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terça-feira, 11 de março de 2025

Do que poderiamos designar "racionalidade dominante e dominadora"

 

Crítica da Razão Consensual

 


Da  Razão e da racionalidade dominante.

 

 

 O que domina tende a excluir. Chame-se-lhe «Razão instrumental», «Razão técnica»; o que ela é, sobretudo, é ideológica (interesseira, particular, classista).  Porque aspira ao Universal e se apropriou de noções «universais» ela é ideológica e apresenta-se como consensual. Na medida em que os indivíduos creem na veracidade de «universais» (direitos humanos, democracia, humanidade) a ideologia aproveita-se e apresenta-se como racional; portanto, consensual.

A este género de racionalidade dominadora e ideológica prefiro uma Razão Paradoxal. O paradoxo é a raiz da filosofia. Do paradoxo construiu-se a dialéctica. Na origem da dialéctica não está somente o diálogo de interlocutores interessados desde logo no entendimento racional e, portanto, num consenso; a montante está o conflito. A actividade filosófica pode nascer devido a variadas razões, mas o conflito (ou a força externa que fustiga o indivíduo) é o seu motivo maior. Quando se formula um paradoxo, instala-se a suspeita.

Entendo por Razão Consensual uma modo de racionalidade que não se critica a si mesma e tende –esse é o seu desígnio- a excluir toda a Crítica. É a novíssima razão Absoluta, Iluminada, que não consente o negativo como momento essencial do processo racional e criador. É refutável, mas impõe regras consensuais à controvérsia, e apoia-se no pragmatismo das evidências e consequências. A Razão Consensual não é ainda o totalitarismo (única ideologia consentida por uma regime político ditatorial), mas é já a sua antecâmara. Convive com os regimes democráticos, na medida em que domina os instrumentos do poder. É precisamente esta coabitação que lhe fornece a sua natureza específica e a sua extrema perigosidade. Apela aos consensos, enquanto submete e reduz o espaço aos recalcitrantes.  Apresenta-se cheia de razão, porém é uma ideologia interesseira. Disfarça-se com o Universal, mas é particular e veicula objectivos de uma classe social determinada. Não emancipa, menoriza, uniformiza, disciplina, infantiliza. Não é a Ciência, porque esta é composta de várias metodologias analíticas e estriba-se em provas e refutações; a Razão Consensual utiliza, porém, a linguagem científica como discurso persuasivo, apropria-se das tecnologias e controla os centros de investigação. A Razão Consensual se faz progredir a História, é somente pelo seu lado mau. A Consciência precisa de ser perder para se encontrar, mas a Razão Consensual, indiferente à utopia hegeliana, não se «perde» e, portanto, não «se encontra». Ela é a positividade vazia que exclui a negatividade. O Sujeito açambarcador que expulsa a subjectividade.

Nada temos contra os consensos; a discussão, a controvérsia, busca entendimentos, plataformas, acordos; as sociedades, desde sempre e provavelmente para todo o sempre, necessitam de consensos. O que dizemos é que o capitalismo pós-moderno- o grande capital, os oligopólios, as multinacionais, os generais da política- estabelece consensos leoninos que impõe aos trabalhadores de todo o mundo e aos países dominados. O que dizemos é que a ideologia que propaga é suficientemente poderosa que consegue submeter comunidades e instituições (sociais, étnicas, culturais, académicas, científicas), como se apenas existisse uma realidade e uma única forma de descrevê-la.

Esta ideologia converteu-se em «psicologia popular», em «senso-comum» e, este, em «bom-senso».

Entre outros, apresenta-nos três «factos» que ela mesma fabricou: a desvalorização do trabalho produtivo e, simultaneamente, o imperativo da produtividade a todo o custo; a redução do Estado ao «Estado-mínimo» e, simultaneamente, a intervenção do Estado no interesse dos poderosos; o consumismo compulsivo e, simultaneamente, a redução do poder de compra. As contradições ou são silenciadas ou reduzidas a puros problemas económicos (soluções monetaristas e teorias do Mercado).

As regras das democracias, Constituições e instituições, são instrumentalizadas, a opinião pública manipulada; gangs organizados de burocratas, testas-de-ferro, homens de-palha, mafiosos, especuladores, redigem acordos invisíveis e trocam encomendas, exportam armamentos, contrabandeiam, lavam o que estiver «sujo». Uma mão lava a outra.

«os conflitos de classe são cada vez mais retratados como uma coisa do passado, nos casos em que as classes são reconhecidas como formações sociais relevantes (...) As contribuições dos trabalhadores para a economia são dadas como adquiridas e logo ignoradas, ainda que a culpa pelas recessões lhes possa ser atribuída» (T. A. van Dijk, 2005)

A Razão Consensual apoia-se no pressuposto de que a política é um meio, a ética um instrumento, o universal uma retórica, os críticos uns meros marginais. Ao mesmo tempo que exploram desenfreadamente países e continentes, que invadem, saqueiam e aterrorizam, promovem gigantescas acções mediáticas de caridade, choram lágrimas de crocodilo, convertem-se da noite para o dia em admiráveis filantropos.

A Razão Consensual impõe-nos ser submissos, seja por interesse pessoal, por crença sincera, ou, do mal o menos, cépticos. Consente, dentro dos limites, teorias que acreditem em «identidades nómadas», em «Sociedades da Comunicação Universal», ou «comunidades que vêm». Desde que sejam apenas teorias. O que não convém que se ensine é a verdadeira essência do modo-de-produção.  Não lhe faz mossa que se diga que a verdade se reduz a uma questão de «perspectivas». Ela está aqui para impôr a sua perspectiva sem crítica: as maravilhas das novidades tecnológicas, o fascínio das catedrais do consumo.

Escrevo «sociedades de controlo», mas sei que o controlo é conseguido quando os alvos não se apercebem da natureza ou das implicações de tal controlo. É pelo discurso que nos dominam, mas a dominação é possível por causa da ideologia (manifesta ou latente).

O capitalismo pós-moderno consente em «culturalismos», «ecletismos» e «tolerâncias», como filhos desavindos que ele disciplina com uns açoites paternais, porque ela sabe que por detrás de palavreados assoma soberano o preconceito. E, do mesmo modo, eles já sabem que as pessoas podem aceitar sistemas de crenças contrários aos seus interesses racionais. Eles sabem muito. Compõem discursos com mentiras e meias-verdades.

 

                                                    A Razão controvertida

 

A Razão não é uma «faculdade». É um conjunto de dispositivos da mente humana, que diversas áreas corticais tonaram possíveis, os quais são em parte inatos e, em outra parte, adquiridos e desenvolvidos pelas múltiplas formas de acção social.  

No sentido lato, é indiferente falarmos de Razão ou de inteligência múltipla. No sentido específico dizemos que a Razão é a capacidade de distinguir o verdadeiro do falso; porém, devemos incluir o provável e o incerto. Por vezes é mais útil duvidar do que acreditar. A dúvida é um sinal de inteligência. É um critério geral de verdade. Na medida em que os termos desta definição - «verdade» e «critério geral»- são controversos, é mais certo definir a razão pela negativa, por aquilo a que ela se opõe: à tradição, à autoridade, à pura experiência, à pura afectividade, aos juízos parcelares, unilaterais e aos procedimentos erróneos.

Contudo, a tradição (e a autoridade) não são inconciliáveis com a tecno-ciência, nem inimigos irredutíveis, e isto vê-se tanto a Ocidente, como no Médio oriente.

As emoções (na base do encéfalo e do sistema endócrino) constituem um ingrediente fundamental para a actividade cortical superior. Sem sentimentos não seriam possíveis as atitudes e as decisões. Por conseguinte, os actos racionais. O homem é um ser paradoxal. A superioridade do seu encéfalo reside na capacidade de cálculo e previsão. Não é o simples agir que o caracteriza, é a acção planeada. Ora, não existe plano sem paixão, emoção, interesse, desejo.

Do mesmo modo a  Razão não dispensa a componente moral (distinção entre o certo e o errado, o útil e o inútil). Entendemos por moral um conjunto de dispositivos adaptativos, que organizam as intenções, atitudes e comportamentos, em parte inatos e, em outra parte, sociais . Os grupos dominantes impõem a moral que mais lhes interessa. Como não são homogéneos (a começar pelo lugar e pelo papel que exercem no modo de produção) podem os interesses «morais» divergirem, pode a pressão social introduzir mudanças, sem que, no entanto, as normas morais dominantes escapem do controlo.

As emoções não se reduzem ao «sentir», a Razão ao «pensar», a moral ao «escolher». As primeiras influem no pensar, e ambas no escolher e agir. Não existe «acção social» sem emotividade.«Só há, portanto, vida e verdade lá onde a existência se une à essência, a intuição ao pensar, a passividade à actividade, a fleuma escolástica da metafísica alemã ao princípio sanguíneo, anti-escolástico, o sensualismo e materialismo franceses.», escreveu Feuerbach.

Podemos falar em consciência. Neste caso falaríamos de consciências (sucessivos planos ou graduações da actividade mental), incluindo o não-consciente e o subconsciente, cuja base é neuronal. Possuímos áreas corticais competentes para integrar relações e interacções sociais.

A Espécie possui uma consciência básica que determina cada organismo a agir conforme padrões semelhantes ou universais. Neste sentido, dizemos que a razão nada exige que seja contrário à sua natureza, isto é, que cada qual se ame a si mesmo e procure o que realmente lhe seja útil; cada qual esforça-se por conservar o seu ser.

Posto isto, a parte social destes dispositivos e competências possuem raízes no tipo de organização social concreta particular; envolvem tanto as sociedades modernas, como, desde os primórdios, os diversos bandos de homo sapiens que deambulavam pelos territórios em busca da sobrevivência. Os nossos componentes invariantes devem-se a variações nos primórdios da antropogénese.

Os mitos da «alma», «espiritualidade», «transcendência», e outros do mesmo género, são puras mistificações, ainda que sem estas e outras mistificações não haveria Cultura. É também por isso que não existe uma cultura transcendente, uma moral e uma ciência transcendentes. Ter ou não razão depende de regras. A razão e a racionalidade são coisas relativas.

No mundo das mercadorias o cálculo económico quantifica e submete as actividades humanas que as produzem à racionalização que lhes corresponde.

A noção de matéria não serve, sem crítica, para fundamentar uma filosofia materialista. As partículas que não possuem matéria (fotões, neutrinos) não são, em rigor, matéria. Entretanto, descobrimos uma incomensurável quantidade de anti-matéria no universo. Que é a Matéria? Só podemos, por enquanto, defini-la paradoxalmente: é tudo que não seja uma qualquer entidade não constituída por uma qualquer forma de energia; o espírito «puro» não tem nenhuma possibilidade de existir. A filosofia materialista criou-se e cresceu em oposição aos espiritualismos de qualquer género. O que é paradoxal é a mente humana que fabrica uns e outros. O universo é aquilo que a ciência calcula que seja, não o que os nossos olhos veem, mas a Natureza é também aquilo que a imaginação cria. É a Existência necessária da qual somente uma ínfima parte está ao alcance do conhecimento humano. É pura potência e pura produção (expressão). É possível algo infinito e eterno, mas tais termos são incompreensíveis para a mente humana. Toda a explicação que tem como princípio quer a matéria quer a «ideia» é uma interpretação;portanto, refutável. Determinados materialismos -genéricos- contêm elementos de idealismo; como tal, o idealismo não os teme.

Sobre o ser humano- ser finito e natural- as ciências não param de confirmar  as teses gerais das filosofias materialistas: o primado do natural e do social, a interligação entre os seres vivos, os conceitos de imanência, repetição e diferença.  

Podemos constatar a diversidade, variação e vulnerabilidade da Razão- dos produtos da mente, o papel das inter-acções- através dessas abordagens biológicas, psicológicas, sociológicas...

Todas juntas não certificam nenhuma transcendência, nenhuma eternidade (nem deste Universo sequer – não existiu provavelmente um único bigbang, mas vários; antes deste Universo existiu alguma coisa e o mais provável é que existam outros universos). Todas testemunham múltiplos modos de energia, desde as primeiras colónias de bactérias, até às sociedades humanas actuais. A História testemunha a infinita vaidade do homem e a sua superlativa estupidez: apenas um animal consegue destruir um planeta enquanto se ajoelha com submissa devoção a uma simples ideia que ele próprio inventou; elevado à autoconsciência, teima preservar o seu ser para além da inevitável entropia.

Se entendermos como Substância – ou Ser – tudo aquilo que conhecemos, devemos admitir que a noção é interminavelmente inacabada, pois não podemos estabelecer limites ao conhecimento sem cair em contradição. O Todo- o Ser- é, portanto, uma noção relativa e aquilo que ele vai sendo depende do conhecimento humano. O Todo sem devir e sem diferenças é uma mera ficção inútil. O Ser é simultaneamente unívoco e múltiplo. Ainda que se considere o indivíduo como a substância primeira ( para relevar o corpo concreto e a individualidade concreta portadora de direitos e poderes), ele não existe como autoconsciência sem o social e o colectivo; a totalidade de relações e interacções existe independente e dependente dele, mesmo que ele não tenha consciência desse facto. O inconsciente e o consciente possuem componentes colectivos. Contudo, não existem dois indivíduos completamente idênticos.

A racionalidade filosófica e científica europeia, aliada e impulsionadora da mentalidade científica do século dezassete, embora rompesse com a mentalidade não (ou anti) científica dominante (mas não totalmente irracional), mergulha as suas raízes numa orientação racionalista que herdámos dos gregos antigos, tal como estes a herdaram dos egípcios e das civilizações do médio-oriente. Tal orientação racionalista não foi exclusiva invenção europeia, pois que os antigos chineses e indianos, e povos da América Central, também a «inventaram» e cultivaram com excelência.

Posto isto, o que é costume classificar-se como racionalidade não é uma orientação racional única. Nem una. Possui várias histórias. Seleccionou-se essa devido às vantagens, preteriram-se outras, convive com outras no mesmo planeta, na mesma comunidade, no mesmo indivíduo. O camponês mais iletrado não é estúpido, o Doutor em Ciências Exactas é-o às vezes nas relações que estabelece com os outros. Decidir o que é irracional ou racional já é tarefa difícil, bem mais é decidir que género de conhecimento é mais vantajoso do que um outro. É à filosofia que cabe a tarefa de forjar um conhecimento ético.

O racionalismo enquanto doutrina é apenas uma tendência, que tendeu a tornar-se exclusivista. Esta tendência consiste na atitude de exclusão do oposto ao seu ponto de vista; no que concerne à ratio, é monista e autocrático. O pluralismo de princípio não é inconciliável com o espírito científico; sempre que se aliam princípios as coisas marcham melhor. Nestes casos prestamos homenagem à dialéctica. A douta ignorância académica que lavra não logra apagar de todo o legado de Hegel, Marx e Freud (ou C. Jung).A Europa tanto é o berço do espírito científico como do espírito que o tem reerguido periodicamente pela crítica dos seus limites e excessos e pela sua abertura a outras dimensões, maltratadas normalmente como místicas ou irracionais.

A unilateralidade míope é o princípio da intolerância, do dogmatismo da verdade única (mas mutilada), do sectarismo. Cultivemos o paradoxo porque ele é o húmus (ou o rizoma) da razão crítica, que nos liberta e desassossega a razão dominadora.

Quando o capitalismo se lançou à conquista do mundo, a sua racionalidade convivia perfeitamente com a escravatura que expandiu e, por isso, convivia mal com as culturas dos povos que resistiram à assimilação(alguns deles já escreviam filosofia quando os europeus ainda viam duendes nas florestas).

As ideias são as ideias que o corpo tem por si próprio e de si mesmo. Contudo, as ideias recebem um forte componente externo, sem o qual as ideias que o corpo gera não seriam muitas delas possíveis, sobretudo na sua expressão mais complexa, relacional e aprendida. O homem é um ser social. O ser social do homem é um compósito de relações sociais. Esta definição genérica é verdadeira para se acentuar a natureza social das competências humanas (reveladas ou a desenvolver), mas não serve para invalidar a tese, também verdadeira, de que sem corpo não existem possibilidades de competências actuantes. O corpo de carne e nervos, mais as relações sociais concretas, compõem a natureza humana. Omitir um ou outro dos elementos é cometer um erro, bem manifesto na história das ideias e das ciências. Reduzir o ser do homem apenas a relações sociais (aprendidas, historicamente criadas e socialmente diversas) é uma ilusão do idealismo (em filosofia). Nas Teses sobre Feuerbach, Marx define a essência humana como um «conjunto de relações sociais» (Tese 5), antes, porém, avisava que «as circunstâncias são transformadas precisamente pelos seres humanos e que o educador tem ele próprio de ser educado» (crítica da doutrina materialista). Nas Teses e nos Manuscritos Económicos e Filosóficos de 1844, Marx, tendo razão em muitas afirmações, não lhe faltava optimismo, contudo. Uma leitura atenta de O Capital mostra-nos um pensador mais avisado sobre as invariantes da natureza humana.

Os dois modelos da controvérsia sobre a natureza humana pertencem a Hobbes, um, e, o outro, a Espinosa. Por possuírem algo de comum e, ao mesmo tempo, diferente. Por ambos romperem com a hierarquização introduzida pela crença dogmática num deus transcendente. O Deus imanente de Espinosa modifica a relação de cada indivíduo singular com os demais. A existência torna-se um problema ético : o que é bom e o que é mau (não o que é o Bem e o Mal). Dom Deschamps (século XVIII) estabelece a Existência como o conceito mais geral de todos os conceitos. Para Hobbes e Espinosa a Lei funda as sociedades humanas; no primeiro autor ela é mais repressora- controla os egoísmos naturais; por isso, liberta da brutalidade. Em Espinosa, semelhantemente, a lei é sempre a instância transcendente que determina a oposição Bem-Mal, mas o conhecimento é sempre a força imanente que determina a diferença qualitativa dos modos de existência bom-mau. Para o um, a solução é um Estado absoluto, centralizado, tutelar; para o outro, o Estado realiza a Liberdade. Nem um, nem outro, optimizam a bondade natural do homem. Em ambos o determinismo que o corpo e as paixões encerram pode ser desviado, educado e habituado.

São três os instrumentos de codificação utilizados por um aparelho estatal: a lei, o contrato e as instituições. Se fizeram florescer as burocracias, não é impossível que permitam fazer florescer as liberdades.

Das teorias matriciais de Hobbes e de Espinosa resulta não só a crítica das teorias do contrato que apoiam este numa mítica reunião de indivíduos livres, iguais e racionais, como resulta também o problema sempre controverso a saber: onde acaba a liberdade individual e começa o bem-comum. O dilema exprime-se nas doutrinas políticas  que opõem um elemento ao outro, ora reduzindo as liberdades individuais em nome do bem-comum (de modo a contrariar o egoísmo «natural» do homem e a forçar o contrato), ou, ao invés, fazer prevalecer as liberdades individuais (o contrato como expressão do consenso entre partes iguais e racionalmente competentes).  O paradoxo tem uma outra solução: somente se é livre através de um contrato que estabeleça a igualdade efectiva, prática.

As religiões não recusam a argumentação racional: atente-se nas teologias das principais religiões, na ortodoxia judaica, na filosofia de Tomás de Aquino – na filosofia medieval de modo geral-, nos filósofos árabes aristotélicos dos califados, nos mais importantes pensadores cristãos do século passado. Uma filosofia que admite a autonomia da espiritualidade e a existência da transcendência, não é, só por isso, irracionalista. A religião filosófica de inspiração budista não é um puro irracionalismo. Irracionais são os dogmas cuja única garantia de verdade é a crença fideísta, as crenças injustificadas, os argumentos de autoridade e falácias do mesmo tipo. O que torna uma crença irracional é um certo tipo de ritualização do apego à tradição e à autoridade dos intérpretes. No entanto, a sua irracionalidade pode ser compreendida se a entendermos como forma de coesão social e como estratégia defensiva e ofensiva. Então, o que é irracional pode tornar-se racional, e aquilo que nelas é a crença e a prática do martírio extremo, revelam-se procedimentos tipificados em numerosas formas de religião. A explicação de um fenómeno para ser adequada só pode ser racional. Nesse sentido, toda a linguagem é racional; quando o não é, não consegue comunicar.

Não é a filosofia que é paradoxal, é a vida do colectivo, e esta é transitiva, colhida pela instância  económico-política. Quem não vê contradições humanas, geradas pela força do poder, resolúveis pelo poder da força, desespera de tanto esperar. Se o paradoxo se instaura por uma força externa, há paradoxos que somente se resolvem por uma força maior.

Parece não conseguirmos sair da razão, da inteligência representacional que apenas consente na Identidade, sem devir e sem diferença. O Acaso repugna-lhe.  Adultos, andamos à procura de modelos, como se ainda fossemos crianças. E se já não houver modelos? E se tudo se traduzir por sentidos (que atribuímos e deciframos)? E se esse for o significado verdadeiro da expressão «O homem é um animal simbólico»?

 

 

 

 

A Questão da «natureza humana»

 

A questão do que seja a «natureza humana» é de importância crucial, e os pensadores da antiguidade entenderam perfeitamente a centralidade dessa questão ( as escolas platónicas, aristotélicas). O que é no homem da ordem das circunstâncias históricas? O que há nele de pouco ou nada variante? Sobre a mitologia do «Homem Novo» o século vinte arruinou optimismos ideológicos.  O  determinismo optimista, ou fatalista, não é uma mística (puro racionalismo ideológico). Não existe nos homens em geral uma disposição necessária para a liberdade, para a emancipação e auto-realização. É uma determinada práxis que poderá realizar esses possíveis. Na natureza humana universal digladiam-se contradições. Deixar-se dominar pelo seu lado criativo ou pelo destrutivo, libertário ou dominador, é todo um programa de desenvolvimento pessoal e social. Em determinadas alturas uma comunidade pode estimular o seu potencial agressivo, noutras, o contrário. Nenhuma utopia converterá toda a gente em anjos. Mas seguramente que uma ditadura converterá muita gente em delatores e cobardes.

Numa palavra: o indivíduo concreto não é somente um produto da sociedade concreta em que vive, como uma fábrica produz sapatos (tal como o pensamento não é simplesmente «segregado» pelo cérebro). O termo «reflectir», por exemplo, tem tido um uso destemperado. Filosoficamente falando é uma noção empirista típica –O indivíduo não «reflecte», sem mediações, o meio em que vive; entenda-se: o pensamento não é um mero «reflexo» do mundo exterior. Esta analogia com a óptica (perspectiva especular) tem uma antiga tradição: o valor atribuído ao olho humano, ao olhar, isto é, à observação, e também à luz (outra metáfora resistente, relacionada com a inteligência e o conhecimento). O materialismo não é uma filosofia contemplativa. O objecto do conhecimento não é absolutamente independente do processo cognitivo; a verdade é essencialmente a expressão prática de um sujeito (e não a representação teoricamente adequada a um objecto). Foi aí que falhou o grande Espinosa, mas também F. Engels...Marx fundou uma filosofia da práxis.

As interacções indivíduo/meio  (os recursos naturais que ele transforma em bens consumíveis e excedentes, as interacções com os outros indivíduos), os sucessivos estágios do processo de desenvolvimento, nos quais a actividade do indivíduo organiza os seus modos de pensar, compõem uma dialéctica que impede explicações deterministas unilaterais. Daí que os critérios de verdade só possam ser explicativos, conforme Marx afirmava, sacudindo historicismos messiânicos e deterministas e previsões proféticas. O Sujeito não é um sistema fechado, seja ele o indivíduo singular, seja ele o sistema capitalista.  

A plasticidade do ser humano conduz-nos à ideia de que uma certa margem para a iniciativa individual é condição necessária e sempre existiu, mesmo nas sociedades escravistas, ainda que reduzidas a um minimum sob controlo das forças sociais (materiais ou culturais) que superintendem à distribuição dos poderes, papéis e estatutos. Uma das maiores revoluções que as sociedades capitalistas propiciaram foi precisamente a libertação do servo, permitindo-se que ele se transformasse em rendeiro, pequeno empresário, ou, como viria a acontecer com a revolução industrial, em operário. Neste caso a liberdade não foi exclusivamente «formal». A liberdade do trabalhador (relativa, claro está) é uma condição do modo de produção capitalista (diminuída ou aumentada conforme as lutas dos trabalhadores e os interesses dos capitalistas). É condição para a produtividade e para a transformação do trabalhador em consumidor. O salário, por exemplo, é uma motivação. O escoamento da produção e o consentimento do expropriado-consumidor constituem finalidades que o capitalista não pode, em absoluto, dispensar. As ditaduras excluem liberdades políticas fundamentais, mas deixam alguma margem de actuação, ainda que a estratégia principal seja a dominação pelo medo, pela ignorância, pelo ópio instilado pela propaganda; se tudo isto não funcionasse em conjunto não se aguentariam cinquenta anos.  

A motivação provocada, a distribuição dos excedentes, as crenças, sempre puderam sustentar o consentimento. Os filósofos iluministas perceberam muito bem o poderoso efeito da ideologia religiosa, por exemplo. As revoluções estalam quando os consentimentos já não são possíveis. Quando já não se suporta tanta injustiça. Quando a ideologia dominante fracassa.

Os regimes socialistas que ruíram em boa parte o devem ao fraco nível da produtividade, pois que os estímulos ideológicos já não surtiam efeito. O «homem novo» tornara-se rotineiro e fingia que acreditava. Os incentivos e a criatividade não eram suficientemente estimulados. O Estado protector tolhia a individualidade. A propaganda já não justificava a limitação da liberdade de acção e de escolha dos indivíduos, e a insatisfação tanto atingia os trabalhadores com rendimentos abaixo do medíocre, como os estratos que, entretanto, enriqueceram e desejavam a «livre iniciativa» capitalista. O regime ruiu por dentro, não foi invadido de fora. O fracasso não se deveu apenas à ditadura política do Partido único, mas à poderosa influência das liberdades tuteladas (inclusive na sua expressão psicológica) sobre o desenvolvimento económico. O consentimento activo e participante não pode resultar sem uma motivação, sem expectativas e sem bens à vista, quer sólidos quer simbólicos. As enormes dificuldades para fazer passar uma mensagem não se prendem somente com a falta de meios, ou o controlo das mentes por parte dos adversários; prendem-se com as coisas que os indivíduos-alvo possuem e as promessas de coisas melhores que não se sabe quando chegarão. O que é, é alguma coisa, o que ainda não é, não se sabe ao certo o que seja. O homem é um ser imaginativo, a imaginação é também racional, mas o indivíduo escolhe normalmente o realismo pragmático, porventura esse desejo de segurança que Espinosa afirmava ser o mais próprio dos povos. Aquilo que importa hoje descortinar no capitalismo desta fase, é a insegurança que a sua orientação provoca. É o seu calcanhar-de-Aquiles.

Reduz-se o amplo espaço de manobra para o consentimento de que ele dispunha, reduzem-se as expectativas, provoca revolta a enorme desproporção na distribuição dos bens materiais e simbólicos, o desemprego, o emprego precário, a exclusão social. O proletariado europeu que dezenas de anos a fio se acomodou ao Sistema (embora, claro está, lutando e conquistando direitos civilizacionais) e apoiou, salvo honrosas excepções, apenas programas reformistas  (que prometiam conservar a segurança dos direitos conquistados), fez-se ignorante de programas revolucionários, incluindo aqueles que tentaram a todo o custo sacudir qualquer aproximação ideológica com os regimes soviéticos. Este proletariado (que já não é o mesmo) ameaçado, objectivamente mais explorado, mais inseguro, alcançaria uma luminosa consciência de classe, se as duas esferas se ligassem entre si como o fígado causa a bílis. Mas não é assim que as coisas se passam. A «classe» é uma consciência a construir.

A Burguesia detentora do capital financeiro, industrial, científico e simbólico, possui, por enquanto, razões suficientes para impor o seu domínio, consensual, em última instância; isto é, o Sistema não corre perigo de morte. No entanto, «ela move-se», a toupeira mina o solo, as contradições corroem, o Sistema somente as absorve até um certo ponto, possui elos mais fracos.

 Paradoxalmente um imenso país que se rege pelo socialismo, fornece uma justificação para a perda de direitos laborais em países capitalistas. Com mais ou menos autoritarismo, na China, os pobres do campo proletarizam-se nas cidades, sob quaisquer condições, como se assistíssemos à repetição da génese do capitalismo europeu. Um fenómeno semelhante verificou-se na URSS de Lenine e, sobretudo, de Estaline: massas humanas confluíram para as cidades e fábricas, fugindo de uma morte pela fome nos campos. Este sucesso (relativo e não pouco desumano) não o conseguiram os maoístas, embora a brutalidade não ficasse atrás da motivação ideológica.

Sobre a natureza humana desde há muito tempo que muito se tem escrito. Não vemos grande diferença entre o cidadão grego ou helénico, satirizado por Aristófanes ou Luciano, e o homem actual; entre as pequenas e grandes loucuras classificadas por Erasmo de Roterdão e aquelas que caracterizam o homem actual. Dizer, como ora se diz, que o homem é «loucura» e «razão», é dizer o mesmo. «O homem é sumamente enganador e sumamente enganadiço», também o disse o nosso P. António Vieira.

O paradoxo parece ser este: somos, por um lado, pré-configurados e, por outro, apesar disso, somos capazes de atingir a verdade. A nossa mente organiza o mundo (desde a infância que a criança vai organizando o mundo de modo não muito diferente da ordem que assimila dos adultos): tal ordem pertence à mente apenas, ou é simétrica com a ordem objectiva do mundo (que já seria ordenado antes de surgir a mente humana)?. É separável a questão psicológica relativa ao modo de actuação universal da mente, dessa outra questão que diz respeito à validade dos requisitos cognitivos para acedermos ao verdadeiro? A própria ciência parece mais inclinada a descobrir como não são as coisas.

Somos compelidos por pulsões, chame-se-lhes o que se quiser, desde que na definição intervenha o factor social. O que há de mais notável em Durkheim é a certeza que ele nos transmite na força das restrições compulsivas de natureza social, da congruência, disciplina e organização das ideias e dos conceitos, do habitus. Parece até que o que é universal é compulsivo. É o ritual que promove? Cooperamos porque pensamos de modo semelhante? É pelo ritual que nos submetemos, é pelo ritual que nos unimos para a rebelião.

Se a ordem da razão equivale à ordem do mundo, então a ciência é descrição, a arte uma imitação, a filosofia uma revelação. Neste caso a melhor analogia é a da luz, a melhor metáfora a da cegueira. Então o criador que se recusa a imitar a ordem, introduz a desordem, a desrazão, o narcisismo delirante. Se, pelo contrário, o mundo é desordem, então o sábio e o artista, ao imitá-la, não fazem mais do que exprimi-la de modo convincente. Na verdade, a ciência, a arte, a filosofia, não têm que imitar o mundo, nem têm que se limitar a interpretá-lo. As três actividades transformam-no. É o projecto que faz a essência.

A essência não é uma ideia, nem um projecto ideal ou virtual, porque seríamos sempre remetidos para uma cópia de um modelo. O que existe de essencial na existência humana são as relações múltiplas activas que os indivíduos estabelecem uns com os outros (A Ideologia Alemã). Este é o cerne da justa sociologia. É nessa trama que reside a ontologia materialista.

 

 

A base económica e as «superestruturas»

 

A estrutura económica, condiciona a organização total das sociedades – a expressão «base» é adequada- porém não determina a chamada superestrutura (a expressão «determinismo» é inadequada): o económico, o político, o ideológico, são planos específicos, dotados de autonomia, os quais compõem uma formação social. Muito embora seja o nível básico, económico que influencia o papel dominante que este ou aquele nível desempenha, em contextos concretos (anote-se o papel dominante da religião nos partidos e regimes «fundamentalistas», ainda que o económico esteja presente). O capital financeiro, que governa os movimentos do capital, apoderou-se das esferas políticas e ideológicas, contudo estas esferas conservam uma natureza específica. Os espaços públicos que parece não controlar, não escapam à mercadorização, ao feitiço da mercadoria, e tem sob controlo ideológico as maiorias. Todavia, esta realidade não significa que represente o domínio absoluto, o consentimento total ( daí classificar-se a religião como um «escape»). Nos níveis político e ideológico as contradições atrapalham e travam o reinado absoluto. Quando a parte dominada das relações de produção abandonar a crença na racionalidade deste real, e passar à acção conforme uma racionalidade antagonista, então este real deixa de ser racional, e, portanto, real. Para tal é necessário que o nível ideológico desempenhe um papel determinante. Deste modo a ideologia é um catalisador.

Em boa verdade, aquilo que as filosofias, as literaturas, as ideologias, e até as ciências, revelam é a natureza humana amoldável e condicionada. O indivíduo torna-se humano pela educação; já nas sociedades primevas aprendia técnicas sem as quais não alcançava a condição humana. Os comportamentos não reflectem a acção do meio social mecanicamente, mas por formas complexas, enviesadas, subtis, cobertas por mantos diáfanos de fantasia (a fantasia é um traço forte da consciência humana e das ideologias), quando não por mal disfarçada denegação; por isso não são evidentes as razões e as causas, e imediatamente legíveis as finalidades e os propósitos. Se fossem evidentes não era necessária a ciência. Além disto, as ideias resistem e perduram para além de um tempo particular, o que torna mais indevido o termo «reflexo». E ainda: determinados grupos sociais, ou indivíduos geniais, podem imaginar mundos possíveis e anteciparem-se ao tempo histórico.

O papel desempenhado pela imaginação intencional, especialmente nas suas formas mais racionais, é normalmente negligenciado. A imaginação, que não é uma «faculdade», constitui um ingrediente decisivo da Razão, como esta o é da imaginação. A imaginação engendra monstros e anjos. As mitologias e as ideologias. Com ela se cria, com ela se destrói.

É devido a estes factos –bio-psico-sociais- que a mente humana se orienta por diferentes modos de racionalidade, movida por um impulso de organizar o mundo conforme sabe e pode (imitando o que convém aos outros de modo a que lhe convenha também). As mudanças sociais, as hierarquias, as diferenças de classe, os hábitos, a espiral das motivações, as asas da imaginação, os medos e as esperanças que deles nascem, vão compondo o ramalhete das mentalidades. Foi a natureza sociável do homem, a condição gregária dos primatas, que lhe permitiu desenvolver relações sociais, mutáveis e diferenciadas. Neste corpus de símbolos – as mentalidades- , que dirige o interpretar e o agir, sem o qual não  existiriam percepções tão diversas da realidade objectiva, ou, sequer, um Objecto, cabem as ideologias (a religião, a arte, a filosofia, a cultura «erudita» e a «popular»), com as suas ilusões, contradições, pelas quais se apresenta racional a uns, aquilo que, para outros, é evidentemente irracional (e não falamos da demência). Para não aceitarmos tudo como natural, legítimo e particular (como parece defender um certo relativismo em voga), necessitamos de parâmetros e modelos. Qual o fundamento que nos permite acreditar nos nossos, e impô-los aos demais? É aqui que se ergue o problema fundamental de toda a filosofia: o que é, parece ou é realmente? O que é, é-o sempre, ou devém? Quem afirma? Quais os argumentos, as provas, os critérios? É tudo apenas uma questão de linguagem, de nomes, de códigos? Porque é que a linguagem lógico-matemática é universal, e universal o Método científico? Porque razão é universalizável (como ideal) a conduta que manda que não façamos aos outros aquilo que não queremos que nos façam a nós?

Existem modelos de acção, parâmetros ideias, que constituem um inquestionável património universal que a Razão valida e que, simultaneamente, a consubstanciam. Ainda que possamos admitir que muitas vezes não servem senão como pretexto para o vício prestar homenagem à virtude, nenhuma doutrina dispensa determinados perfis e regras no seu ideário. Não reconhecemos, por exemplo, como civilizada uma comunidade que não respeita os direitos do homem, e desejamos que todas apliquem métodos electivos e regimes que respeitem a separação e a independência dos diversos órgãos do poder. Não reconhecemos valor e vantagens na despromoção da criação científica e tecnológica, conjuntamente com outras opções e potencialidades. Os regimes teocráticos constituem uma regressão civilizacional.

Sucede, porém, que quase todos esses e outros objectivos civilizacionais (ou conquistas) são passíveis de manipulação, ao passo que os recursos técnicos e científicos existem ou não existem reconhecidamente (consensualmente), parecendo, assim que o último exemplo é matéria de consenso, enquanto que os outros exemplos constituem matéria controversa. Esta aparente neutralidade, objectividade, da «tecno-ciência», fornece-lhe uma mais-valia na escala dos valores.

O campus dos papéis sociais é, muitas vezes, anterior ao indivíduo singular; este é colocado conforme regras, a sua vontade é limitada, senão mesmo ilusória. A divisão social do trabalho é a base fundamental da constituição das sociedades humanas.

 

 

 

 

As ideologias

 

 As ideologias fabricam e veiculam interpretações (crenças) destinadas a conservar um certo equilíbrio social e individual e apoiam-se em dois eixos complementares e simultâneos: justificar o que se quer e, concomitantemente, aquilo que não se quer. São organizações sociais virtuais que se objectivam nos comportamentos e nas instituições, mas que necessitam do consentimento individual e colectivo. Trata-se de um capital simbólico, citando o termo cunhado por Pierre Bourdieu - «uma qualquer propriedade, força física, riqueza, valor guerreiro» que, percebido por quem o pode perceber, «se torna uma verdadeira força mágica: uma propriedade que, por responder a «expectativas colectivas», socialmente constituídas, a crenças, exerce uma espécie de acção à distância»(Bourdieu, 1994).  Um exemplo pode ser dado pelo valor atribuído à identidade (a sua conquista na adolescência, como afirmava E. Erikson, a identidade étnica, regional...em suma: o poder da identidade, como demonstrou M. Castells). Conquistar o consentimento-reconhecimento é a tarefa principal das ideologias e dos ideólogos; o desejo dos indivíduos serem «alguém», i.é, sujeitos.

O estatuto social diz respeito a uma categoria de pessoas, distinguidas por atributos socialmente reconhecidos; as sociedades podem ser definidas de múltiplas maneiras, e nenhuma delas dispensa a inclusão de estatutos. O facto prende-se com a identidade: a identidade social é a soma de toas as relações de inclusão ou exclusão relativas a todos os grupos constitutivos de uma sociedade. Conjunto dos critérios que permitem uma determinada definição social do indivíduo ou do grupo, que permitem situá-lo. Por definição a identidade social é predominantemente atribuída; identidade consensual dada por uma parte dominante a todos os demais e a si mesma, é conhecida pelos indivíduos que geralmente aceitam e participam nesta definição. Constituem um importante componente consensual das definições de grupos de pertença atribuídos pelos grupos sociais pertinentes; portanto, a visão subjectiva que um indivíduo tem da sua identidade social coincide, em grande parte, com a sua identidade social. A coesão de uma sociedade pode ser avaliada em função do consenso existente entre todos os seus membros acerca de um conjunto de identidades sociais. A nossa época histórica é marcada por uma rápida erosão dos estatutos e, portanto, das identidades sociais, por mutações e discriminações. Uma aguda crise anuncia abalos de grandeza imprevisível.

Deste modo, muito embora as ideologias satisfaçam, ou exprimam, os interesses desta ou daquela classe ou estrato social em detrimento de outras, existe nelas um largo e profundo resíduo de tradições, habitus, crenças, que explica porque razão uma classe social dominada possa ambicionar promessas que a ideologia dominante contem. Chamo-lhes excedentes simbólicos. Tais promessas podem pertencer às origens dessa ideologia (religiosa, política), ou serem veiculadas pelos mandantes de modo a granjear consentimentos; os dominados reconhecem os governantes e reconhecem-se a si mesmos. A ideologia, incluindo a doutrina política, não é mera propaganda propositada, embora se desfigure normalmente em pura propaganda. Temos, por um lado, a crença consentida pelos dominados, e a crença dos dominantes que não admitem outra que lhe seja superior e inconveniente. Em muitos casos, é a mesmíssima ideologia. Neste caso, como em todos, quem pode, alcança mais depressa o consentimento. Domina quem souber e puder assenhorear-se dos rituais de reconhecimento.

As ideologias fundamentais «são definidas como o mecanismo básico das cognições sociais de um grupo, isto é, como sistemas de normas e de valores que controlam a coerência e o desenvolvimento de atitudes sociais mais específicas »(...)a partir do momento em que esses padrões fundamentais de conhecimento, de atitudes e de ideologias estão devidamente enraizados devido à repetição das notícias e outras formas de discurso público, eles «actuarão» mais por si sós quando as pessoas têm de avaliar os acontecimentos noticiados. Depois de algum tempo passado, há pouca necessidade de manipular de forma visível o conhecimento específico e as opiniões dos leitores em cada um dos casos. Uma vez dados os «factos» (cuidadosamente escolhidos), ainda que apresentados de uma forma aparentemente objectiva, os litores produzirão eles mesmos os modelos preferenciais das elites e podem mesmo agir de forma conforme: um consenso activo substituirá um consentimento passivo ou tácito. Neste caso, o controlo ideológico é virtualmente total, ou «hegemónico», precisamente porque o texto e a fala persuasivos passam a não ser vistos como ideológicos, mas como verdades auto-evidentes, como é o caso do discurso dominante nos Estados Unidos. Por outro lado, nos países ex-comunistas da Europa do Leste, o discurso oficial, por ser visto como obviamente ideológico, tinha um poder persuasivo muito limitado.»  

Quando o conhecimento dá saltos, normalmente as literaturas deduzem efeitos e consequências desses avanços. Umas vezes utopias, outras, distopias.  (mais ou menos umas ou outras, conforme os períodos históricos) Salvo raríssimas excepções, as literaturas não avançam mais do que as ciências; o mesmo se aplica relativamente às filosofias que perseguem os avanços científicos.

O pensar – enquanto atitude e conteúdo do filosofar- não sossega o espírito, nem do próprio, nem dos outros. O pensar não depende de uma «bela interioridade», mas de uma potência que colide com a potência interior. É a interioridade que começa por ser desassossegada, para, em resposta, re-flectir sobre o exterior. É a primeira forma do paradoxo. Não é a filosofia que é paradoxal, pelo simples gozo, é a vida que o é. Sem gozo algum. O indivíduo contemporâneo vive com a sua interioridade separada do exterior; é necessário conectá-la. No pior dos casos o indivíduo contemporâneo não possui interioridade. Neste caso a potência exterior não o abala: sente-se em casa sua.

Todas as filosofias reivindicam o estatuto de «científicas», quer com este nome, quer com a designação platonizante de «verdadeiras». O que torna o assunto mais complicado é que as filosofias eram elas que continham quase sempre ideias científicas (matemáticas, físicas, biológicas), que foram elas que geraram muitas vezes a actividade e o espírito científico, ou que o promoveram Tanto quanto o combateram e desvirtuaram. Neste caso, não é apenas a Ideologia (no sentido negativo) que é responsável, mas também as filosofias e até, não esquecer, as ciências. O fenómeno da Ideologia (em sentido negativo) não é externo às outras actividades humanas: encontra-se no próprio interior do espírito científico.

Por conseguinte, se designarmos o espírito científico como a aproximação progressiva de uma racionalidade pura e verdadeira, o seu paradigma ou resultado, havemos de admitir, porém, que a racionalidade contém a ideologia. Não é penetrada de fora para dentro por esse ente exógeno: ela mesma o gera. Não há maneira alguma de nos libertarmos de determinados obstáculos epistemológicos. Não existirá jamais racionalidade pura e sempre portadora de verdade não interessada. A racionalidade não é una e única: existem diversos modos de racionalidade; mesmo no interior da comunidade científica, mesmo no interior das ciências. A racionalidade que imita o modelo geométrico ou matemático é uma, não a única, nem necessariamente a melhor para todos os casos.

Apresentam-se-nos duas classificações opostas sobre a racionalidade: uma, designa-se causalista; a outra, evidencial. A primeira mostra-se mais próxima do bom senso: em grande medida o que é racional avalia-se pelas consequências: ser racional é medir antecipadamente as consequências ou os efeitos de diversas opções. Contudo, a boa avaliação prévia apresenta-se-nos o mais vezes como a mais evidente. O que fica por saber é se ambas as soluções são as mais vantajosas.

A racionalidade utilizada pelo Buda(ou por quem escreveu por ele) não é inferior à racionalidade de Einstein. A racionalidade espinosana, isto é, o modo como Espinosa orientou a sua Razão, é porventura para alguns bastante mais acertada do que muitos tratados científicos (e não só do seu tempo). A razão subversiva de Marx, isto é, o modo como ele subverteu a razão habitual (não só a observação comum, como as teorias económicas e as melhores filosofias), demonstra que a humanidade é capaz de imprimir diversas orientações, e deu usos diversos à razão, que se podem classificar, grosso modo, em dois: para explicar e compreender, ou para justificar e convencer.

Por sua vez, a racionalidade subversiva marxiana (do próprio Marx) foi utilizada por Estaline e o PCUS para impor uma única racionalidade, um determinado marxismo-leninismo, uma doutrina contida nos relatórios dos Congressos, que não a do próprio Marx, e, assim, justificar a ditadura e o seu rol de crimes e violações, e estímulos «espirituais» para aumentar a produtividade em condições duríssimas. Na ideologia, o dogma da sucessão de diferentes modos de produção ( um comunismo no início e outro no termo) e, portanto, da revolução como substituição –de modo «fatal» ou messiânico- de um modo de produção por outro, foi fabricado pela Terceira Internacional (1919-1943)- Internacional Comunista ou Comintern- «iluminada» superiormente pela vulgata estalinista intitulada O materialismo histórico e o materialismo dialéctico. Esta dogmática converteu o pensamento marxiano numa utopia (eficiente de resto: tanto para as conveniências dos estalinistas, como pelo efeito mobilizador sobre milhões de indivíduos). O problema que se passa com a utopias é que as há abstractas e as há concretas. Distinguir umas das outras, é exactamente a espinhosa questão de se saber o que é realmente racional. Simultaneamente «universal», ético e verdadeiro.

 Os países de regime capitalista, por sua vez, fizeram outro tanto, fosse inclusivamente através de ditaduras (nazi- fascistas, militares, populistas, etc.), seja, como agora, através de regimes electivos.

É a isto que eu chamo de Razão Consensual. É isto que eu analiso nestes ensaios.

Todas as organizações sociais (incluindo as suas instituições) desejam perdurar. Com tal finalidade os seus membros tendem a assemelhar-se, a agrupar-se conforme interesses e objectivos comuns; a identificarem-se e, simultaneamente, a diferenciarem-se. As sociedades complexas são-no precisamente devido à grande diversidade de grupos e de instituições, ou seja, dos interesses. Com vista a conter a pluralidade de modo a não pôr em causa a coesão social, e reforçá-la tanto quanto possível, as organizações sociais criam regras e rituais, doutrinas e filosofias. Consensos e consentimentos. A base das sociedades é a economia, um determinado modo de produção que tende a que o seu império exclua todos e quaisquer outros modos de produção. A apropriação dos recursos e a acumulação das riquezas, remontam às origens da Espécie, apoiam-se em disposições inatas, observáveis noutras espécies (conquista e patrulha constante dos territórios, regras de hierarquias de posse e domínio). As inclinações agressivas destinam-se a defender os recursos e a sua distribuição.

A produção e apropriação dos recursos (que geram novos recursos: matérias –primas, meios de produção, apropriação e distribuição), excedentes acumuláveis, introduzem progressivamente novas formas de divisão do trabalho e novas modalidades de expropriação do trabalho vivo (desde a escravatura ao proletariado). Estes fenómenos, que se autonomizam relativamente à base biológica, geram conflitos, que podemos designar –cautelosamente- de causa-efeito, figurados nos grupos sociais que se encontram nos pólos antagónicos (expropriadores, expropriados) e na competição entre os grupos dominantes. O «instinto» gregário da Espécie não excluiu nunca, desde as origens, as divisões, os conflitos. Neste sentido amplo, a História da espécie humana foi sempre a história da «luta de classes» (no sentido lato e não exclusivamente no sentido moderno das classes sociais surgidas com o desenvolvimento das sociedades de mercado e capitalistas). Pela mesma ordem de razões, a História foi sempre a história dos consensos (ou tentativas), isto é, de coesão social, mas, sobretudo, da permanência dos sistemas particulares de dominação.

A religião , surgida dos medos e da eterna tentativa de explicação do mundo e da vida subordinada à necessidade de controlo e previsão, apresentou-se desde logo simultaneamente como aliada do Poder dominante e como, ela mesma, um poder dominador. As doutrinas laicas, ou filosofias, tentaram competir com ela e apoderar-se do Poder, mas durante milénios não o conseguiram, claudicaram e subordinaram-se às instituições que detinham o poder económico e político. O saber, o conhecimento (incluindo o pseudo-conhecimento), tornou-se simultaneamente garante de outros poderes e ele mesmo uma fonte de poder. A apropriação do conhecimento (místico, mítico, científico) faz parte integrante da apropriação dos recursos disponíveis. Portanto, a linguagem e os símbolos, são apropriáveis e expropriáveis, e sempre o foram. Ou ainda, no sentido lato, a cultura separou-se, desde as origens, em cultura «popular» e cultura «erudita»: a filosofia de Platão foi, fundamentalmente, uma crítica das tradições populares (dos saberes empíricos) e aquela que , através de uma elaborada teoria dos valores e dos géneros de conhecimento, separou até hoje as duas culturas. Quando, mais tarde, a burguesia produziu o conhecimento científico, o regime feudal-clerical percebeu que o seu poder absoluto estava ameaçado (paradoxalmente a filosofia mais controvertida foi a de Aristóteles, não a platónica).

As religiões e as doutrinas filosóficas, as artes, os ritos e as cerimónias, a cultura de modo lato, participaram (e participam) na história dos conflitos, tanto do lado dos grupos dominantes que controlavam (e controlam) as rédeas do poder, como do lado dos dominados. As ideias não constituem seguramente um mero «reflexo», porém não possuem uma vida independente dos conflitos sociais. Visam ora o conflito, ora o consenso. Quem domina não deseja sempre e necessariamente o consenso: os conflitos ora porque por vezes são inevitáveis, ora porque em outras são meras estratégias, são introduzidos e explorados pelas classes dominantes. Os imperialismos e os colonialismos (velhos de milénios) traduzem esta asserção. A guerra, sejam quais forem as suas formas mais ou menos violentas, é um denominador comum da história bio-social da espécie humana.

Contudo, não é o «instinto» biológico que determina a guerra (embora a agressividade o seja), tanto mais porque a disposição para a cooperação é também uma inclinação da espécie. A guerra (conquista das instituições de poder, saque e rapina, expropriação e controlo dos excedentes) foi determinada pela escassez de bens disponíveis. As relações de produção adquiriram autonomia relativa, não deixando de ser parte integrante do modo como se produz, e isto é visível quando as relações de produção se guerreiam entre si pelos excedentes produzidos. As relações de poder (status, hierarquias, valores jurídicos e outros) estão inscritas nas relações de produção, tal como estas o estão no modo de produzir.

Neste quadro geral dos conflitos (bio-psico-sociais) as ideias desempenham um papel determinante. É pelas emoções-sentimentos-ideias que se geram os ódios (estereótipos e preconceitos), as invejas, os ressentimentos, os apetites. Mas também as ficções amáveis e esperançosas sobre a paz perpétua, o amor universal, a abundância geral, a cooperação exclusiva, a propriedade comum, a igualdade e a justiça social. É pelas ideias, com elas e por causa delas, que se geram os conflitos e os consensos. No entanto, tal não significa que as ideias sejam independentes quer dos corpos, quer dos interesses e motivações de carácter social, quer do modo como se produzem os bens materiais e simbólicos. Por conseguinte, uma correcta história das ideias não explica coisíssima nenhuma se não buscar as raízes na materialidade da vida física e social. Se assim não fosse as ideias não somente não nasciam, como não obtinham efeitos materiais. As ilusões idealistas brotam do modo como não compreendem as diferenças. Passa-se isto tanto naqueles que desligam as ideias dos corpos (com as suas disposições inatas ou, pelo menos, enormemente resistentes à mudança), como naqueles que reduzem tudo a puros sociologismos.

Falando de ideias, falamos de doutrinas religiosas, políticas, filosóficas, artísticas. E falamos também, evidentemente, das ciências. Nada nem ninguém é absolutamente neutro porque está comprometido, envolvido pela teia da política, da moral, da economia.. A objectividade é indispensável, mas a neutralidade é dispensável. O mito da «neutralidade» - do espírito científico, por exemplo no Direito- foi forjado pela burguesia para ocultar a sua natureza de classe. É um «consenso» que vale tanto como a ideologia da «Liberdade, Igualdade e Fraternidade». Ou seja, vale o que vale. Apesar destas certezas, exigimos neutralidade (isto é, imparcialidade) ao juiz, ao docente, ao governante...Ao cientista que deve provar o que afirma.

A crítica da ideologia é condição necessária de toda a crítica às teorias contemplativas, incluindo os empirismos que se baseiam nos «factos» e se limitam a interpretá-los. A Ideologia Alemã é uma obra muito útil para actualizarmos a crítica de Marx à consciência que ignora (ou mistifica) as condições histórico-concretas da sua formação. A condição primeira foi a divisão do trabalho manual e intelectual. Ao mesmo tempo que a cultura, a consciência, as ideias, se constituíram como uma força-um poder-autónomo, mas se desligavam da prática. Este paradoxo originou a ideologia e o desenvolvimento de uma «camada» de ideólogos, que se auto-mistificam antes de produzir mistificações. O «corporativismo» académico é um desses epifenómenos; assim como o papel desempenhado pelos «funcionários públicos», convertidos e sucessivamente reconvertidos ao papel de representantes e mediadores: a ideologia possui precisamente esta função; pelo seu destino serviriam para «amortecer» os conflitos inter-classes. Contudo, as contradições instalam-se entre essa massa e o Estado. Também o Estado, primeiro fabricante de abstracções (a sua função é a «representação e mediação»), tinha como destino fabricar «consensos», e todavia...

Não é somente a ideologia política que fabrica os consensos, adequados ou mistificadores, é a cultura. Não existe cultura sem linguagem, e ambas exprimem a divisão do trabalho e, consequentemente, as desigualdades sociais. A divisão social do trabalho e das classes é uma condição ou estrutura do pensamento

 

O conhecimento é o «espírito» da Práxis

 

É comum nos povos mais diversos sentimentos de expectativa provocados pelos avanços do conhecimento (nas suas mais variadas formas ou géneros, mas, sobretudo, nas suas formas capazes de aplicação material). Sentimentos que se diferenciam distintamente em medos e em esperanças (ambas induzidas normalmente por ideólogos). Prometeu e Adão foram castigados pelo Conhecimento que obtiveram (ou roubaram aos deuses), e em uma determinada versão do Fausto, de Goethe, também este é castigado. O Conhecimento encerra perigos, os hábitos resistem às mudanças, a verdade assusta. E isto é geral e universal em todas as camadas sociais, embora particularmente nas organizações dominantes. Nas esperanças também, nos casos em que o conhecimento se traduz quase de imediato, ou pode traduzir-se, em efeitos práticos. Prometeu é aqui revigorado, símbolo da humanidade empreendedora, larga e diversamente tratado nas literaturas universais. Para o primeiro caso dirigem-se as distopias; para o segundo, as utopias. E sempre as transformações técnicas provocam mudanças nos costumes e nos valores.

As classes dominantes (no singular ou no plural) não se manifestam sempre contra os avanços do conhecimento. Bem pelo contrário, são numerosos os casos em que são elas próprias, pelos meios que somente elas dispõem, a promover os progressos. Sucede, contudo, que esta conduta não é isenta de diferenças e contradições: as classes dominantes do Egipto Antigo assim como promoveram o conhecimento, também o bloquearam. A Grécia Antiga produziu uma genial civilização que, no entanto, desprezou ideias e técnicas que colidiam com a base escravocrata e a servidão que permitia aos homens «livres» a riqueza cómoda e o ócio boémio. Paradoxalmente, foi este ócio que permitiu que a filosofia, a democracia e a arte, florescessem...

O capitalismo desenvolveu-se auxiliado pelas transformações tecno-científicas. Neste sentido, a ciência é um dado inquestionável da civilização de orientação capitalista. Os cientistas eram burgueses regra geral, ainda que apoiados muitas vezes por mecenas da mais elevada aristocracia, embora as monarquias, quer fossem mais liberais ou mais absolutas, promoveram, não poucas vezes, os avanços tecno-científicos, ao contrário do que se pensa. Inclusivamente na Idade Média, isto é, no apogeu do feudalismo agrário, verificaram-se  avanços técnicos de enorme importância. Todavia, é com o sucesso do modo de produção capitalista, que a Técnica e a Ciência se desenvolvem exponencialmente.  O sucesso deste novo modo de produção não seria possível sem uma base técnica em permanente adaptação. Se o capitalismo possuir «sete fôlegos», como os gatos, esse é seguramente o maior de todos. A espoliação brutal, o saque, a rapina, a guerra, são dados inquestionáveis de toda a história da humanidade. As técnicas, sucessivamente revolucionárias, ao serviço da gatunice, constituem um dado inquestionável da civilização capitalista.

Neste sentido (e não vejo outro), as ciências interessam ao Capital. Ou seja, a racionalidade, incluindo a mais elevada racionalidade das ciências puras, interessa ao Capital. Metaforicamente falando, Prometeu (ou Adão e Fausto) ressurgiu sob a forma do Capital. Abusando da alegoria digo que o «Fogo celeste» é a comunidade científica que o empunha, gloriosa e promissora. Quem se aproveita é o Capital. É ele que governa soberanamente a comunidade do «Fogo», da Inteligência, umas vezes liberalmente outras vezes ditatorialmente. Sempre controlando. Financiando-a ou fechando a torneira. A independência da comunidade dos cientistas e dos técnicos é um mito. E acreditar nela, ou que nela se forja uma nova «classe revolucionária» é uma utopia abstracta. Se o proletariado somente é «classe» quando a consciência comum emerge, da comunidade dos «sábios» não emerge consciência revolucionária alguma. E, contudo, realizam revoluções todos os meses. E, todavia, transportam o progresso e constituem um horizonte luminoso para o qual se dirige a humanidade. O «Fogo», nas mãos do Capital, é o fogo literal: as armas prodigiosas que fornecem todo o poder, em última instância, a produção incessante de bens materiais e imateriais, a reprodução incessante do capital. Jamais sucedeu tamanho fenómeno na história (recente, mas que já vai longa) da Espécie. Platão bateu-se pela aliança dos tiranos com os filósofos, Erasmo de Roterdão acreditou na «república dos sábios». Aí temos diante de nós a utopia de Platão. Aí temos a afastar-se de nós a utopia do Príncipe da Renascença.

Porém, todavia, contudo, Prometeu foi castigado. Não tanto porque oferecesse aos homens o supremo poder que somente aos deuses pertencia. Os deuses não existem, são projecções da mente humana. Adão não foi castigado porque provou do fruto da Árvore do Conhecimento do Bem e do Mal: Deus não existe, é uma figura antropomórfica. O que existe, e sempre existiu, e existirá, é o Trabalho. O Pai Adão criou a humanidade no exacto momento em que provou o saber, isto é, a actividade consciente, a inteligência criadora. Os gregos lobrigaram nos tempos anteriores ao Fogo de Prometeu, uma inumana humanidade assustada e faminta, escondendo-se no topo das árvores; o filho dos deuses compadeceu-se e trouxe-lhes a luz, isto é, as técnicas. No entanto, os gregos castigaram-no (isto é, os deuses que eles mesmos inventaram). Porquê?

Os progressos científicos provocam reacções contraditórias. Não exclusivamente fora da comunidade dos cientistas, mas no seu próprio interior; muito embora os ataques mais cerrados e radicais venham do seu exterior, de filósofos e teólogos na primeira linha, não são raros os casos em que cientistas bloqueiam outros cientistas. Precisamente porque todos eles, uns e outros, não largam mão facilmente do capital simbólico e do habitus. Vindos de filósofos os ataques ao que costumam designar de «tecno-ciência», confluem na tese principal de que desta orientação prática que a ciência está a singrar pode resultar, ou resulta já, uma perda da «espiritualidade», ou da «ética», ou em desastrosos efeitos sobre o ambiente e o clima, ou ainda sobre um determinado tipo de vida (bucólico, de tempos mais lentos, mais convivial, etc.). Conhecendo cada uma dessas filosofias, nada nos inclina à atitude «corporativa» de defesa da Filosofia (do seu papel crítico, independente, e outras «tretas»). Para aquém dos argumentos por vezes penetrantes, determinadas filosofias famosas não adiantam um passo em benefício da emancipação humana, incluindo a emancipação relativamente às Corporações económico-financeiras que controlam a tecno-ciência. Por outro lado, algumas delas, porventura as mais «populares», apoiando-se com autoridade retórica em banalidades (e até asneiras no ponto de vista científico) ou em teses velhas de séculos (que se filiam muito mais na mística platonizante, do que em Aristóteles), entrincheiram-se num «Ser esquecido» que ninguém sabe o que seja, numa «ecologia holista» que mistura alhos com bogalhos, ou numa «cultura estética e humanista» que ignora sobranceiramente que a racionalidade científica ajudou e muito a que ela se erguesse: o Iluminismo- século dezoito- constituiu uma forte impulso da racionalidade tanto da tecno-científica como da cultura em geral e da estética; não é por acaso que surgem ataques à herança iluminista...

Apesar disto, nunca devemos deitar fora o bebé juntamente com a água suja. A comunidade científica não está de todo isenta de pecados capitais (nos dois sentidos), não é independente, não é uniforme, é também co-responsável pelos desastres ambientais, pela corrida aos armamentos, pela «lavagem ao cérebro» das massas humanas dominadas. São responsáveis pela degradação ambiental tanto os cientistas como os «representantes do povo» e os utentes (inclusive nos países soviéticos).

O problema não se encontra, por conseguinte, na Ciência e na Técnica: nem numa, nem noutra. Há quem separe as duas vertentes e oponha «pensantes» a «executantes»: sem dúvida que a divisão social do trabalho existe e sofisticou-se, mas elogiar a ciência (pura?) e desprezar a Técnica (a «má» da fita) é uma falácia que revela bem, em certos casos, a ignorância altiva de certos filósofos. O problema reside nas fontes e nos mecanismos de controlo de ambas. Nos fins imediatos, e na selecção das prioridades. No Lucro soberano que comanda as operações. Na política imperialista e colonialista. Como residiu em célebres «Planos Quinquenais»...

Reside também no imperativo categórico que a  mentalidade científico-técnica impôs. No modo como às vezes exclui todas as outras formas de racionalidade. Como se ela esgotasse todas as formas, actuais e possíveis, da emancipação humana e da «cultura integral» de cada indivíduo. E, sobretudo, porque em nome da Razão (essa) se descriminam civilizações autóctones, alimentando-se racismos e xenofobias, e justificando-se invasões e guerras de rapina. Não foram poucos, nem são, os cientistas que divulgaram doutrinas racistas pseudo-científicas. E até houve quem, em submissão a objectivos políticos e interpretações que se reivindicavam de um «marxismo científico», aplicasse planos desastrosos e perseguições a pessoas e ideias.

No extremo oposto, devemos recordar os regimes que liquidaram pura e simplesmente a «intelectualidade», como o dos «khmers vermelhos», que tanto contribuíram para o descrédito dos ideias comunistas.

 

A questão do Fundamento

 

A questão fundamental reside na descoberta de Marx: o modo-de-produção, a sua natureza contraditória, as suas tendências lógicas, a essência da totalidade social. O carácter expropriador da apropriação privada. É esta outra racionalidade científica que incomoda a ideologia dominante, a ciência dominadora porque instrumento da ideologia dominante. Incomoda porque tem efeitos práticos.

A asserção fundamental não reside no indivíduo e na sua circunstância; reside  na totalidade da formação social. No campo social, no habitus, e na essência do Capital.

Tenho para mim que Marx nunca abandonou o sentido negativo que desde jovem atribuiu à Ideologia; apesar da reviravolta operada por Kautsky, Lenine, Lukács, Gramsci, que construíram uma Ideologia positiva(que não engana nem aliena; pelo contrário, desengana e liberta). Prefiro o sentido que Marx lhe atribuiu, tanto mais porque concomitantemente com a propaganda de uma ideologia positiva se conserva a ideia de que é, ao mesmo tempo, científica. A natureza negativa da Ideologia gerou uma positividade (antagónica, é claro), a positividade transmudou-se em pura ciência (à maneira da santa trindade hegeliana): onde sobrevive a Ideologia? A III Internacional soube gerir muito bem estas inovações e contradições. A mim o que me parece é que a ideologia, na medida em que absorve conhecimentos oriundos da ciência e da filosofia, pode, do mesmo modo, reconhecer que as contradições, objectivas no plano social, subjectivas no plano das consciências, são possíveis de resolução pela práxis revolucionária. O que é verdadeiro no plano do conhecimento científico (sociológico, antropológico, etc.) pode vir a ser reconhecido pela consciência comum se para tanto for educada. A práxis, segundo Marx, inclui a inteligência e as suas criações. A cultura é a própria práxis. Separar a cultura em teoria e aplicação, com base na diferença entre «intelectuais» e operários (distinção que está ameaçada pelos novos fenómenos), é hoje uma hábito tanto ou mais discutível que a teimosia em separar a ciência da técnica. Marx, que eu saiba, nunca separou. Marx foi o intelectual, o cientista, o homem da cultura, que descobriu a essência do capital, as contradições que tornam a sua derrota uma possibilidade (não uma fatalidade, o que seria uma crença ideológica) por via das potências humanas exploradas e expropriadas. A cultura é um motor do desenvolvimento, e, provavelmente, sempre o foi. Com ela se domina, com ela se liberta.

A Ideologia, no sentido negativo, não exprime apenas uma falsa-consciência. Oculta o mais das vezes uma realidade contraditória e tende sempre a operar uma inversão da realidade objectiva. Todavia, não é a fonte de todos os erros, e nem sequer está sempre em erro. Quando fabrica mentiras ou acredita nelas, nem por isso se classifica de erro relativamente a um raciocínio verdadeiro que não alcança. A ideologia burguesa não é um erro da Burguesia. Os indivíduos são movidos pelo Desejo, o qual se transforma em interesse. Paixões e a Imaginação que as organiza, e movimenta a acção. Paixões que são determinadas pelo corpo (invariante e socializado) que age num determinado campo social conforme as posições que lhe são distribuídas, que interioriza habitus (regras, hierarquias, expectativas). Tenta evitar a si mesmo o mal que sucede aos outros e invejar o bem que os outros possuem. Não é pela «vontade» que a mente pode opor-se às paixões, apenas um desejo mais potente pode combater as desvantajosas (às vezes com fármacos ou com utopias).

São as regras estabelecidas, e obedecidas, que convertem uma actividade em actividade «desinteressada». São os discursos ideológicos que a Economia gera que criam os «universais», a «classificação» e os «direitos do homem». Com eles uma casta dominante pode conservar-se, mas não eternamente. As ideologias tornam-se uma espécie de «faz-de-conta». Não veiculam exclusivamente erros, mentiras. São, sobretudo, uma hipocrisia. Acredita-se mas também se finge acreditar. Há nisto um género de acordo explicito e implícito. O capitalista sabe que explora, mas finge que «dá emprego», o «empregado» finge que não vai ser explorado até à medula se o outro puder, porque faz parte do acordo não dizer a verdade no acto do acordo. O político que proferisse na televisão o discurso da verdade (ainda que convenha aos que lá o puseram que ele acredite no que diz) seria corrido do posto. Se a política é hoje um «espectáculo», a Ideologia sempre o foi. A religião é uma antiquíssima encenação (eficaz, como se vê), a Moral, a Política. O teatro imita a vida. È algo similar ao que sucede com os espectadores do cinema e das telenovelas: todos sabem (tirando os imbecis) que aquilo é «a fingir», «a brincar»...mas poderia ser verdade. Nas ditaduras políticas todos fingem muito. A ideologia é o discurso dos disfarces, como os sonhos. Não existe mentira, nem erro, nos sonhos, mas disfarce. Denegação do sujeito consciente. A Economia Política roda sobre esses eixos. Economia de mercado, de marketing, se não vende está lixada. Constrói cenários e semeia necessidades. Parece ilusionismo, magia. De facto, produz fetiches, enfeitiça os sentidos. A Burguesia «despiu da sua aparência sagrada todas as actividades até aqui veneráveis e consideradas com pia reverencia», pôs a nu os reais valores produzidos pelo homem, mas sacralizou a mercadoria. Acima de tudo, consagrou o Santo capital. Convive bem com os outros Santos. É necessário oferecer-lhes sacrifícios. Um só grande capitalista representa a miséria de muita gente. Contudo, venera-se, é filantropo, roga-se para que ele não se «desloque» para a Índia.

A questão da existência ou não de um sentido positivo relativamente à Ideologia, é demasiado importante e politicamente sensível para que não mereça mais um comentário que esclareça a tese que defendemos: Marx analisou o negativo da Ideologia em textos que somente foram conhecidos muito depois da sua morte; não se encontra nos seus escritos nenhuma tese desenvolvida e consistente sobre a eventual legitimidade de uma ideologia revolucionária da classe operária (nem nos e para os programas dos partidos operários, como se verifica na crítica do Programa de Gotha). Apesar disso, teria sido provavelmente inevitável que a Ideologia se dividisse em positiva e negativa, porque a filosofia da práxis (que se deve a Marx) teria de ser veiculada para grandes massas de modo acessível e explicitada em programas doutrinários. O Manifesto do Partido Comunista, apesar de ter sido escrito num estilo que pretendia alcançar o proletariado, não foi suficiente, ele próprio necessitava de adaptações. Intérpretes dos textos então conhecidos surgiram e foram mais ou menos bem sucedidos.  Controvérsias estalaram. A interpretação de Rosa Luxemburgo foi, como se sabe, das mais controversas, a versão de Lenine sobrepôs-se, principalmente através dessa obra-prima de clareza e concisão que é «As três fontes e as três partes constitutivas do Marxismo» ((1913). Todavia, é um livro medíocre, mas escrito por Estaline, que se converteu em catecismo. Ou seja, em doutrina ideológica. O dogma instalara-se. Eis um exemplo do que é a ideologia...

O que encontramos no Manifesto é a tese segundo a qual «a consciência social de todos os séculos, a despeito de toda a multiplicidade e diversidade» se move «em certas formas comuns, em formas de consciência » marcadas pelo «facto comum a todos séculos» da «exploração de uma parte da sociedade por outra»; formas de consciência «que só se dissolvem completamente com o desaparecimento total da oposição de classes». E isto porque não é preciso «uma inteligência profunda para compreender que com as relações de vida dos homens, com as suas ligações sociais, com a sua existência social, mudam também as suas representações, intuições e conceitos, numa palavra [muda] também a sua consciência?». Pois não, não é preciso realmente uma inteligência profunda, mas verificámos depois que as interpretações foram diversas e díspares, nas estratégias, sobretudo, de realização dos desígnios...

Não existe, a bem dizer, uma «superestrutura ideológica», seja ela agente passivo da «infra-estrutura», seja ela agente activo. É uma mera noção que agrupa coisas diferentes, destinada a distinguir o que nelas não pertence à esfera da produção fabril de bens materiais e da troca. A Economia é sempre Política, não se aplica apenas a uma área de investigação. Marx usou, de resto, o título de Crítica da Economia Política. A supra-estrutura é o conjunto de «aparelhos», expressão de Althusser que se esforçou por quebrar os determinismos, ou sub-sistemas, que visam controlar as relações de produção dominadas, regular os mercados de bens e capitais, regulamentar as relações laborais, produzir leis e aplicá-las, proteger policial e militarmente os bens e os interesses dos estratos dominantes. É o Estado com todos os seus órgãos. Porém, nem todos, nem tudo, está forçosamente nas mãos do grande capital (pode-se dizer que, em certos casos, ainda não está). E porque assim é, o grande capital necessita de convencer, seja em democracia, seja em ditadura política. As democracias contemporâneas, embora dominadas pelo grande capital, permitem espaços públicos (falando à maneira de Habermas), ora porque são conquistados pelos partidos da oposição, pelas opiniões públicas, ora porque lhes são de algum modo necessários para criar uma atmosfera na qual os consumidores se sintam «livres». É esta a finalidade fundamental da chamada supra-estrutura ideológica (que não se confunde com tudo que é Cultura). Ou seja, a sua finalidade principal é, enquanto produtora de «ideias», fabricar o consentimento. A «indústria da cultura» é a sua epifania.

É necessário que entendamos a importância da proliferação dos poderes. Todas as organizações sociais, desde as primeiras civilizações, desde os antigos egípcios, chineses e maias, estruturavam-se em modelos de hierarquias, nas quais superientendia o poder centralizado, e pelos quais se distribuíam diversas escalas de status e poder. É esta face que caracteriza o corpo das sociedades. A força das sociedades capitalistas hodiernas localiza-se aqui. No poder autárquico (qualquer que ele seja), por exemplo, manifesta-se claramente o valor do status que, à maneira de um imprinting, promove comportamentos tipificados em todos os pequenos e médios usufrutuários do poder.

As ideias (e as emoções e sentimentos, costumes, etc.) adquirem uma certa vida própria, que explica porque resistem à simples incorporação pelos aparelhos ideológicos controlados. Ideais, promessas, costumes, processos de formação de identidades (comunais, regionais, étnicas, etc.), patrimónios culturais, podem escapar ao totalitarismo real ou tendencial. Ideias geradas em condições diferentes podem colidir com a base económica. Estratos e classes sociais criam ideias que lhes permitem sentirem-se diferentes ou mesmo oponentes das classes dominantes. Com a realidade deste fenómenos o termo supra-estrutura torna-se alargado, difuso, cortado por contradições. A sua utilização tornou-se delicada e não é por acaso que o tem suscitado tantos debates (tal como a noção de ideologia). A bem dizer, foi o desenvolvimento das formações sociais capitalistas, a sua complexificação em termos económicos, sociais, ideológicos, técnicos e científicos, éticos, jurídicos, etc., que ao mesmo tempo que tornou viável continuar-se a falar de supra-estrutura ideológica, tornou delicado, paradoxalmente, o uso do conceito. Sobretudo os avanços civilizacionais das democracias.

Algo semelhante sucedeu com a Ideologia: foi certamente a criação de partidos políticos, com os seus programas, a sua propaganda, as suas doutrinas, os meios de comunicação, fenómenos pouco ou nada conhecidos ao tempo de Marx, que exigiram a concepção de uma ideologia positiva, ou a pluralidade das ideologias. Lenine foi, porventura, quem o percebeu melhor e mais depressa.

  Existem evidentemente instituições sociais especializadas para produzir e reproduzir as ideias que mais convêm às classes dominantes (incluindo as escolas, como já Marx afirmava no Manifesto), existem ideólogos que se dedicam a argumentar a favor da bondade do Capital, pagos para refutarem o socialismo, ou que o fazem porque entre dois males, preferem acreditar que o mal menor é a sociedade que temos, julgando que ainda é reformável. Isto é ideologia. Porque ela é a consciência «comum», mas também a consciência «erudita», «académica», «escolástica».

A ideologia está já na economia. Como a cultura é tanto criação de artefactos, como de símbolos. As relações de produção estão já impregnadas de justificações jurídicas, religiosas, morais. Um jurista poderá afirmar que a sociedade se organiza, da base ao topo, por princípios e noções jurídicas. Um moralista afirmará que a moral (costumes, valores) impregna tudo (Marx, não sendo moralista, via na determinação do próprio valor da força de trabalho um «elemento histórico e moral»). Marx sempre afirmou que o objecto adequado da economia política são as leis que governam a produção e o movimento do valor de troca, isto é, as leis que governam o VALOR (essa propriedade inerente das mercadorias que surge como valor de troca). Os valores são aquisições históricas, culturais, que os indivíduos fabricam e em que acreditam. Constituem o fulcro das ideologias. Um marxista dirá que importa libertar os bens de consumo do império do capital, mas fica a dúvida se sim ou não os valores de uso se «libertarão» do valor de troca. Se o trabalho, sempre penoso na sociedade capitalista, se torna ou não em «travail attractif» (Marx), trabalho essencialmente «intelectual» (idem), ou, pelo contrário, o valor maior virá do lazer, «verdadeiro domínio da liberdade».

O sistema soviético ruiu. Catecismos dogmáticos perderam todo o sentido. Antes de ruir já voltara as costas ao «marxismo soviético». Décadas ante de ruir já tentara adaptar-se para sobreviver.

Não espanta que a ideologia burguesa queira convencer todo o mundo de que não há alternativa. Os ideólogos do Sistema vão cozinhando teorizações de modo a convencer-nos de que o dito cujo pode sempre auto-reformar-se. Pois pode. Mas nunca se viu um período tão pobre de utopias. Nem a U.E. serve já de utopia. Já há muito que não se via tanta barbárie junta, tantos retrocessos civilizacionais. Ao mesmo tempo, tudo parece mais claro: o interesse particular contra o interesse geral, a dominação egoísta e brutal das classes dominantes, os negócios sujos, a sobre-exploração, a guerra de rapina, as mentiras dos ideólogos e dos governantes, o Estado como ditadura seja qual for a sua aparência democrática e consentida. Contudo, a sociedade «do espectáculo» diverte e aliena. As mercadorias abundam e a boca é maior que o prato. Os de «cima» estabelecem consensos, os de «baixo» vão consentindo. Até quando? Até quando a ideologia fatalista governará o pensamento comum?

Concluamos em forma de teses reduzidas ao osso: O conceito nuclear da teoria de Marx é o dos modos de produção. Qualquer interpretação que defenda o determinismo da base económica, ou a autonomia dela, é inadequada. A base económica, por si só, não move a História, nem muito menos segundo um modelo apriorístico e fatalista. Os papéis desempenhados pelos indivíduos concretos em contextos concretos, o Desejo, as paixões, os hábitos, o conhecimento, os valores, numa palavra: a subjectividade, constituem forças que garantem a inércia ou a mudança. A filosofia de Marx é uma filosofia da Práxis, um materialismo Prático, e não um materialismo contemplativo. Nem a Consciência (as ideias, a Razão), nem a base económica, encerram qualquer teleologia em direcção a um final feliz ou catastrófico. As relações de causalidade interagem com o acaso e até a imprevisibilidade do agir humano. O investigador explica, não profetiza como um «ideólogo». O curso das coisas depende da percepção dos actores (passivos e activos), do conhecimento que possuem. A percepção, por sua vez, depende do valor que atribuímos às coisas e aos acontecimentos. O conhecimento social (psico-social) inclui uma determinada «psicologia popular» que enforma as mentalidades; nestas intervém a Ideologia. A ciência a técnica influenciam-se mutuamente (a tecnologia impulsiona a ciência). Ambas são impulsionadas pelo Mercado, e caem sob o controlo do grande capital, das multinacionais. Neste contexto desenvolveu-se uma razão instrumental que tende a excluir outras formas de racionalidade. Uma orientação fundamental da racionalidade é ético-política. Por conseguinte, a crítica da Razão instrumental é a crítica da ideologia que advoga sem crítica o desenvolvimento acelerado da tecnologia, isto é, dos meios de produção, crendo que este processo provocará transformações nas relações de produção. A Razão Crítica vê, pelo contrário, outras alternativas. Também aqui se pode dizer que os fins não justificam os meios. A razão crítica é também uma razão ecológica. Encara o entrosamento entre a economia, a política e a ética. O seu desígnio não é opor-se a qualquer forma de consenso e de acordo, bem pelo contrário, procura alargar o espaço público esclarecido e construir plataformas de unidade na e para a luta. Porque existem alternativas para este capitalismo neo-liberal, que coloca o mundo à beira de catástrofes. Não as desejamos, porque delas não virá nenhuma ressurreição. Os indivíduos concretos submetidos mas não submissos de todo (não a humanidade abstracta, não os «universais» abstractos- a natureza humana-o natural socializado) possuem um capital de esperança que torna possível o que agora parece impossível. É precisamente contra essa trama de impossibilidades, fatalismos e aparências, de fetiches, reificações e consentimentos dominados, que a filosofia da práxis aponta a arma da Crítica.

O Materialismo filosófico não é, nem pode ser, uma ciência; se o fosse, seria uma ciência particular; não é admissível uma ciência das ciências; porém, é conveniente uma produtiva interdisciplinaridade. O materialismo filosófico compreende o materialismo ontológico (o primado onto e cronológico do ser físico), o materialismo epistemológico (a independência do Objecto), e o materialismo práxico. O materialismo histórico não é uma ciência (a História), é um conjunto de teses verificadas e justificadas que demonstram o primado da vida material – modo de relações de produção – sobre a vida em geral, particularmente sobre a injustificada primazia das ideias ( a sua génese sem progenitores); na sua origem apresentou-se como uma crítica justificada à filosofia (abstracta e especulativa). A tese central marxiana é a concepção do papel central ocupado pela práxis; não se deve entender actualmente o materialismo filosófico como uma concepção do homem essencialmente oposto à natureza e dominando- a . O homem depende da natureza (ele é natureza) mas esta, na sua origem, não necessitou do homem para nada. A ideia de uma realidade independente, porém cognoscível, e de uma práxis ontológica e epistemológica, constitui o fundamento do materialismo filosófico. A resolução dos paradoxos teóricos não é exclusivamente uma tarefa teórica, a sua resolução só é possível de uma maneira prática.

Não existe confirmação possível de uma Dialéctica da Natureza. É, portanto, uma tese metafísica, excluída de qualquer critério de refutabilidade. Entenda-se: existem fenómenos suja relação é dialéctica, existem critérios dialécticos ao lado de outros critérios; mas o universo não se rege por um Plano Dialéctico, composto pelas famosas «três leis». Se nem a ideia de «evolução» lhe é ajustada, menos ainda a ideia de Progresso (da Liberdade, da Justiça).

A teoria marxiana exige uma fundamentação normativa; portanto, a noção de práxis não deve reduzir-se a um puro pragmatismo sem princípios. O Materialismo Histórico, quer na sua versão estalinista quer neo-hegeliana (não será a mesma coisa?) e o Materialismo da Dialéctica da Natureza são injustificáveis. Entenda-se: o materialismo histórico que impunha um Plano à História Universal. Quando queremos ignorar as causas verdadeiras e encadeamos os acontecimentos conforme os nossos desejos, tornamo-nos deterministas ou profetas. Apesar do valor indiscutível das ideologias utópicas como força persuasiva e mobilizadora, o messianismo é de todo injustificável (as crenças classificam-se em justificáveis e não justificáveis). Uma das tarefas mais valiosas da filosofia é evitar (e criticar) os reducionismos: das ideias à neurologia, da filosofia a uma ciência particular, da natureza à sociedade (ou vice-versa), dos indivíduos concretos e singulares aos modelos e códigos universais, do particular ao geral, da teoria à prática, das interacções impregnadas de subjectividade às infra-estruturas. È aqui que a dialéctica nos pode ser útil.

A teoria marxiana não é um economicismo: a tecnologia produtiva não constitui a Causa, e a superestrutura política e teórica um epifenómeno.

Reducionismos ideológicos deste calibre explicam tendências «obreiristas» e preconceitos contra os «intelectuais». Nenhuma acção (ou instituição) é revolucionária sem uma teoria adequada. Nenhuma teoria lhe é adequada se for convertida num credo messiânico ou possibilista.

Contudo, é admissível uma concepção materialista da história no sentido de que o modo pelo qual a produção é utilizada (a técnica de produção, no sentido amplo) e é organizada (as «relações de produção» ou «relações de troca») constitui o factor objectivo, necessário e fundamental, da organização política ( o capitalismo pós-moderno aí está para o confirmar) e condiciona decisivamente as representações intelectuais de uma época.

Um espírito livre é ele mesmo uma vontade prática de mudar o Objecto que recusa ou limita a potência afirmativa e criadora do espírito.

O trabalho tem sido quase sempre alienado; o que é preciso é transformá-lo em auto-actividade livre (os artesãos, artistas e intelectuais, já a conheceram com melhores dias). Este é o cerne da práxis revolucionária. É a utopia concreta. Não é uma meta ideal, já se verificou e pode conquistar-se em múltiplas actividades pessoais e colectivas, embora somente se conceba a sua realização , ou melhor, o seu processo de realização gradual e efectiva, num Estado que se constitua como associação de indivíduos livres que decidiram unir-se para a obtenção mais racional do bem comum. O comunismo tem aí as suas fontes: existiram, ou existem, diversas formas de socialismo, mas todas elas tiveram, ou não, idênticos princípios comunistas, onde o indivíduo livre não é absorvido pelo colectivismo, pela ideologia monolítica, pela ditadura do Partido único. Se um regime socialista contrariou esses princípios, ainda que em nome de contingências e outras retóricas, não preparou coisíssima nenhuma um modo de existência comunista, por mais feitos gloriosos que haja cometido o seu povo.

 Expusemos alguns dos conceitos nucleares do pensamento de Marx, conforme a nossa leitura, revisitando (estamos sempre a regressar) obras de Marx onde ele as desenvolveu pela primeira vez: A Ideologia Alemã, A Questão Judaica, O Capital, entre outras. Antes de concluirmos falta-nos, porém, um conceito fundamental.

O Feiticismo da Mercadoria

 «O carácter de feitiço da mercadoria e o seu segredo» encontra-se no Livro Primeiro, tomo I, I secção, 1º capítulo, A mercadoria. Inicia-se logo com uma frase que até atinge uma corrente cognitivista nossa contemporânea .« À primeira vista. Uma mercadoria parece uma coisa evidente, trivial»...para acrescentar um vocabulário preciso que nos pode ser utilíssimo para muitas «evidências» deste mundo que é o nosso e já não o dele:« A sua análise mostra que é uma coisa muito retorcida, cheia de subtileza metafísica e de extravagâncias teológicas». Isto é, a mercadoria é uma coisa «justificada» (mistificada) pela ideologia. E mais:« Porém, logo que aparece (a mesa, como exemplo) como mercadoria, ela transforma-se nma coisa sensivelmente sobre-sensível». Sobre-sensível: o sinal de orinia não anula a profunndidade filosófica desta asserção: a transcendência (aparente, sim, mas a aparência é a forma como a essência se manifesta, e, enquanto  isso, é real) com que o realismo comum vê a mercadoria. «É apenas a relação social determinada entre os próprios homens que toma aqui para eles a forma fantasmagórica de uma relação de coisas. Assim, para encontrarmos uma analogia temos de nos escapar paraa região nevoenta do mundo rleigioso. Aqui, os produtos da cabeça humana parecem figuras autónoas, dotadas de vida própria e estando em relação entre si próprias e com os os homens. O memso se passa no mundo das mercadorias com os produtos da mão humana. Chamo a isto feiticismo, que se cola aos produtos logo que eles são produzidos como mercadorias e que, por isso, é inseparável da produção de mercadorias.»

 O valor de troca aparece -no mercado omnipresente e omnipotente- como uma relação de troca com dinheiro. O feiticismo actualiza-se, como um fantasma que surge à noite, pelo dinheiro. O equivalente universal é a mãe de todos os universais, ou bastante deles. Expressão material do valor das mercadorias, representa o poder dos poderes, a máxima potência social. Ainda que virtual (circula uma massa gigantesca de dinheiro nos computadores) é ele que faz mover tudo, matar, corromper, subjugar. «O mundo moderno, ao contrário do que dirá depois Max Weber, não está «desencantado», mas encantado, na mesma medida em que é o mundo dos objectos de valor e dos valores objectivados»

 Pode a realidade aparecer de outra forma, não enfeitiçada? Não pode. E aqui está o fulcro da questão. A relação social que a origina é a coluna vertebral da sociedade de mercado capitalista. Querer suprimir o feitiço (a subjugação) sem suprimir a relação é um movimento típico das utopias abstractas

A Razão quantitativa esconde uma determinada relação social, não porque necessita de óculos para ver melhor, mas porque não pensa nem permite pensar na necessidade (possibilidade) de expropriação dos expropriadores. O mercado capitalista converte os homens em intermediários das mercadorias. Os valores e as relações são coisas (ou relações sociais das coisas). A força de trabalho vivo também. É um número, é descartável e com prazo de validade. Em rigor, porém, a «reificação» é o termo com o qual Marx designa o papel de representação  das relações pessoais pelas relações entre as mercadorias.

 O Capital expõe as duas funções da mercadoria: a do dinheiro – equivalente universal- e a norma. A primeira conduz-nos para uma crítica da racionalidade monetária, da medida, da avaliação; a segunda, para uma crítica do direito. O feiticismo económico, uma face da moeda; a outra face é o direito privado, o feiticismo jurídico.

 Ou a Crítica passa por esta forma de sujeição – consenso, consentimento- quando analisa as diversas formas de sujeição, ou não passa e erra o alvo. As modernas teorias do contrato (algumas seleccionam cuidadosamente os pais das teorias, omitindo Rousseau, para não dizer da ignorância sobranceira com que maltratam Espinosa) constituem um exemplo edificante. Os indivíduos realmente albergam os seus próprios fantasmas, como dizia Lacan. E é por causa deles que fabricam ficções. Uma das quais é denegar a historicidade. A historicidade da mercadoria, das relações sociais, da inter-acção, da subjectividade, da natureza...

Para concluir este capítulo escrevo que, segundo a minha interpretação, o termo ideologia, que Marx parece ter abandonado a partir de determinada altura, é, no entanto, retomado, n`O Capital, quando expõe o feiticismo. Ideologia, feiticismo, reificação, alienação, constituem fenómenos objectivos, sentidos subjectivamente, que se entrelaçam, completam-se, desenham o quadro das genialidades de Marx. Actuais.

 

 

 

      

 

Crítica da Razão do Consentimento

 

A liberdade é, não excluindo outras definições, a mobilidade que uma formação social concede ao indivíduo; o consentimento é a atitude do mesmo face a essa mobilidade. Este campo de possibilidades é atravessado por contradições. Exemplificando: um indivíduo tem direito a fruir de determinada mobilidade no interior de um conjunto de papéis sociais e respectivos estatutos, e, todavia, pode suceder o seguinte; a) não saber como; b) não poder. 1º exemplo: o mesmo indivíduo consente que retirem direitos efectivos (isto é, liberdades) a outros que desempenhem papéis de algum modo idênticos, e, contudo, não se aperceber que esse procedimento fere ou viola princípios e direitos universais. 2º exemplo: o dito indivíduo consente na justeza do princípio da «livre» iniciativa» de investir, fazer render um capital, vender e comprar, e, no entanto, sucede-lhe passar a vida toda ressentido porque nunca conseguiu «enriquecer» (criar uma empresa sua, tornar a sua pequena empresa tão grande como as maiores, etc.). E, por fim, o exemplo básico do operário ou empregado que é livre de vender, ou não, a sua força de trabalho, mas que se sente obrigado a vender (por um preço regulável que não por ele), num campo de escolhas (oferta, divisão do trabalho, papéis, etc.) ao qual tem de submeter-se.

A Razão Consensual não só admite a existência de determinadas diferenças, como as produz (pela economia) e desenvolve-as; ideologicamente, justifica-as. A Razão Consensual é a unidade (a união) tutelada, totalitária, enganosa ou simplesmente a unidade da realpolitik entre as potências e as Corporações hegemónicas. È o consentimento através da propaganda, da aculturação pelos media e pela mercadoria, a mentira, a manipulação das paixões humanas. A Razão Crítica, pelo contrário, vê nas diferenças factores potenciais do Conflito, porque almeja a união fundada nos direitos sociais. É o Princípio Esperança, possível e indomável, necessário e combativo, que a humanidade do Homem exige para vencer a sua desumanidade. As contradições sociais (e psicossociais) não transcendem o conhecimento humano, porque são resultado da acção humana, das suas opções. As contradições dialécticas são oposições inclusivas e as suas relações dependem do significado atribuído (não «formais» ou abstractas): Marx apontou as contradições entre o que é concreto e útil e o caracter social abstracto do trabalho, e entre o valor de uso e o valor da mercadoria (contradições entre mercadoria e dinheiro e trabalho assalariado e capital).; os seus termos pressupõem o seu oposto e são internamente relacionadas com uma forma de aparência mistificadora. Dessa crítica resultam efeitos políticos práticos. A desmistificação tem de estar em permanente actualização, e os efeitos políticos também. Estilhaçar as formas de aparência mistificadora é um dever  e o principio racional da desobediência civil . A crítica imanente transforma conflitos latentes (ou ressentimentos e revoltas) em conflitos políticos que alcancem um nível não mais controlável pelos aparelhos ideológicos e repressivos. É esta abertura do curso da história que constitui o campo das possibilidades. Certamente que as crenças, as mentalidades, o género de conhecimento, os hábitos, desempenham um papel crucial( os acontecimentos não surgem independentemente do agir humano), nenhuma utopia messiânica tornará real aquilo que as pessoas não querem. No entanto, a casualidade que acompanha a subjectividade humana, não invalida as tendências imanentes aos contextos e às totalidades. Foi previsível que o capitalismo tendesse à hegemonia do planeta, que o capital se concentrasse em oligopólios e multinacionais, que tendesse a sobre-explorar sempre que tivesse poder para tanto; ora então os seus efeitos também obedecem a alguma lógica: os trabalhadores de diversos países e continentes poderão unir-se em plataformas comuns. As forças hegemónicas que impõem consentimentos com constrangimentos, com uma potência hoje que parece invencível, não os conservam sem resistências. A política se tanto se esforça em conquistar consentimentos, é porque estes não são tão «naturais» e «espontâneos» como parece.

A racionalidade que há-de vir tem que quebrar os consensos  da Razão Consensual imperialista. Tem que quebrar a Razão ideológica que controla a educação, o ensino, o conhecimento, os desejos, as expectativas, a comunicação, os sentidos do homem, a sua inteligência, emoção e imaginação. As forças sociais que a hão-de quebrar, que a fazem recuar aqui e ali, que põem a nu a verdade da exploração desapiedada, continua a residir naqueles que produzem os bens materiais e simbólicos, que acabam a comprar o que produzem. Certamente que não reside nas forças obscurantistas que aterrorizam culpados e inocentes. E com certeza absoluta que não reside em regimes que nada tinham que ver com o pensamento de Marx, ético e humanista.

Sendo certo que o capital financeiro domina, o capitalismo não abandona de modo nenhum o capital produtivo e, portanto, reprodutivo. Neste sentido, o capital hoje é, mais do que nunca, tecno-científico. O seu sucesso principal resulta deste fenómeno, que é global. Não foram somente as canhoneiras que lhe permitiram formar um Mercado Mundial (aliás, as armas são o fruto precoce da tecno-ciência). Poderosos negócios apoiam-se nas tecnologias da comunicação, de novas patentes, de fármacos, de reciclagem de recursos, da reprodução de órgãos humanos. Peixes e outros animais em viveiros artificiais, energias alternativas, viagens interplanetárias, previsão de cataclismos naturais. O que estragou agora remedeia e lucra. Gigantescos e dispendiosos centros de investigação, produtos da tecno-ciência, reforçam, directa ou indirectamente, as potências capitalistas e fornecem os meios «racionais» de dominação do Ocidente.

A herança que recebemos vem de longe, do século XVII e do século da Ilustração. Brotou dos sonhos prometeicos que o método científico trouxe consigo imediatamente (a filosofia e as utopias do século de Descartes, Hobbes, Espinosa, Leibniz, Locke, estão impregnadas dessa utopia). Profundas revoluções em todas as áreas iluminaram sucessivamente os horizontes da humanidade esclarecida. A Burguesia, com o seu modo de produção, com a sua ideologia, desempenhou um papel decisivo; contudo, nada disso é seu património exclusivo. Em primeiro lugar, porque sem «trabalhadores» não existiriam «patrões», capital material e capital simbólico; em segundo lugar, porque a herança civilizacional, racionalista e humanista, não foi cumprida. A Burguesia nem respeitou os acordos implícitos e explícitos, com os quais granjeou consentimentos, nem se encontra hoje objectiva e subjectivamente capaz e interessada. O desmascaramento que Marx efectuou (tal como Darwin e Freud o fizeram com as nossos egocentrismos e antropocentrismos ) sobre a ideologia do «universal»( a «sagrada» trindade da Liberdade, Igualdade e Fraternidade) e a alienação, conservam todo o seu vigor na actualidade pós-moderna. Uma outra racionalidade, que reconhece e aprofunda os conflitos, faz o seu caminho, entre sucessos e derrotas. Uma racionalidade, por ora não consensual, que encara a cultura, o conhecimento, a ciência e a técnica, como forças materiais da emancipação humana. Uma racionalidade que possui a mesma vocação mundial que a «a mundialização do capital», mas antagónica, e para a qual os «universais» são os direitos sociais concretos, conteúdo necessário de uma razão prática, de uma orientação ética justa da razão humana, tanto para um Estado Social europeu, como para todos os demais continentes.

A Ética Prática, a Razão Prática constitui o miolo da filosofia da Práxis. Parafraseando Espinosa, o Falso, não possui nenhuma realidade por si mesmo (toda a privação, toda a falta), somente existe relativamente. É a verdade que o torna manifesto ao mesmo tempo que ele se manifesta. Uma limitação não exprime nada de negativo mas apenas uma privação de existência. Portanto, a negatividade não possui nenhuma realidade que não seja relativamente, somente existem relações de poder (melhor: de potência), a vontade de afirmação que constituem os indivíduos concretos. Mesmo aquele que se denega, ou se esconde no anonimato, ou se afirma pela negativa.

O conhecimento apenas é efectivo quando actuante. A Filosofia Crítica não nega que exista realidade nas aparências (o feitiço da mercadoria, p.ex.), mas denuncia a sua aparência com que a essência se disfarça. Marx recebeu a herança do que de melhor encontrou nos materialistas e nos idealistas, nas ciências e nas técnicas. Saibamos seguir-lhe o exemplo. A filosofia da práxis ou organiza uma forma de existência desalienada, um processo de auto-emancipação, - a verdade é assim revolucionária- ou é pura ideologia.

A distinção entre «aparência» e «essência» é interpretada por certos filósofos de um modo idealista. A aparência é o modo mistificado com que a essência se revela. Pode ser uma simples ilusão de óptica como o azul do céu, os elementos, porém, estão lá.

O sentido negativo da Ideologia ( da Cultura em geral: dos discursos, das narrativas, das fantasias e ilusões, das utopias abstractas) não exprimem, no entanto, a negatividade. Esta não corresponde a uma essência do mundo e da História, tendo como seu contrário, a positividade. O motor da História não é a Luta entre estas duas «leis». Tudo que existe é actual e, portanto, positivo. Nós é que atribuímos o valor negativo àquilo que não compreendemos ou não consentimos. Apenas no sentido metafísico é legítimo falarmos no Negativo do Positivo: o Nada e o Todo actual; o Infinito e o Finito, a eternidade e a duração. As possibilidades não brotam do nada (no sentido metafísico as formas brotarão do vazio), mas de condições objectivas e subjectivas. Aquilo que é hoje o Real, anuncia possibilidades de não ser, isto é, de deixar de ser, e vir a ser diferente.  O momento do negativo não representa o falso, embora possa representar o caminho errado. A operação pela qual se dissolve o negativo e as contradições, é a operação tipicamente utópica. Ora, esta operação é possível e recorrente porque nos hábitos culturais e cognitivos está enraizada a crença de que o Mal e o Bem são entidades abstractas que se digladiam como na primogénita guerra entre Titãs e Deuses. O único plano com se deve encarar o mundo é pelo óculo da Imanência. A Transcendência é um mito. E a função dos mitos é mitificar.

Nada do que se disse exclui a existência de contradições. Desde a mais simples de todas :«querer e não querer», até às mais complexas: os conflitos sociais. O que exclui é a crença de que as contradições se esvanecerão um dia, quer pela varinha mágica da Ciência (Iluminismo+Técnica), quer pela emergência do «Super-Homem» (Ideologia positiva).

Actualmente o inimigo supremo da humanidade do homem não é a natureza (o instinto, o irracional, ou a natureza em geral) : é o próprio homem submetido aos desígnios do Capital. Não dispomos de uma doutrina salvadora e dispensamos as que existem. Dispomos de razões, motivos e interesses tão amplos que abarcam o planeta e a humanidade. Tão urgentes que podem decidir dos destinos da civilização. Quando as forças, ora desunidas, se unirem, o que é hoje utopia pode vir a ser ralidade. Provavelmente porque os acontecimentos que se sucedem e se preveem são tão graves que não exista outra solução.

Marx despiu as ilusões dos bons kantianos e da filosofia alemã que acreditava no ideal iluminista do direito. A bem dizer já Maquiavel, Hobbes e Espinosa, muito antes, sabiam que quase tudo se apoia em relações de poder, e que este fundamento não é epocal e transitório, mas uma verdade invariante. Os ideólogos das classes no poder e aqueles outros que exprimem a vontade das classes aspirantes ao poder, sempre o souberam. O resto é «psicologia popular». O resto é a retórica, no fundo também invariante, com que se apresenta o interesse particular como se fosse universal; a fórmula mil vezes repetida do «fim da história» tal como tem sido. Os filósofos preocuparam-se em revelar o mal, crendo que este prescrevia o remédio; a fórmula mil vezes repetida do filósofo-médico ou vidente. Quando reconhecemos um facto, começa a libertação. Com este optimismo nos embalámos a nós mesmos, reconhecendo no mal necessário um fim desejável. Se na política nos comportámos deste modo, teimando na crença de que o Mal não é igual qualquer que seja a sua finalidade, do mesmo modo procedemos com a pretensão exclusivista da ciência no que concerne ao conhecimento válido. Os resultados catastróficos estão à vista. E ainda assim as lógicas do lucro e do ressentimento reactivo movem racionalmente os adversários, julgando que os seus actos possuem legitimidades transcendentes. O imperialismo tenta impôr a sua hegemonia absoluta-  interesses particulares contra o interesse da humanidade-, contudo mostramo-nos sábios quando nos congratulamos com o justo direito à hegemonia de quaisquer adversários que recorrem a meios irracionais? A bem dizer chefes racionais que manipulam criaturas que consentem realizar actos irracionais.

 O modo de produção capitalista operou transformações profundas mercê da técnica, das mercadorias, da ideologia, e continua a operar. Certamente agiu provocando guerras monstruosas e sucessivas, rapinas incontáveis, barbaridades que ética alguma pode justificar. Mas a ideologia justifica. Que força é essa que permitiu a esse modo de produção realizar consecutivas revoluções científico-técnicas com tamanha carga de benefícios para a civilização? Que força é essa que lhes permitiu derrotar, praticamente sem armas, poderosas potências de regime socialista?

Provavelmente uma força muito mais poderosa do que aquela que permitiu a construção das pirâmides por gerações de escravos. Se sem a submissão não se teriam erguido civilizações, culturas, impérios, quanto não se ergueria com a cooperação?

 O socialismo ou é comunista, ou não é. A emancipação não passa por ditaduras de nenhuma espécie. Não há comunismo sem seres humanos do comunismo. Haja ou não revoluções anti-capitalistas, violentas ou pacíficas, em futuros e lugares que não pressentimos, nos pedaços de hegemonia que conquistamos à hegemonia capitalista, a razão comunista que nos move exige que procedamos aí, com mais ou menos poder, como obreiros do comunismo. Justificarmo-nos com as realidades pragmáticas e com a força dos hábitos herdados do capitalismo, não é mais nem menos que a racionalização tão bem descrita por Freud...

 Pois que haja muitas frentes de luta, pois que de cada causa nova se construa uma união, que em cada camada ou classe social se organize insubmissos, mas a batalha decisiva, o processo que prepara o futuro e consolida cada espaço conquistado só pode ser através da mente dos indivíduos. Uma pequena vitória contra a ideologia hegemónica é um grande passo em frente. Nas instituições públicas e privadas, no ensino, no texto e na fala, ser comunista é pensar e agir em coerência. Ainda que na liberdade individual, na pluralidade e multiplicidade, nas diferenças, importa de todo conhecer e respeitar uma normatividade ética comum, que não basta que seja a norma dominadora simplesmente invertida, mas vinda de uma outra racionalidade que encare o planeta como casa comum, a emancipação individual e a actividade auto-criadora como causa comum, as comunidades de cidadãos livres e iguais como Promessa.

 Estamos hoje obrigados a saber aquilo que que a razão identifica, o «coração» e a intuição diferenciam. E que só «o homem é a medida da razão», mas não o homem singular que «por si não possui em si a essência do homem nem enquanto ser moral, nem enquanto ser pensante. A essência do homem está contida apenas na comunidade, na unidade do homem com o homem – uma unidade que, porém, se funda apenas na realidade da distinção do eu e do tu.»

 «Para a Questão Judaica», é um dos textos mais poderosos de Marx, que ele redigiu com apenas 26 anos. Introduz aí uma distinção fundamental, actualíssima, entre emancipação política e emancipação humana. Num estado demo-liberal, politicamente emancipado, a discriminação existe no concreto, sob o primado das leis abstractas. Um estado pode ser livre (reger-se pelo princípio da liberdade e equidade), sem que os homens o sejam. O liberalismo, como teoria, já era refutável, hoje é um logro. Existe um conjunto inquestionável de direitos e liberdades (conquistados com sangue, suor e lágrimas), que não dispensamos de forma nenhuma, e que constituem hoje um baluarte-uma fronteira- que deve ser defendido a todo o custo, tanto a Norte como a Sul, a Ocidente e a Oriente. Direitos e liberdades, sociais e individuais, que não são mera ideologia, nem pura utopia, mas passos fundamentais para a emancipação humana.

Muitos ataques recebeu o chamado «historicismo marxista», vindos do exterior e do exterior. Justos quanto visam a ideologia social-democrata oriunda da II Internacional, e a ideologia «soviética» da III Internacional. O reformismo e o messianismo andam juntos e de mãos dadas, embora se odiassem como inimigos principais. Eram ambas ideologias. O «homem novo» não nasceu e a social-democracia já teve melhores dias... Mas seria injusto desprezar a força material das utopias que ergueram milhares, ou milhões, de homens e mulheres, até ás alturas do sublime.

 

Nozes Pires

Agosto 2007

 

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