enquanto proclamam Hegel como um «cão morto». Um Ser esquecido que se dá em presença nos entes, mas que não se topa em parte alguma da materialidade da vida natural e social… Um indivíduo sem identidade fixa que desistiu de reconhecer o sujeito das suas próprias acções e que, por isso, lhe parecem puramente aleatórias e sem sentido, excepto os sentidos que ele a si próprio dá num “acontecer” sem passado e sem futuro, num “acto criador” esquizóide e singular. E a responsabilização dos autores da miséria e das guerras? Mesmo que as identidades nacionais se vão perdendo, é sobretudo nos países pobres, dependentes ou dominados, que ela se perderá. O sistema capitalista não tem mais identidade?
13. É necessário e urgente quebrar o pretenso consenso de que o marxismo é mais uma das «narrativas» (na efabulação típica dos “pós-modernos”) que morreu de morte natural. O marxismo não é uma «ideologia» do passado. Ora, aqui há muita coisa para definir e distinguir: qual Marx é actual ainda? É somente o autor de algumas análises de O Capital, excepto da teoria da mais-valia? Exclui-se o conceito de praxis de Marx ou inclui-se, e com que significado? Reduz-se o marxismo a um determinado e defunto «marxismo-leninismo», ideologia política dos regimes de «socialismo real», criação «estalinista», ou admite-se, para além dessa doutrina de Estado, outros marxismos, outro marxismo-leninismo?
14. É uma tarefa urgente, sempre continuada, demonstrar a actualidade da teoria de Marx. Separar o trigo do joio: a praxis que Marx forjou não foi o modelo e os regimes do leste a cópia. O socialismo de Estado, de Estaline e de Brejnev, pouco teve a ver com o programa libertador de Marx-Engels e, portanto, com a etapa necessária para o comunismo; a identificação com Marx deve-se a eles próprios que, assim, são também responsáveis pela confusão induzida na mente das pessoas que associam o fracasso às ideias do fundador do materialismo histórico. Não foi Marx que ficou derrotado, foi um determinado modelo de socialismo sem comunismo. Não temos que nos penitenciar pelos crimes e experiências que outros cometeram em nome do socialismo. O socialismo, em Marx, é uma ideia, nunca o conheceu na prática. Nós conhecemos as várias experimentações. As experiências falhadas não demonstram necessariamente que a teoria está errada, podem demonstrar apenas que as experiencias é que foram erradas (não de todo, note-se, não esqueçamos os extraordinários sucessos dos regimes socialistas).
15. Actualizar é sempre interpretar nas condições pessoais e históricas em que se lê um autor do passado, recorrendo às fontes documentais, à compreensão dos contextos em que o autor formulou as suas ideias e às inflexões ou correcções que ele próprio introduziu no evoluir do seu pensamento. Uma interpretação pode ser mais justificada do que outra, mas nenhuma é a única verdadeira em absoluto. De resto, já não é tarefa fácil sabermos o que o próprio Marx conservou e o que abandonou (conservar e superar são dois estádios dialécticos), em que acreditava ele no final da sua vida. Abandonou Marx a filosofia, porque inútil face ao mais importante: a crítica científica do capitalismo? Concordou Marx com todos os escritos de Engels sobre a filosofia que conheceu antes de morrer, resultaram eles de conversas entre os dois amigos? Não é mais provável que Engels haja tomado a seu cargo essa estratégia, independentemente de Marx, para reagir aos ataques dos adversários e aos desvios que se desenvolviam no movimento operário europeu (socialismos utópicos, social-democracia revisionista, anarquismo)? Não é mais provável que haja caído na tentação, justificável à luz do seu tempo e conforme se tem usado na história das ideias, de compor um sistema, uma mundividência coesa e inabalável que dotasse os partidos comunistas de uma ideologia completamente distinta? A ser assim não é compreensível que tenha formulado uma ontologia, base fundamental da filosofia? Não é injusta a acusação de “positivista” quando foi ele, e não Marx, que ofereceu ao materialismo marxista uma ontologia formulada com clareza?
Contra as diversas formas de idealismo
Qual foi a posição de Marx contra todas as formas de idealismo, desde a juventude até à maturidade? Foi contra as interpretações, esse traço fortemente característico de todas filosofias, digamos: da própria filosofia enquanto filosofia. Interpretar, eis o que faziam e fazem os filósofos. O que criticava Marx? O facto de interpretar? De modo algum, pois que não há pensar que não seja interpretar (descrever, compreender, explicar). O que ele criticava era o dogmatismo da interpretação (apresentada como a verdade última) mas, sobretudo, a inclinação fatal (mas compreensível)dos filósofos: reformar as mentes, libertá-las pela instrução, pelo saber, pelo conhecimento. Mesmo quando alguns houvessem acaso falado em “revolução” era na reforma do entendimento que pensavam, revolução das ideias. Das ideias através de novas ideias. Este era o traço típico dos idealismos, quer fossem objectivos, quer fossem subjectivos. A formidável importância das Teses sobre Feuerbach encontra-se aí.
A intenção deste ensaio, se para tanto houvesse espaço, seria estabelecer a circulação esse “capital simbólico” de ideias, preconceitos e conceitos, hábitos e aspirações, essa atmosfera intelectual do tempo em que Marx foi formulando e reformulando, corrigindo, o conteúdo, o lugar e o papel do conceito de praxis, contexto histórico, regional e internacional, por onde ele passou, que o influenciou e que ele, por sua vez, influenciou, não apenas pelas obras publicadas (pois que várias delas não o foram) mas pela correspondência trocada e pelas intervenções nos círculos comunistas e na Internacional. Um autor conhece-se por aquilo que leu de outros, pelas disputas em que entrou, pelas influências, contactos e intercâmbios. Nada disso o diminui, bem pelo contrário. O sujeito não se dissolve por causa das redes em que as ideias se ligam e circulam, nem a sua originalidade se perde.
A subjectividade
A Razão que as Luzes promoveram e legaram merecera já a crítica de Kant. Não se podia ignorar a modernidade, a profundidade e a influência na filosofia alemã. A ideia de subjectividade, de actividade, actividade do sujeito, estava definitivamente instalada. Hegel glosou este mote até ao máximo: o Sujeito é o Absoluto. O que era esse idealismo? A hiperbolização da subjectividade, a atribuição ao sujeito e sua consciência, do poder de dar o sentido ao mundo, o poder de representar a imagem do mundo, do seu devir e da sua destinação. O privilégio da actividade intelectual de mostrar o que é o mundo e o que deve ser, como se deve agir. Dever. Dever ser. O dever kantiano e o devir hegeliano. A finalizar na contemplação “sensível” de Feuerbach. Um materialismo mais idealista que materialista. Os filósofos pensam o que é sem se atreverem a antecipar o que-ainda-não-é, contemplam o presente do alto do seu status, da sua superioridade (corporativa). Olham com pedantismo e petulância as revoluções de outros povos (não foram muitos os que, como Marx e Engels, escreveram páginas admiráveis sobre a heróica Comuna de Paris), realizam na cabeça o que outros realizam na prática (Marx disse-o sobre os alemães), apresentam aos contemporâneos o Plano da História Universal, enunciam definitivamente qual é a «natureza humana», para deduzir que as revoluções violentas não são bem vindas. Os filósofos (os “ideólogos”, esses “novos filósofos” que proliferavam ao tempo da juventude de Marx) sempre tencionaram converter os seus enunciados em verdades evidentes, em “bom senso”(razão) contra o ingénuo senso-comum (falsa consciência), isto é descobrir o sentido unívoco da existência: um só tempo, um só devir. Porém, a verdade é que a «Razão Universal» é o nome que o filósofo (materialista ou idealista, tanto faz) dá ao que ele quer. Nomes, retórica do poder. Na verdade, não há sentido algum que não seja construído por um determinado discurso sobre a acção. Ou melhor: a vida só ganha sentido com a acção, com a experimentação, a teoria só adquire sentido com a prática, o sentido oculto da teoria revela-se quando se analisa a sua ligação com a prática, propriamente falando com a revolução. Os ideólogos fazem do «saber» um poder, interpretam para guiar, reformar, aconselhar o Poder (vemos aqui como Marx é actual: hoje são os economistas, os comentadores universitários, os especialistas). Mas o «saber» deles é a sua ambição de poder e mascaram com um saber superior, transcendente, os interesses pessoais ou de classe e partido. Muitos deles são ostensivamente ignorantes. O mundo está a ser explicado por idiotas. E também há os “idiotas úteis”.
Confundir o pensamento com o “reconhecimento”, como é costume na filosofia (enquanto ideologia) é acreditar que a evidência é o supremo critério da verdade, no fundo, é conformismo, ainda que pintado de fraseologias reformistas. É uma forma de evitar os “inconvenientes” da Revolução. Entendamo-nos, amemo-nos, dialoguemos, antes que ela estale, ou para que ela não irrompa. Eduquemo-nos a nós mesmos antes (mas se isso fosse possível, para quê a revolução?). Ela que espere. Há uma crise de valores? Mudem-se os valores. Eis tudo. Eis a tarefa superlativa da filosofia (da ideologia): a Ética. Contudo, sem ir mais longe na Ética Prática do que foi o próprio Kant. A religião positiva é nociva? Substituamo-la pela «religião do homem» (Feuerbach) ou pela “adoração do EU” (Max Stirner), pela subjectividade auto-consciente, ética ou estética…Pelo supra-homem, aristocrático, camaleão de todas as identidades, afirmativo e potente. Democracia utópica que conserva as desigualdades e a mais não chega a imaginação.
A representação, esse modo de conhecimento, de ordem e classificação, de recognição, comum aos filósofos (ideólogos) é o discurso consabido das generalidades (o que as torna tão “evidentes” e “consensuais”) que fogem ao concreto (o trabalho, a exploração, o lucro e a dominação política e ideológica).
Daí que o materialismo sofra da mesma tara. Inverter a posição dos nomes - natureza no lugar da Ideia ou da Consciência – é tão insuficiente como apenas inverter os valores – o bem e o mal -, conservamo-nos no reino etéreo das palavras que pretendem automaticamente transformar o mundo. O materialismo vulgar (não o de Marx) é um idealismo invertido. Dar primazia à representação é atribuir o primado às ideias. A descoberta do «interesse» como motivo da conduta humana é antiga, é anterior a Marx. Vem, pelo menos, desde o século XVII, percorre todo o iluminismo, assume ênfase especial em Hume e converte-se num eixo central da Crítica kantiana. Tanto o materialismo como o idealismo trabalharam com o problema do interesse (o objecto da filosofia são problemas). A análise do interesse articula-se com a crítica dos excessos da representação, que é inevitável nos modos de pensar mas que escusa de ser metafísica. Convertem-se nomes gerais em realidades objectivas, com valor de verdade e, portanto, de Bem; tomam-se como expressão (ou reflexo) das essências ou dos fundamentos: o que é mera abstracção (ainda que função indispensável do pensamento), o que não é mais do que generalização, converte-se em universal (real). O essencialismo dos nomes é uma espécie de tara das filosofias. O mais das vezes não é senão o modo como um grupo social se categoriza a si mesmo e aos outros para se diferenciar. Contudo, o que é notável é o dispositivo com o qual se pretende anular as diferenças e tornar todos «iguais», a parte no todo, o particular no universal. Os exemplos abundam: «Povo», «Nação», «Pátria», «Democracia»…Um dos usos mais antigos desta fórmula mágica é a religião judaica (e depois judaico-cristã): Jeová elegeu os Hebreus como o seu povo, os crentes transformaram-no em um deus universal e Israel (regime racista) massacra os palestinos.
Por conseguinte, o exame crítico da noção de representação (dos seus usos no discurso) conduz-nos à crítica da unidade. Hiperbolizar a representação é conduzir-nos pela trela em direcção à Unidade, isto é, ao modelo, à identidade absoluta. Em suma: à Ideia. Nesta armadilha caíram não só os idealismos como os materialismos. Porque a Unidade, neste sentido, dissolve todas as diferenças concretas, locais, particulares. O concreto torna-se um predicado. A «igualdade» pregada pelo liberalismo é apresentada como um avanço civilizacional tão grande que nem se permite denunciar que ela não é mais do que uma máscara, um engodo e um ardil, que oculta a desigualdade real (por ex. entre o capitalista e o assalariado, ou entre o poder estatal e a «sociedade civil»). Outra artimanha é a famosa ideia de que a soberania reside no povo; portanto, este detém o poder definitivo: elege ou demite os governos, substitui os próprios regimes se entender. Eis o consenso que sustenta as democracias (até as ditaduras). Porém, sobre esta proposição indiscutida, mas impraticável, ergue-se um sólido edifício: o sistema representativo. O eleitor concreto e singular não fala, é falado; não participa, é representado. Os representantes do povo soberano exprimem os interesses gerais, e o carnaval prossegue desde há duzentos anos. Devemos excluir a Unidade? De modo nenhum. Criticar o contexto e as finalidades de um termo, não é exclui-lo. A Unidade é uma expressão com a qual designamos uma síntese, uma conjunto ordenado complexo, uma totalidade, um determinado tipo de relações internas que ligam fenómenos contraditórios. Se existem diferenças, hão-de existir unidades de diferenças.
A crítica da interpretação ( da actividade interpretativa a que se dedicou sempre a filosofia) pelo Marx da «Ideologia Alemã», da «Sagrada Família», das «Teses sobre Feuerbach», é a mais certeira e demolidora que a filosofia contemporânea produziu. Daí a actualidade de Marx, a sua modernidade (ou, se preferirmos com alguma ironia, a sua pós-modernidade), a revolução que operou. Marx pegou na própria noção de «acção» (acto, actividade) que a filosofia alemã havia introduzido (no sujeito, na subjectividade, actividade subjectiva, da Consciência) e trouxe-a para a terra onde o trabalhador trabalha, onde o capitalista o explora. As Teses sobre Feuerbach são o culminar dessa maturação. Nesse sentido são o ajuste de contas, como já se disse, são o «fim da filosofia idealista clássica alemã», parafraseando Engels. Mas são também o ajuste de contas com o materialismo clássico.
A subjectividade
A subjectividade merece ser aqui incluída pois que foi sempre uma “deficiência” apontada pelos críticos dos materialismos. Certamente que o materialismo não deve ser reduzido a epifenómenos e a uma causalidade fisiológica ( as correcções operadas por Vigotsky à revolucionária teoria de Pavlov, o fundador da Psicologia científica, e que obtiveram apoio nos mais eminentes psicólogos soviéticos, apesar do estalinismo, demonstram o papel insubstituível da subjetividade), porém essa crítica deve ser endereçada também aos positivismos que dominaram a ciência durante décadas. Por exemplo, Diderot censurou o materialismo de D´Holbach e compreendeu bem o génio de Helvétius. Feuerbach criou, a seu modo, uma subjectividade materialista. Hegel censurou a ausência de subjectividade em Espinosa (apesar de ter sido nele que se inspirou), contudo é em Espinosa que encontramos as mais fecundas páginas sobre as paixões humanas.
A noção de subjectividade possui uma longa história, indiscutivelmente dependente das transformações sociais que se foram verificando desde, pelo menos, a Renascença. Certamente que essa ideia percorreu as grandes filosofias modernas e foi central nas doutrinas políticas. Contudo este percurso (ou progresso) não foi independente de modo nenhum da afirmação nascente das burguesias, nem independentes desta base o foram as religiões reformadas ou o Barroco e outras inovações artísticas que todas elas contribuíram para a valorização da interioridade, da originalidade individual, dos direitos, em suma, da afirmação dessa esfera irredutível da individualidade. As lutas entre as diversas classes foram os agentes maiores. As revoluções na América e na França culminaram um século de batalhas pelas liberdades. As Constituições políticas e os códigos civis registaram com eloquência o primado do sujeito. De passo em passo, as filosofias elevam a subjectividade e o Eu à realidade e ao valor superlativo. Até a divindade se recolhe já à sensibilidade, ao coração, à consciência. Temos, porém, de um lado a interioridade e, do outro, a exterioridade; de um lado o eu, do outro, o mundo; qual dos dois lados é o Objecto e o Sujeito? Temos Fichte e Stirner, temos a dialéctica de Hegel. O que paira é um Sujeito com maiúscula, uma Consciência que cria o mundo, a Razão ao interpretar a História, realiza-a. Os liberalismos enredam-se na contradição entre o indivíduo e a colectividade, tanto geram entidades abstractas supra-individuais como um indivíduo abstracto. Entre o «homem genérico» de Feuerbach e o anarquismo de Stirner o salto é pequeno. A subjectividade serviu, ontem e hoje, de pano para todas as mangas. Neste território tão intrincado Marx oscilou e sente-se isso quando se lê os textos da década de quarenta, mas detectou com génio as debilidades e abstraccionismos de Stirner e do velho mestre Feuerbach. Em tudo que conhecemos dele, até ao fim da sua vida, não há uma única prova, todavia, de que ele haja desprezado a subjectividade reduzindo-a a um epifenómeno de estruturas supra-determinantes (ou infra). A análise científica do trabalho concreto e do trabalho abstracto, em O Capital, é uma demonstração de como ele resolvia o problema fundamental da relação sujeito/objecto. Mas, antes disso, já tínhamos as Teses sobre Feuerbach.
As Teses sobre Feuerbach
1ª
«A principal insuficiência de todo o materialismo até aos nossos dias – o de Feuerbach incluído – é que as coisas, a realidade, o mundo sensível são tomados apenas sob a forma do objecto ou da contemplação; mas não como actividade sensível humana, praxis, não subjectivamente. Por isso aconteceu que o lado activo foi desenvolvido, em oposição ao materialismo, pelo idealismo – mas apenas abstractamente, pois que o idealismo naturalmente não conhece a actividade sensível, real, como tal. Feuerbach quer objectos sensíveis realmente distintos dos objectos do pensamento; mas não toma a própria actividade humana como actividade objectiva. Ele considera, por isso, na Essência do Cristianismo, apenas a atitude teórica como a genuinamente humana, ao passo que a praxis é tomada e fixada apenas na sua forma de manifestação sórdida e judaica. Não compreende, por isso, o significado da actividade “revolucionária”, de crítica prática.
2ª
A questão de saber se ao pensamento humano pertence a verdade objectiva não é uma questão da teoria, mas uma questão prática. É na praxis que o ser humano tem de comprovar a verdade, isto é, a realidade e o poder, o carácter terreno do seu pensamento. A disputa sobre a realidade ou não-realidade de um pensamento que se isola da praxis é uma questão puramente escolástica.»
A categoria fundamental que Marx inaugura nesta duas teses é, portanto, a categoria da actividade prática. Vai ser explicada por ele posteriormente nos seus detalhes, na sua concreção, a sua formação e função social. É toda a história social do homem, a história do Trabalho, da produção, apropriação e formas de distribuição dos excedentes, é força-de-trabalho assalariada, a mais-valia que lhe é extorquida, etc. É a história dos modos de produzir. Uma completa revolução na historiografia. O travejamento da Sociologia. É a ressurreição do materialismo (um novo materialismo) depois de haver liquidado o antigo. Se somente se é filósofo quando se produzem conceitos novos que rasgam horizontes, que mudam a nossa maneira de ver, a praxis, conforme o sentido que Marx lhe dá, é um conceito revolucionário. Nunca mais o idealismo voltará a deter a hegemonia, pelo menos nos moldes clássicos. Em certas áreas irá recuando para se recolher aos meandros da linguagem ou da intuição psicológica. Perderá batalhas sucessivamente com as descobertas na biologia, na antropologia, na arqueologia, na sociologia, na psicologia, nas mais diversas ciências. Contudo, não desaparecerá bruscamente. Imaginar que todo mundo venha um dia a pensar tão “perfeitamente” que não precise de recorrer mais a crenças idealistas, é uma utopia abstracta que fantasia um universo no qual reina absolutamente o consenso, e isso é mais próprio de paraísos do que de sociedades humanas. O idealismo tem raízes não somente nas sociedades divididas em classes sociais antagonistas, mas também, e talvez sobretudo, na divisão social do trabalho; ora, a divisão social do trabalho, ou o Estado, não desaparecem da noite para o dia. Nesta questão de etapas transitórias é de todo conveniente não esquecer os fecundos ensinamentos que o século passado nos legou para o melhor e para o pior. A vida das ideias beneficia de uma autonomia que nos permite evocar, por analogia, a energia, reprodução e cruzamentos entre organismos vivos. São excedentes que sobrevivem às suas raízes e a seu modo fazem a sua história. É também pela divisão social do trabalho (em contínua complexificação) que os idealismos brotam e são tanto mais vigorosos quanto as condições sociais lhes são propícios. Com a religião passa-se algo semelhante, e a comparação não é despicienda. É inegável que durante séculos, senão milénios, o idealismo dominou consensualmente e não apenas através da coerção. O século vinte foi dominado pelo pensamento científico, acaso isso expulsou os idealismos da própria filosofia das ciências? Ao mesmo tempo que as ciências avançavam e a teologia perdia o domínio da cultura, recrudescia a reacção contra o triunfalismo cientista e técnico. Os excessos de uns provocam a reacção de outros. Nesses excessos encontra-se muita da força que os idealismos reconquistaram.
Crítica dos materialismos
Criticando a filosofia idealista, criticou simultaneamente as filosofias materialistas. Os materialismos nunca haviam conseguido vencer os idealismos porque eram tão limitados, unilaterais e redutores quanto estes; mais: eram absorvidos quantas vezes pelos idealismos ou isolados para uma esfera marginal como especulações extraviadas de algumas cabeças. O materialismo mostrava-se demasiado confinado às suas preocupações anti-religiosas, pelejando em controvérsias que não se libertavam do mesmo plano em que o adversário o colocara. A controvérsia «O que cria o quê: a Natureza ou o Pensamento?», era uma discussão teórica replicada interminavelmente. Kant havia incontestavelmente demonstrado as antinomias dessa «Razão Pura», entregue a si mesma, sem soluções práticas. Ora, eram estas, as soluções práticas, observações da vida real, soluções para os antagonismos sociais, que mais importavam e urgiam. Kant libertou o problema que parecia sem solução aprisionado na armadilha da metafísica tradicional, “desviou-o” para a Prática. A solução desses teorismos encontrava-se na prática, numa conduta moral comprometida com a política, entendida como cidadania plena no uso das liberdades. É esta a interpretação que atribuo à genial solução kantiana, ainda que limitada no seu alcance pela sua filosofia idealista. Solução que Hegel entendeu perfeitamente, na peugada do grande F.G.Fichte. Solução que encontrou nas “Teses sobre Feuerbach” a sua perfeita adequação. A Práxis. Navegou em rios idealistas para desaguar na foz de um materialismo revolucionário. É este, a meu ver, o alcance maior das “Teses sobre Feuerbach”. A Dialéctica, essa outra noção fundamental que é em conjunto com a Práxis o conteúdo profundo do novo materialismo, encontra-se noutros textos de Marx. Claramente desenvolvida e exposta nos textos de Engels, receberam-na de Hegel que a recebeu, por sua vez, da longa história da filosofia. A Práxis e a Dialéctica passaram a constituir um património do materialismo, com outro significado e alcance. Assim se tece a história das ideias. Conflitos, partilhas, influências por vezes não assumidas, rupturas e criações. Na filosofia, tal como nas ciências.
Seria errado concluir daqui que os filósofos nunca manifestaram interesse algum pela acção e pelas mudanças. Bastaria citar o exemplo de Platão e das suas viagens à Sicília para se converter no conselheiro de tiranos. Um grande número redigiu tratados sobre Política e foram eles, os filósofos, que forjaram as doutrinas políticas. Os iluministas foram reformadores. O interesse maior de Fichte e de Hegel identificava-se com uma nova Alemanha, maior poderosa e mais unida. O que é preciso compreender é que as propostas dos filósofos em geral já não serviam para os propósitos de Marx ao tempo em que submeteu a exame a «Ideologia Alemã». Nem se trata de que a filosofia estivesse numa fase de decadência mortal, na década de quarenta a filosofia nacionalista de Fichte ainda mexia, a dialéctica hegeliana conquistava discípulos (a «Filosofia da Miséria», de Proudhon, viria mais tarde a tornar-se um livro muito popular), o velho Feuerbach era um pensador respeitado. O que se passara então? É que Feuerbach virara de pernas para o ar o sistema de Hegel, as suas teses «humanistas» expunham com brilhante clareza uma explicação da mecânica idealista que projecta numa divindade ficcionada as virtudes e os anseios humanos, os “jovens hegelianos” (Bruno Bauer e Cª) suprimiam (pelo pensamento!) as contradições da humanidade, contudo com impacto público suficiente para que Marx se afadigasse numa resposta extensa («A Sagrada Família»); por toda a Europa circulavam escritos clamando pela República, exigindo a reposição dos ideais da Revolução Francesa, as Constituições liberais sob tutela das coroas já não satisfaziam, os círculos comunistas organizavam-se aproximando-se dos movimentos operários; na Inglaterra, desde 1821 (escreveu Engels) a economia de Ricardo permitia extraírem-se conclusões socialistas; E. Cabet publicara Voyage en Icarie, uma utopia com enorme sucesso popular. Entretanto, Marx trabalhara como jornalista até ser expulso da Alemanha, observara a miséria dos trabalhadores, tal como o fez tão bem o próprio Engels. Apontámos apenas uma parcela do muito que Marx leu, observou, agiu, ele que era originário de uma família burguesa, casado com uma aristocrata, doutorado em filosofia, um intelectual que ainda não se transformara no co-fundador da Primeira Internacional. A sua filosofia amadurecera rapidamente, como se pode verificar nos Manuscritos Económico-filosóficos, de 1844, em A Ideologia Alemã, de 1845-6 e A Sagrada Família, de 1845, na Miséria da Filosofia, de 1847. Culminará esta fase com O Manifesto do Partido Comunista, de 1848, em colaboração com Engels, já em plena ebulição do movimento operário. Nada prova melhor o que Marx entendia como praxis…e os motivos porque via nos ideólogos idealistas fraseologias inconsequentes mas nocivas. Os conservadores reaccionários não faziam tanta mossa no movimento operário como os pseudo-esquerdistas. Por isso, ao mesmo tempo que começava a ser atraído pela economia política, onde encontrava a raiz e a solução, lera o pesado volume de Max Stirner (O único e a sua Propriedade), a «miserável» aplicação da dialéctica hegeliana nos escritos de Proudhon…
Registamos o conjunto dos conceitos que Marx criou e que tanto bastariam para demonstrar a o seu génio filosófico:
O trabalho – Realiza a relação do homem com a natureza (a matéria) como meio fundamental. È através dele que humanizamos a natureza, reproduzimo-la e objectivamo-nos no objecto que se converte em coisa humana. É, assim, o pressuposto da troca dos produtos, das relações que se instauram entre assalariados e patrões, entre produtores e consumidores. Apesar dessa origem histórica e dessa função social básica e cheia de consequências (é n’O Capital que encontraremos a análise mais científica) o trabalho é sempre alienado no capitalismo; perde-se a sua função mediadora, o seu produto, para o operário, deixa de ser dele, é de outro e é coisa outra, estranha, despersonalizada. O trabalho produz produtos ao mesmo tempo que produz os operários, isto é, mercadorias. O conceito de «exploração» (trabalho excedente não pago) começa a emergir…Quando num tempo como este em que vivemos em que o trabalho precário se soma ao desemprego, a actualidade de Marx é flagrante.
A divisão social do trabalho – A Ideologia Alemã afina a noção de «divisão social do trabalho e formas de propriedade», mostrando-se a relação entre as forças produtivas (o seu nível de progresso) e a complexificação da divisão do trabalho. Logo nas páginas iniciais se vê como cada nova força produtiva tem como consequência uma nova constituição da divisão do trabalho. As etapas em que esta se processa ocasionam formas de propriedade correspondentes.
A ideologia – Na mesma obra Marx (a obra tem a colaboração de Engels) o capítulo que versa sobre a ideologia é tão fecundo que os intensos debates que atravessaram o século vinte demonstram-no bem. Resumamo-lo: em vez dos avatares metafísicos dos idealistas o ser real é o produtor que produz bens e, simultaneamente, relações sociais, crenças e instituições. A ideologia é a moral, a religião, a metafísica, a Cultura de modo geral. Os idealistas desprezam ou ignoram os pressupostos daquilo de que mais gostam de descrever. Não é a consciência que determina a vida, é esta que determina a consciência. A consciência é apenas a consciência dos indivíduos vivos e reais. Em lugar da representação na cabeça dos ideólogos, é o processo de desenvolvimento prático dos homens que se representa, ciência positiva. A ideologia é, portanto, uma dissimulação, aparência fantasiosa que escamoteia as suas próprias premissas, a sua origem real. Mas não é um mero erro, mera «consciência falsa» de ingénuos, é um instrumento, um dispositivo complexo e difuso de poderes e micro poderes de que dispõe a classe que domina os meios de produção. Os proprietários privados apropriam-se da cultura e utilizam-na no seu próprio interesse. Não surpreende, portanto, que a ideologia dominante – a moral dominante - persiga os materialistas como “imorais”…O mais extremo irracionalismo convive com o mais solene racionalismo. Faça-se, por fim, uma ressalva: o conceito de ideologia (como, aliás, todos os demais conceitos) origina-se numa fase ainda influenciada por Feuerbach e somente perto dos finais da década de cinquenta até a O Capital, adquire o rigor com que hoje devemos aplicá-la. Numa palavra: é no quadro da configuração do materialismo histórico que o conceito ganha toda a sua funcionalidade. O sentido de distorção, operada pela ideologia, permanece, é este sentido que Marx utilizará mais vezes do que a palavra ideologia: na concorrência capitalista tudo parece invertido, as relações económicas aparecem invertidas na cabeça dos seus agentes, o fenómeno oculta a sua essência.
A Praxis – Como se pode ler nas Teses Sobre Feuerbach é a praxis humana que é racional e não os misticismos com que determinadas teorias se comprazem. O conceito compreende a actividade livre, auto-criadora, do homem, por exemplo o trabalho, mas dever-se-á incluir toda actividade que o homem livre tem possibilidade de realizar. Aristóteles codificou o termo, distinto de teoria. Marx usa-o com o sentido de acção mas junta-lhe a produção (poiesis, em Aristóteles). Deste modo (Aristóteles também o fizera) havemos de distinguir uma «boa» praxis da praxis «má»: A primeira, acção (que inclui a política, a moral, etc.) e produção livres, a segunda, uma prática alienada (do indivíduo alienado). O socialismo é a transição preparatória da formação de indivíduos harmonizados com a natureza e com os demais, livre de escolher a actividade em que se sente mais feliz na comunidade. Este desígnio é talvez a aspiração mais antiga e mais funda do ser humano.
O Materialismo – O materialismo é a corrente filosófica que Marx perfilha desde a juventude. Ao longo dos textos que escreveu na sua vida o materialismo ou é o tema ou o pressuposto. Tentemos ir ao “osso” do conceito: a) o ser humano depende da natureza, esta não depende dele, ainda que em parte humanizada e dominada (a naturalização do homem é todo um programa); b) tudo o que existe é apenas matéria, incluindo as produções humanas porque dependem dela. Aqui se ergue a ontologia materialista: o ser social depende e emerge do mundo e da vida material; o Objecto (mesmo muitos dos objectos do pensamento científico) possui uma realidade independente; é, por isso, que é cognoscível (embora através de mediações); a materialidade do mundo constata-se na acção transformadora do homem (produz e reproduz a vida social). Tratamos aqui da matéria como categoria filosófica e não enquanto conceito de diversas ciências (de resto, variável com o progresso destas).
Historicidade e temporalidade – O materialismo de Marx introduziu a história concreta (material -objectiva e subjectiva) das relações sociais (conceito capital nas Teses sobre Feuerbach) através da descoberta, em primeiro lugar, dos modos de produção e reprodução da vida social. O modo de produção desempenha a função causal primeira e principal, sobre esta afirmação peremptória e repetida de Marx não podem subsistir quaisquer dúvidas. O materialismo histórico apoia-se nela. Tolerar algumas afirmações de Marx menos esta não faz qualquer sentido. De resto, tudo possui uma história, um devir, um desenvolvimento e nada é eterno e imutável. Por conseguinte, poder-se-á afirmar sem qualquer laivo de sectarismo que as ciências vieram comprovar as teses essenciais do materialismo de Marx: desde o darwinismo e a biologia, até à sociologia e antropologia, passando pela astronomia…O materialismo de Marx é científico, tanto na sua Economia Política, especificamente, quanto no paradigma historicista que impregna todo o saber contemporâneo. As ciências de uma maneira geral, e tendo em conta apenas os seus objectos e os seus resultados fiáveis, são materialistas (provavelmente sem o saberem, ou se importarem). As filosofias das ciências é que podem não sê-lo…Sucede com o idealismo o mesmo que foi sucedendo com a teologia: vai recuando fingindo que avança, até se recolher à inefável interioridade. Onde materialistas e idealistas se podem entender é na crítica dos modos perversos da tecnociência. Mas quando se especula sobre as “virtualidades” (esse efeito das novas tecnologias) atribuindo mais realidade ao imaterial do que à matéria, então a conversa passa a ser de surdos.
A Possibilidade – Das Teses sobre Feuerbach, do Manifesto, enfim, de qualquer dos escritos de Marx, publicados ou não em vida, mas, sobretudo, de Para a Crítica da Economia Política (Prefácio) e de O Capital, pode-se extrair um conceito independentemente de ter sido ou não trabalhado por ele: o conceito de Possível. As suas teses sobre o papel transformador do homem, a necessidade de uma consciência de classe por parte do proletariado, a sua militância em favor de organizações verdadeiramente autónomas e revolucionárias, o quadro que traçou do desenvolvimento dos modos de produção que hão-de culminar no socialismo e no comunismo, enfim, reiterados anúncios sobre a inevitabilidade do derrube do capitalismo, levam-nos a sugerir que o que vem tem de vir. Sobrepõe-se ao que é. Em rigor, o que é (passado o sue prazo de validade), é menos racional do que virá a ser (ou ao Ser). Não por força de um determinismo fatalista, mas pela luta inevitável dos explorados. Podemos traduzir este possível, ou pelo menos, apoiá-lo no conceito de tendência de que faz Marx faz bom uso particularmente n’O Capital. Pode-se até afirmar que o mais mobilizador das análises e proposições de Marx é a convicção que denota e que nos transmite de que a revolução é não só necessária e racional, como possível. O que é racional é necessário e o que é necessário é possível. Muita gente mais ou menos decente tem considerado esta perspectiva de Marx como simplesmente utópica. A verdade é que a revolução veio já no tempo dele e depois dele, e não são os seus resultados que agora importam. O valor de uma Promessa não está apenas na convicção de quem a anuncia, mas nos efeitos que ela produz no auditório, e o fenómeno da adesão às ideias de Marx foi absolutamente colossal. Não há compreensão alguma do século vinte se nos abstrairmos desse facto. É na força material das ideias, quando imensas massas sociais nelas acreditam, que devemos meditar. A História não acabou. O capitalismo não é o fim, porque se o fosse seria eterno e a eternidade entre os homens não faz qualquer sentido.
Certamente que proliferam sonhos acordados de que os impostores sabem tirar partido muito lucrativo. Eis repetidamente os laboratórios dos consensos. Uma filosofia do Possível não pode, evidentemente, ignorar o que está diante dos olhos (tão sólido que, às vezes, as sereias nos tentam com o cântico da desistência), porém o Diante-de-nós é muitas vezes racionalmente inconsistente, mera representação abstracta. Esquece-se ou ignora-se que o Diante-de-nós está em devir, que esta história se movimenta por tendências, que esta dialéctica imanente carrega simultaneamente um lado escuro e um lado iluminado. Possui duas faces, como Juno. O devir não poder ser caótico (só o é para quem crê, por exemplo, que só a arte introduz uma ordem no caos, pura ilusão que enche de orgulho soberbo alguns artistas), não é completamente aleatório, precisamente por isso é que se tornou viável e fiável o pensamento científico. As filosofias que desconsideram o futuro apenas nos destinam ao nada, o niilismo é a desesperança (verdadeiramente niilista foi Heidegger após a derrota da Alemanha, Nietzsche anunciou-o mas apenas como etapa negativa para uma super-humanidade). Ao recorrer à Esperança a impostura presta-lhe homenagem. Induz falsas esperanças (terríveis consensos!), filhas dos medos, mas a esperança concreta é filha da vontade de justiça de quem se sabe descriminado, explorado, oprimido. Se o Devir não fosse mais que repetição e eterno-retorno do mesmo teríamos todos os motivos para sermos fatalistas. Não é a certeza de um Possível determinista mas de uma determinada possibilidade racional, não existe a priori um futuro determinado, seja ele catastrófico ou óptimo. Isso é mais próprio de teologias. Os capitalistas por inclinação fatal não consideram o Novo (o Diferente), porque o futuro, para eles, não pode nem dever ser senão a acumulação do capital. O que é racional para eles terá de ser a única racionalidade possível. Por isso o Novo é a categoria filosófica irmã do Possível, como escreveu E. Bloch. Poucos filósofos do passado e do presente (do presente, sobretudo) incluíram o Novo como categoria modal com uma função decisiva e terminal (diga-se em abono da verdade que nem sempre os materialismos constituíram a excepção) imanente ao devir do todo e dos seres. Um mundo futuro igual ao presente mas potenciado para o pior, distópico, é o que retratam as literaturas pessimistas tão próprias destes tempos de crise sistémica (a F-C -ficção-científica- é o melhor retrato das distopias em voga). De distopias está o cinema cheio. O horror dá-se como espectáculo, o vampirismo e o dantesco exprimem, sem o saberem, a natureza do Capital. O fatalismo e o cepticismo, quando diletantes, é o cul-de-sac a que chega muito do pensamento e da arte contemporâneas. Enquanto se consome paranoicamente os frutos das tecnologias, teme-se que elas dominem o homem. É, pois, necessária uma «ontologia do vasto campo do possível» (E.Bloch) que se oponha ao pensamento único da “ilusão estática”.
Não basta, no entanto, defender o possível – a possibilidade de -, é indispensável demonstrar que o possível não desemboca necessariamente no nada. Ou no mesmo (por exemplo em regimes socialistas que se auto-destruíram).É indispensável a categoria - modalidade do Ser - do Novo, isto é, da Diferença, que está já contido em potência nas tendências do presente (Marx demonstra esta percepção em enunciados admiráveis de O Capital), que não está ausente das condições objectivas (por exemplo: a contradição principal que O Capital expõe e que será, por ventura, a proposição política nuclear).
O Novo, em Marx, é sem dúvida alguma a Revolução. Sem desenho utópico (essa arquitectura perfeita a que obedecem todas as utopias abstractas), sem um modelo, essa matriz de todos os ideais de raiz platónica. As Teses sobre Feuerbach dizem-nos claramente isso. Nestas o que interpreto é que o Novo é possível porque a essência da colectividade humana são as relações sociais, produtos imanentes do devir. Produtos da praxis humana, produzem os modos de ser, pensar, sentir e agir, dos indivíduos singulares. Enunciado que exprime com clareza insofismável a dialéctica da acção. O agir humano não se processa sem mediações e nelas as contradições constituem um elemento fundamental. Os filósofos e cientistas sociais contemporâneos que expulsam o negativo e as contradições das suas fórmulas deixam-nos com um punhado de fulgurantes enunciado vazios. É assim que se ergue toda uma ontologia da imanência com estas categorias filosóficas, um materialismo Novo que rompeu com idealismos e materialismos que não são capazes de sair do casulo da representação abstracta. Re-presentar é um processo de cognição social que nos conduz à tentação de actualizar uma Ideia abstracta. Modelo e respectivas cópias. O socialismo não pode perseguir uma Ideia que se apresenta como modelo na Ideologia. Este é um erro antigo e contumaz, os processos cognitivos são demasiado resistentes. Não é nada fácil pensarmos de maneira nova e diferente. Mas é necessário, a menos que se queira cair na tentação de explicar o fim de algo como um «desvio» a um modelo que ainda nos faz suspirar de saudade muitos. Em Marx não lobrigamos modelo algum de política económica socialista, nem poderia suceder tal coisa, pois ele não redigiu um programa detalhado à maneira das utopias da sua época, é contra esses projetos prontos para aplicação imediata em qualquer lugar e circunstância que ele e Engels se opuseram nesse documento extraordinário em toda a história das ideias políticas da Humanidade até então produzidas, que foi e é o Manifesto do Partido Comunista. Princípios fundamentais isso sim, do jeito que lemos em Crítica ao programa de Gotha.
NOZES PIRES
(professor do Ensino Politécnico)
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