Ler Alfred Sohn-Rethel hoje
Sobre a pertinência de se estudar (coletivamente) o livro “Trabalho Intelectual e manual”.
Por Thiago Canettieri
O livro Trabalho intelectual e manual, de Alfred Sohn-Rethel foi, finalmente, publicado no Brasil pela editora Boitempo. O livro, segundo o autor, é resultado de suas pesquisas tributárias de uma “compreensão meio intuitiva” (a expressão é do próprio Sohn-Rethel)1 que teve durante os estudos realizados em Heidelberg, em 1921. O insight de Sohn-Rethel envolveu a descoberta de que “no âmago da estrutura formal da mercadoria estava o sujeito transcendental”2. Essa intuição ganhou várias formas nos debates travados pelo autor. Entre seus interlocutores, Adorno, em 1936, reconheceu que as ideias de Sohn-Rethel representavam o “maior abalo intelectual” que vivenciara desde o seu primeiro encontro com Benjamin. Muitos outros, porém, não reconheciam a extensão de seu argumento e, desta maneira, sua carreira acadêmica nunca decolou realmente. Apesar disso, Sohn-Rethel seguiu seus estudos buscando demonstrar sua hipótese. O livro, finalizado pelo autor em 1951, ou seja, três décadas após a “compreensão meio intuitiva”, só seria publicado vinte anos mais tarde, em 1970.
O que, então, essa obra tem para produzir tamanho “abalo intelectual”? Por que esse livro pode nos interessar ainda hoje, para além da remissão à biografia de autores importantes e daquilo que conta sobre a circulação das ideias no século passado? Valeria repetir a pergunta feita por Anselm Jappe, “Por que ler Sohn-Rethel hoje?”, respondendo-a de maneira simples e direta: a obra de Sohn-Rethel é ainda hoje pertinente porque se dedica a refletir sobre o fundamento da sociabilidade sob o capital, isto é, a forma-mercadoria.
A meu ver, Sohn-Rethel, ao desenvolver o conceito de abstração real em sua obra, leva até as últimas consequências o núcleo fundamental da crítica marxiana. Assumindo a mercadoria como forma elementar da sociedade do capital, Sohn-Rethel avança na explicação sobre como se dão as práticas – determinadas pelas formas sociais – que determinam as formas de consciência (e não o contrário). É com Sohn-Rethel que as consequências da “abstração”, colocadas por Marx, são levadas até o limite. A partir de uma análise materialista das formas de consciência, Sohn-Rethel demonstra que o princípio do fetichismo da mercadoria é o elemento que explica a própria forma do pensamento – se estabelece, portanto, uma relação de homologia entre forma-mercadoria e forma do pensamento.
O grande mérito de Trabalho intelectual e manual é, portanto, capturar a relação existente entre as formas do pensamento e a prática social efetiva. Como escreveu Douglas Barros para este mesmo blog, “O abstrato advém das formas de sociabilidade que foram organizadas a partir da realização do mercado e é nelas que se efetiva a individualização da consciência privada.” Para Sohn-Rethel há uma convergência – que é, sobretudo, histórica – entre o desenvolvimento da lógica da mercadoria e o pensamento abstrato que dará lastro ao desenvolvimento científico.
A afirmação de Sohn-Rethel que constitui o postulado de sua obra é elucidativa: “a forma mercadoria compreende em si o sujeito transcendental”. O que Sohn-Rethel afirma, nesse sentido, é que o sujeito transcendental kantiano só pôde ser pensado em certas condições historicamente determinadas de sociabilidade: foi a partir da prática da troca de mercadorias, que estrutura o pensamento abstrato, que uma tal teoria do conhecimento foi possível de ser pensada.
Nas palavras do próprio autor em prefácio à sua obra, datado de agosto de 1989:
“As teorias idealistas do conhecimento, as quais esbarram no obstáculo de não poder elas mesmas explicar o poder das sínteses espirituais, têm sua verdade aparente no fato de que a eficácia sócio-sintética dos sujeitos individuais permanece totalmente escondida para eles mesmos: essa eficácia é hipostasiada pelas teorias idealistas do conhecimento como ‘sujeito transcendental’. Se nós, ao contrário, seguirmos o fio da meada da praxis social real, deveria ser possível fundar uma teoria materialista do conhecimento, a qual só pode ser histórica”3.
Ainda que a ênfase de Sohn-Rethel sobre a abstração real recaia no ato da troca (e acabe relativizando o momento da produção), ele enfatiza que é a prática social da reprodução de uma determinada sociedade que determina as formas de se conhecer a realidade. Num mundo organizado pela abstração do valor – e aquilo que Marx chamou de trabalho abstrato (mas poderíamos incluir na conta a noção de “tempo abstrato”, desenvolvida por Moishe Postone, ou então de “espaço abstrato”, como sugerido por Henri Lefebvre), o conhecimento do mundo é também contaminado pela forma abstrata do pensar. Como escreve Sohn-Rethel, “o pensamento humano não surge do próprio pensamento” – mas sua natureza é social, e tem origem “na esfera espaçotemporal do intercâmbio entre os homens”4. São as suas ações, suas práticas, que criam a abstração do pensamento.
Trata-se, portanto, de uma “das maiores críticas imanentes da razão ocidental na melhor tradição do marxismo como teoria crítica” – concordando com Bruna Della Torre. Neste sentido, ler Sohn-Rethel ainda hoje é imprescindível, pois trata-se de uma possibilidade de “pensar sobre como se pensa”.
Notas
- Alfred Sohn-Rethel, Trabalho intelectual e manual (Boitempo, 2024), p.35. ↩︎
- Idem, p.17. ↩︎
- Idem, p.37. ↩︎
- Idem, p.53. ↩︎
Trabalho intelectual e manual, de Alfred Sohn-Rethel
Qual a relação entre dinheiro e conhecimento? Nesta genealogia da separação entre trabalho intelectual e manual, Alfred Sohn-Rethel
revela as afinidades estruturais e estruturantes entre as abstrações
conceituais do pensamento ocidental e a forma mercadoria. Um dos
principais textos da teoria marxista do pós-guerra, Trabalho intelectual e manual exerceu influência decisiva sobre os principais autores da chamada Escola de Frankfurt, como Theodor Adorno e Walter Benjamin.
Sohn-Rethel desenvolve a tese ousada de que a análise marxiana da mercadoria é chave não só da crítica da economia política, mas também da origem histórica do próprio pensamento conceitual ocidental e da divisão entre “cabeça e mão” que dele decorre: “a separação entre trabalho intelectual e manual é tão imprescindível para a dominação da classe burguesa quanto a propriedade privada dos meios de produção.” Ao cunhar o conceito de “abstração real” e reposicionar as discussões sobre ciência, técnica e epistemologia no campo marxista, a obra de Sohn-Rethel apresenta fertilidade duradoura para a filosofia crítica contemporânea, inspirando autores como Slavoj Žižek, Anselm Jappe, Antonio Negri e Giorgio Agamben, entre outros.
“Alfred
Sohn-Rethel foi o primeiro a chamar a atenção para o fato de que na
atividade universal e necessária do espírito, se esconde
incondicionadamente trabalho social.”
Theodor W. Adorno
Fruto de mais de cinquenta anos de elaboração e reelaboração, Trabalho intelectual e manual chega pela primeira vez às livrarias brasileiras com tradução direta do alemão feita por Elvis Cesar Bonassa a partir da edição mais recente da obra, consolidada após detalhada revisão do autor. Com prefácio de Olgária Matos e orelha de Vladimir Safatle, a edição da Boitempo vem incrementada de preciosos anexos que documentam a rica interlocução de Sohn-Rethel com Adorno e Benjamin.
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Thiago Canettieri é professor do departamento de urbanismo da Escola de Arquitetura da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
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