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terça-feira, 11 de março de 2025

Bento ESPINOSA e os destinos do espinosismo

 

Crítica da Razão Consensual (Parte VI)

 

Bento Espinosa e os destinos do espinosismo

 

Designamos Razão Consensual toda e qualquer crença que ambiciona a hegemonia absoluta do pensamento. A ideologia do capitalismo contemporâneo, mistura de doutrina económica e propaganda, belicismo, exploração e rapina, apresenta-se a si mesma como a melhor, senão a única, conforme a natureza humana. A este destino sem alternativa se têm submetido intelectuais cuja Razão não quer alcançar mais do que esta realidade irracional. Quando a contestam não conseguem ir mais além da ideia de que este capitalismo –melhorado que seja- é o limite de qualquer sociedade; a totalidade do mundo e da vida é dissolvida num devir puramente aleatório e contingente. O resultado a que chegam é um niilismo que aprisiona as possibilidades do futuro na prisão do presente. Colocando todas as utopias concretas sob suspeita restar-nos-ia interpretar o espetáculo do mundo, sem um horizonte de referência. Se o neo-liberalismo obtivesse um consenso sem oposição, se a sua razão desumana concordasse com a natureza humana, como alguns querem fazer crer, não valeria a pena lutar-se por uma sociedade melhor.  

 O que importa é derrotar a gigantesca mentira, o consenso imposto pela lei ou pela força, pelo medo e pela manipulação. Não para substitui-lo por outro pensamento único, mas para converter a igualdade e a liberdade -efetivas- na condição humana do viver, condição adequada e racional da Comunidade se exprimir nos seus modos múltiplos e diferentes.

É nestes termos inabituais para alguma filosofia pós-moderna que introduzo as ideias de Bento Espinosa. O seu método, a sua ontologia, a sua ética, a sua teoria do conhecimento, a sua filosofia política e a sua análise pioneira da bíblia, oferecem-nos um racionalismo, porventura mais atual e útil que o racionalismo tecnocrata. As grandes filosofias não se eliminam umas às outras numa pseudo história linear. Benedito Espinosa não está ausente das teses de G. Leibniz, J. Locke, David Hume, Kant, Fichte, F.-W. Hegel, L. Feuerbach, F. Engels, e muitos mais no decorrer do último século. As respostas que se dão sê-lo-ão diferentes, porém os problemas que Espinosa ergueu permanecem. O espinosismo é uma propedêutica e uma arma da crítica. Um contributo incontornável para a revitalização do programa revolucionário da filosofia do materialismo dialético. No caso de ser necessária uma justificação para o facto de Espinosa compor uma parte da Crítica da Razão Consensual, digo que o filósofo holandês formulou uma teoria do conflito como raramente se encontra na filosofia moderna. A conflitualidade é intrínseca à natureza do corpo social; a cooperação é o outro polo da dialéctica. Os conceitos de conatus (desejo, esforço e afirmação), potência e poder, penetram no âmago das psicologias e das teorias políticas. Ao utilitarismo mercantil dos liberalismos burgueses, Espinosa oferece-nos uma Ética – fundada numa rigorosa ontologia – completamente diferente.

 

As controvérsias, as lutas sociais e ideológicas, constituem a força motriz das mudanças. Por conseguinte é de todo evidente que acordos, convergências ou consensos para a resistência e para o combate, fortalecem os golpes dos agentes da transformação.

 

 

O espinosismo na filosofia materialista das Luzes

 

 Passo a expor alguns traços fortes que demonstram a influência do espinosismo.

A atualidade do pensamento de Espinosa, filho de portugueses e que falava a nossa língua, só não é flagrante para o pensamento débil. A sua influência foi incontestavelmente profunda e duradoira. Percorreu toda a variegada filosofia das Luzes, reemergiu na filosofia alemã (alvo da admiração de Goethe e de Schiller) renovou-se no século vinte e podemos dizer que está bem vivo.

Existe uma Ideia que percorre as sombras e as luzes da história das ideias: a categoria filosófica de Todo. É possível conceber um Todo infinito? Na unidade material do mundo cabe um espírito transcendente que a justifica? O devir imanente exclui a Identidade? Qual das duas categorias preside à outra: a Natureza ou o Pensamento?

 

A influência de Bento Espinosa fez-se sentir em vários filósofos materialistas do século das Luzes. Um deles foi um monge beneditino, Dom Deschamps, ateu e comunista utópico.

 

 

Dom Deschamps ou um espinosismo consequente

 

 

«Não é senão porque eu sou no fundo a verdade que ei-la desenvolvida, e não é senão porque os meus semelhantes são-no tanto como eu, que aqueles, entre eles, capazes de me ler e de me entender dirão depois de me haverem lido, e compreendido, é ela, a coisa é evidente

 

    Léger-Marie Deschamps (1716-1774) foi um filósofo de origem francesa que interveio no movimento cultural das Luzes com excecional originalidade. Era membro da ordem dos beneditinos. Viveu metade da sua vida numa minúscula e esquecida abadia da região de Poitiers, não muito distante do lugar onde nasceu René Descartes. Não alcançou glórias dada a modéstia das funções que exerceu em plena província e o facto do seu sistema filosófico nunca ter sido publicado. Provavelmente ficaria de qualquer maneira marginalizado pela singularidade extraordinariamente ousada do seu projeto utópico e revolucionário. O estilo de redação de Dom Deschamps é bastante duro, aquém da modernidade de Rousseau ou Diderot. Apesar disso, lê-se hoje com menos dificuldade do que se lê o discurso do então célebre barão d’Holbach e do que a generalidade dos escritos panfletários que abundantemente se publicavam na altura. A seguir à sua morte ficou rapidamente remetido ao esquecimento. Contudo, não foi uma figura ignorada no seu tempo: teve um amigo e confidente em Denis Diderot, dava-se com Jean-Jacques Rousseau e d`Holbach, entre outras figuras notáveis da época. O século vinte fê-lo reaparecer. A nossa tese de mestrado é um estudo detalhado deste abade ateu e “comunista”.

  Tendo procurado as Luzes, permaneceu na sombra. No entanto, outros mais fizeram as sombras desse século e desse movimento reformador que uma interpretação unilateral classificou como utilitarista e anti-metafísico; mas foi certamente um movimento que se julgou a si mesmo iluminado por uma Razão transparente que anunciava uma Era de progressos ilimitados. Vanguarda iluminada de uma época de conflitos e contrastes, de intensas batalhas ideológicas que exprimiam também contraditórios interesses económicos e políticos que iriam confrontar-se violentamente na última década do século. Sucediam-se os debates semiclandestinos em salões privados, nem cafés mundanos, as campanhas persecutórias, proliferavam espiões e esbirros, delatores e funcionários corruptos, encarcerava-se sem julgamento e deportavam-se inocentes. A calúnia era uma arma preferida. Sucedeu, porém, que na década de sessenta a censura aliviou a sanha por motivos políticos circunstanciais; foi então que o espinosismo se multiplicou.

A expressão «sombras» que utilizamos é aqui largamente polissémica. Em primeiro lugar exprime a escassa divulgação e popularidade da obra de dom Deschamps (apenas publicou dois opúsculos que obtiveram um muito fraco acolhimento); em segundo lugar, exprime a posição ambivalente de Deschamps relativamente ao Movimento das Luzes (alguns contemporâneos tomaram-no simplesmente por um conservador); em terceiro lugar, exprime a presença disfarçada de Espinosa no seu Sistema.

  Um beneditino, cuja obra foi descoberta somente um século depois, que criou uma seita de iluminados que pretendia rivalizar com os mações, teve uma intuição brilhante nos anos cinquenta do século XVIII. Munido dessa intuição atreveu-se a substituir, integrando e superando, todos os sistemas e todas as correntes de pensamento do seu tempo e, por meio de um projeto utópico surpreendente, atreveu-se a solucionar todos os problemas sociais e políticos de vez. Isto é, o sistema de Dom Deschamps ambiciona resolver e completar os destinos da Filosofia e da História.

   Pretendeu, em primeiro lugar, fornecer ao conceito de Todo ou Totalidade, que é uma noção nuclear das filosofias, uma nova formulação, denunciando e resolvendo contradições em que outros filósofos, segundo ele, se enredavam. O termo tout, ou grand tout, era usual nos filósofos das Luzes. Se a antinomia era entre um Deus criador-transcendente e um Deus distante e ignoto, Deschamps extraiu a conclusão lógica de que este Deus equivalia ao Nada. Ou seja, negou-o.

Com a chave de uma dialéctica insólita que poderia vir a ser inovadora, Dom Deschamps desafiava os seus contemporâneos a admitir, por via rigorosamente lógica e até gramatical, uma ideia não antropomórfica de Deus, uma conceção naturalista que harmonizasse o homem com a natureza, em que a morte não fosse uma tragédia, sim uma necessidade da ordem natural das coisas, de uma ordem que ignora todo o bem e todo o mal. Alcançada a Verdade, abria-se a possibilidade de uma existência individual e coletiva permanentemente feliz. Ou seja: se desejarmos optar por uma forma de existência radicalmente diferente – mais autêntica- necessitamos primeiramente de modificar a perspectiva pela qual encaramos o mundo e a vida; dessa nova perspectiva resulta uma outra atitude existencial. Este é conteúdo do seu sistema. Por isso o designou de A Verdade, ou o Verdadeiro Sistema. É um sistema eminentemente ético.

Em segundo lugar, atribuía, por conseguinte, a tudo que existe uma ordem, um acordo imanente entre todos os seres, desde o homem a tudo mais, sem graus fixos de valor e de hierarquia. O homem é um modo de ser da natureza, uma parte do todo universal. A morte, por exemplo, não equivale ao nada absoluto ou ao grau zero da existência, mas àquilo que ele chama “o menos da vida”.

 Todas as coisas existem, entre o “mais” e o “menos”, como modificações internas de um Ser constituído por uma profunda contradição: é simultaneamente o todo material actual, positivo, perfeito e pleno de realidade física, movendo-se na duração temporal e no espaço, ou seja o universo ou natureza, e é o infinito, a eternidade, o indeterminado, o nada prenhe de virtualidades.

Um ser, substância ou todo, contraditório. Este é o núcleo duro do seu sistema. E porque o início explica o fim, o Autor move-se em círculos concêntricos. Os muitos cadernos insistem, repetem, regressam ao ponto de partida. Não se tratava de uma patológica obsessão, mas de esclarecimentos incansavelmente retomados em relação à matriz do sistema, a qual, a bem dizer, não sofreria modificações de relevo desde os anos iniciais em que foi elaborado. O Verdadeiro Sistema, assim denominado, foi a matriz, tudo o mais são registos de diálogos, correspondência, textos que pretendia publicar para preparar a edição principal, explicações a eruditos hóspedes do Marquês de Voyer, um político desencantado, culto e provavelmente maçónico. As dificuldades de receção que encontrava nos seus interlocutores, obrigavam-no a repetir-se. Ele próprio queixa-se disso, e manifesta alguma arrogância intelectual. O que é evidente para ele, deveria sê-lo para todos os outros. A exposição, repetitiva, identifica-se, porém, com uma exposição didática, no sentido do mestre que ensina e ilumina, embora por vezes denuncie pouca paciência. Para nós, que expusemos todo o seu sistema, foi muito difícil evitarmos a repetição.

  Que sistema filosófico é esse? É um sistema aparentemente niilista, relativista nos valores e manifestamente aberto à Contradição, que impressionou os seus interlocutores, construído sobre a fórmula contraditória de um Deus simultaneamente positivo e negativo. No entanto, esse Deus é apenas o outro nome com que ele designa a Natureza. Neste esforço julgava haver transcendido os conflitos das filosofias e das ideologias políticas, mostrando como ora se afastavam, ora se aproximavam mais daqueles princípios que solucionavam o enigma da Existência. Julgava ele estar na posse da única filosofia genuinamente metafísica, pois que a teologia cristã não a possuía, nem os deísmos e ateísmos. Um sistema de todos os sistemas, um dispositivo inclassificável de um meta-discurso que termina com a afirmação espantosa de que todo o discurso é inútil.

Num século onde as metafísicas eram alvo de ataques, do desprezo ou do silêncio de determinadas elites, também ele as censurou, criando, porém, um sistema dos mais metafísicos que se conhece, sobre o ser e o não-ser, que parece propor um regresso às origens da filosofia ocidental. Mas não é: Não afirma o Ser contra o Nada. Crítico das correntes que abandonaram a ontologia, crítico do sensualismo e do empirismo, e até inclusivamente das mais notórias filosofias materialistas, inventou uma solução inovadora: integrou a metafísica como um momento do seu Sistema. Encarar metafisicamente os seres (partes) era entendê-los na reunião de um Todo material finito; porém, o pensamento não se encerra aí. È necessário conceber a eternidade.

Tentou superar as filosofias da natureza que desempenharam um decisivo papel no seu tempo. Fique claro que o termo «natureza» exprime aquilo que se quiser, ou aquilo que se descreve conforme um determinado ponto de vista. Não lidavam então, nem ainda lidamos nós, com um referente unívoco, objetivo, exterior, cuja realidade se reflete no pensamento. Encontrava-se em pleno desenvolvimento uma atitude e uma conceção que se caracterizava pela separação entre Objeto e Pensamento, tratando a Natureza como a «Coisa» externa que se podia conhecer e manipular por meio da técnica, subordinando-a aos fins humanos. De modo muito claro Dom Deschamps opunha-se a esta fratura e a esta dominação, colocando os homens mais ao serviço da natureza do que o seu contrário. Ou seja, a natureza humana coincidia com a Natureza, e tudo que desta nos apartasse significa infelicidade. A civilização, por conseguinte, era um mal necessário – uma etapa - que se deveria abolir radicalmente, pois que era ela a raiz de todos os erros e sofrimentos. Uma espécie de ecologia  holista radical avant la lettre.

  Distinguiu na especulação filosófica dois andamentos: por um lado, a formulação do conceito de O Todo (Le Tout), soma de tudo que é realidade sensível e finita, e, por outro, a formulação de um conceito que se apresenta contrário: Tudo (Tout), que equivale ao Infinito. Este desdobramento do pensar especulativo em dois momentos – tese/antítese- propõe-se como uma supra-metafísica aparentemente original e ousada. Completamente estranha ao pensamento das Luzes. “Selvagem”. Na verdade é uma ontologia que se propôs superar as contradições da metafísica teológica (da transcendência) e cartesiana (dualista) por meio de uma solução monista.

Crítico tanto das religiões reveladas como das doutrinas deístas, integrou-as como momentos ou etapas do seu Sistema e superou-as pela revelação de uma moral sem normas, de um Deus-Existência que equivale ao Nada, de uma Lei natural sem leis, de uma felicidade gerada pela mais completa igualdade. A Contradição do Ser único conduzia ao resultado utópico da mais cerrada Identidade (Comunidade).

   Dom Deschamps deixou-se influenciar profundamente pela filosofia monista de Espinosa. Não foi Malebranche, nem o materialismo (“La natur” ou “le grand tout”) de d’Holbach, que lhe proporcionaram a intuição fundante. É certo que recusava publicamente o espinosimo, dizendo melhor: aquele espinosismo que circulava rebaixado, mas foi da fórmula natura naturans/natura naturata, que ele se aproximou. Daí a razão do título que já uatilzámos: Dom Deschamps, o filósofo e a sua sombra. Quisemos sugerir, desde logo, a presença denegada, e, por isso, bem mais visível, do genial autor da ÉTICA, filho de judeus portugueses. Negou-o? Recusou-o? Sim, certamente, redigindo até uma interessante “ Refutação”. O “filho” teve de “matar o Pai”. E isto não apenas por causa dos perigos que resultavam necessariamente de um parentesco com Espinosa, porque, se assim fosse, não se compreenderia o corajoso projeto revolucionário de Deschamps. A sua utopia social era bem mais ousada que o projeto político liberal de Espinosa. A acusação de que foi alvo - “espinosista” - incomodava-o sobretudo por ser acusado de discípulo de um filósofo que ele considerava inconsequente, e ser remetido ao estatuto de mero “seguidor”. Não o satisfazia a falta de uma moral, ou de uma justa moral, em Espinosa. Chama Espinosa de “ateu”, como, de resto, repudia com suspeita veemência o “ateísmo” do barão d’Holbach e seus círculos (os materialistas ateus). Porém, apresentou a sua própria teoria como o melhor e mais perfeito “ateísmo esclarecido”…

  Nesse tempo abundava uma literatura clandestina sobre Espinosa, circulavam panfletos e opúsculos contra o espinosismo, um hábil disfarce para posições bem próximas de Espinosa. Na verdade, não só aqueles que atacavam Benedito, mas também bastantes daqueles que disfarçadamente o defendiam, desconheceram realmente os textos do “Príncipe dos filósofos”. O próprio Deschamps não demonstra que o conhecia integralmente. Talvez por isso, e porque Deschamps constrói uma dialéctica, é que André Robinet descura a influência de Espinosa no pensador beneditino de Poitou, como se pode verificar no seu livro Dom Deschamps, le maître des maîtres du soupçon.  Entretanto realizaram-se dois Colóquios em Poitiers, em um dos quais participámos (Léger-Marie Deschamps, un philosophe entre lumières et l’oubli”, Paris, L’Harmattan, 2001). Dessa comunicação, mantemos a tese, tal qual a defendemos nessa altura. O grande sistema com o qual Deschamps se confrontou, foi o sistema espinosano. Ou melhor: aquilo que, em boa verdade, ele tomou como sendo todo o sistema de Espinosa.

 

Pretendemos não apenas trazer ao conhecimento um intelectual que tanto se opôs ao feudalismo como ao capitalismo, mas demonstrar também que foi um dos mais importantes neo-espinosistas do século dezoito francês, senão o mais congruente e radical. Em uma época crucial da civilização europeia.

 

Um ensaio desenvolvido seria composto por duas partes: na primeira, expunha-se o sistema filosófico de Dom Deschamps, em paralelo com o sistema de Bento Espinosa, privilegiando a “ÉTICA”, assim como o neo-espinosismo de alguns filósofos materialistas do Movimento das Luzes; na segunda parte, expunha-se o projeto utópico de D. D., uma reflexão sobre as utopias do século dezoito e a influência de Jean-Jacques Rousseau na crítica social do abade de Poitou. É minha convicção de que as produções utópicas surgem ligadas a crenças mais ou menos poderosas, fluxos ideológicos, motivações profundas e mobilizadoras de elites ou de classes e outros estratos sociais. No contexto histórico do século XVIII e do Movimento das Luzes, a relevância com que se manifestam as produções utópicas (e falamos particularmente da sociedade francesa) surgem como expressão própria da crença no Progresso. O Progresso não se limitava a uma mera esperança, pois, realmente, os coevos observavam em muitos lados e de muitas formas manifestações palpáveis de progressos nas técnicas, nas ciências, nas ideias. Sendo possível viver-se melhor, julgavam compreensivelmente que as ideias novas e os novos meios ao dispor dos homens permitiriam reconstruir o mundo e a vida. Os romances de viagens eram lidos com muito agrado; era deles que, em muitos casos, se alimentavam as utopias. Novelas do coração, dramas de família, diários de viagem, narrativas de lugares exóticos, projetos de reforma social, crítica de costumes, de toda esta larga variedade de géneros, se despertavam sentimentos e programas. Montesquieu, Voltaire, Rousseau, Diderot, Morelly, Mably...

O reconhecimento público do sistema de dom Deschamps e o estudo crítico das suas ideias, contribuem para olharmos para o século das Luzes com outros olhos. Foi, na verdade, um tempo de luzes e sombras, de contrastes e oposições, de dissidências e hostilidades internas a um movimento que, afinal, nunca foi homogéneo. Não reinava o consenso, mas a controvérsia. Já se conhecia bem a atitude “herética” de Rousseau, que se afastou dos Philosophes e de colaborador da Enciclopédia, e por razões bem distintas de outros que dela se afastaram por cautelas e temores. Há poucas décadas atrás surgiu-nos a “emergência intempestiva de dom Deschamps”que vem tornar mais difícil ainda “a determinação de um curso das coisas e de uma história das ideias”. Como compaginar um sistema tão absolutamente especulativo e metafísico com a atitude empirista que parecia triunfar, com o elogio da experimentação, com a grande física newtoniana, com uma ética liberal que vinha anunciar uma era de revoluções? Na verdade, o abade Condillac e o matemático D’Alembert não foram os únicos que entusiasmaram os espíritos progressistas, também o conseguiram Rousseau, o pré-romântico, Diderot, o barão d’Holbach. Quem precisamente terá mais marcado o Movimento terão sido os materialistas, que se esforçavam por construir uma nova ontologia. Enfim, o século das Luzes foi também uma das épocas mais fecundas em utopias sociais. O líder do “Movimento dos Iguais”, G. Babeuf, confessou-se discípulo de Diderot, julgando-o o verdadeiro autor do Code de la nature, de Morelly.

A revelação da obra de dom Deschamps contribuiu, e muito, para modificar o rosto do século dezoito, através de uma “mensagem única da filosofia francesa”.

Deste modo já não surpreende agora apresentarmos um abade completamente descrente que advogava um “ateísmo esclarecido”, um moralista absolutamente convicto do seu ideário comunista, para quem a Cultura e a Civilização haviam chegado ao seu termo, para cederem o lugar a uma sociedade onde o Estado e a Moral eram perfeitamente dispensáveis.

Tout e le Tout desigam o par de opostos que constituem o fundo da existência. Munido desta fórmula Dom Deschamps construiu um sistema singular. A bem dizer aquilo que o abade ambicionou foi fortalecer o materialismo com uma nova ontologia, ou seja, com aqueles Princípios, diz ele, sem os quais não se poderia deduzir e sustentar uma moral adequada à condição simultaneamente natural e social do homem.

Toda a filosofia de Deschamps desenvolve uma interessante intuição da existência autêntica, intuição pela qual forja a ideia do positivo (criador) e do negativo (Le Rien), uma noção inscrita na matriz de todos os discursos. Todavia, a evidência primordial é a intuição da unicidade fundamental do Ser, “fin fond” de toda a filosofia. Monismo sem dúvida.

Denis Diderot, que não ignorava o espinosismo de modo algum, disse de Dom Deschamps o seguinte, com aquele grande estilo que lhe era peculiar:

«Um monge chamado Dom Deschamps deu-me a ler uma das obras mais violentas e mais originais que eu conheço.»

 

Não ignoramos que as metafísicas de sistema sofreram profunda erosão desde o século XVIII, perdendo credibilidade na comparação com o progresso científico, mais útil, mais técnico, mais empírico. O sistema de Dom Deschamps não escaparia à Crítica da Razão Pura kantiana e David Hume não o teria poupado. Dom Deschamps está longe de possuir a envergadura de Espinosa, mas demonstra, por um lado, a influência viva do espinosismo no interior das filosofias materialistas, bem diversas de resto, e, por outro, uma solução dialéctica para o problema do Ser assaz interessante; tão interessante que ainda hoje é lícito discutir-se se Deschamps foi, ou não, um precursor da dialéctica hegeliana.

  Refiram-se rapidamente apenas mais dois tópicos: a intuição deveras promissora do que seja a Ideologia (não somente a sua aparência de erro e ilusão, mas, e é isto que é essencial, de efeito necessário de relações sociais de desigualdade e dominação que, deste modo, permanecem ocultas), e a intuição de que a filosofia é também linguagem, ou um trabalho sobre a linguagem que exprima adequadamente a existência objetiva. A fórmula do mundo aloja-se já nas mais básicas locuções do senso-comum: o sim e o não. O grande enigma das filosofias fica, assim, desvendado.

 

 

Dom Deschamps fala com compaixão sincera em cartas trocadas com o seu amigo marquês, da brutal miséria dos camponeses cujas filhas se prostituíam para matar a fome. A sua utopia social teve eco na personalidade melancólica do aristocrata culto e sensível. Um seu descendente haveria de lançar fogo ao próprio castelo no dealbar da Revolução de 1789, e protegeria um dos foragidos do decapitado Movimento dos Iguais, o carbonário F. Buonarotti...

Os seus escritos e os seus comportamentos levam-nos a conceber um indivíduo que, consciente e decididamente se conduziu como um filósofo que transportava o significado último da existência, ao arrepio do filósofo “burguês” que se populariza então, e que Diderot tão bem soube exprimir. Até neste ponto a influência de Espinosa ter-se-á manifestado. Espinosa legou para a posteridade essa imagem de sábio desprendido dos bens mundanos.

A utopia de Deschamps de uma sociedade camponesa reflete a contradição fundamental entre um feudalismo decadente e um capitalismo emergente. Os males de ambos.

 

Dom Deschamps  redigiu quatro versões de uma Réfutation courte et simple du système de Spinoza, que enviou ao seu amigo marquês entre Março e Julho de 1766:«Songez que c’est à vous que je dois l’idée de cette Réfutation, et que cette idée est la lus exquise qui pût m’être suggérée pour faire tomber les armes des mains de tout croyant, et pour donner aux mécréants ce qui leur manquait, la vraie raison de l’être, ou, plutôt, pour les préparer à cette raison.»

Rousseau, d’Alembert e outros mais haviam encontrado espinosismo nas peças do Système que Deschamps lhes havia mostrado. A carta parece indicar que o próprio marquês necessitava dessa refutação para aderir com mais confiança às ideias do monge. Refutar Espinosa, ou seja, o espinosismo, constituía para Deschamps, a partir de certa altura uma atitude indispensável para seduzir de todo o seu amigo e os ilustres convivas que se hospedavam regularmente no castelo dos Ormes, e desbravar caminho para a publicação da obra de uma vida.

 

A Existência pura- D.D. e Espinosa

 

    A única substância, para Deschamps, é a Existência, que ele designa também por Tout : “Tout, ou o ser único

   Entretanto, Le Tout é o “princípio », como ele escreve : “De Le Tout, que é o princípio”

   Dom Deschamps mostra conhecer muito bem a problemática que envolve a definição de Substância. Malebranche era bem conhecido na ordem dos beneditinos, o cartesianismo seguramente, Espinosa, em segunda mão pelo menos, ou seja, já refutado. À sua maneira, com originalidade, encontra uma nova solução: a tese dos “dois contrários”, dos “dois últimos extremos possíveis”. A tese dos “dois pontos de vista”. O que seria para Espinosa a natura naturata, é para ele Le Tout. Sendo contrários entre si, Le Tout e Tout, tal solução “escapa” às “dificuldades” de Espinosa. Julgava ele.

Que entende Espinosa por substância?

    «Entendo por substância o que existe em si e é concebido por si, isto é, aquilo cujo conceito não carece do conceito de outra coisa pelo qual deva ser formado.»

E por atributo?

«Entendo por atributo o que o entendimento percebe da substância como constituindo a essência dela.»

   Não existe qualquer ambiguidade na exposição e na argumentação de Espinosa: Não há duas substâncias com o mesmo atributo; não há duas ou mais substâncias com atributos diferentes; um ser absolutamente infinito deve ser necessariamente definido como um ser que é constituído por uma infinidade de atributos, cada um dos quais exprime determinada essência eterna e infinita.

 

    A nosso ver, a inspiração mais fecunda vem do espinosismo. Apesar da fórmula dos contrários, assumida como eixo do sistema.

    Exposta assim resumidamente a questão essencial, isto é, o problema da substância, erguem-se fecundas interrogações.

No Prefácio, Deschamps alerta para que não o confundam com as “nossas semi-luzes filosóficas, tão justamente encaradas como perigosas, (porque) destroem sem estabelecer”. Não basta a crítica destrutiva, pois esta é o que faz a “filosofia reinante”, isto é, a filosofia das luzes na sua vertente mais violentamente anticlerical, que ameaça conduzir-nos para uma “revolução”, sempre a evitar como tão perigosa como inútil, pois “não impedirá o estado de leis divinas e humanas de subsistir, e o mal moral, do qual este estado é a causa, de existir com a mesma força, embora sob outros disfarces”

O ateísmo só tem de comum com O Verdadeiro Sistema, o facto de rejeitarem ambos a religião, porém existe uma extrema diferença:” é que O Verdadeiro Sistema ao negar a moral do teísmo afirma a metafísica, donde extrai uma moral, enquanto o ateísmo, porque não conhece princípio algum, nega um e outra, e deixa-nos com uma moral arbitrária”.

Porque a metafísica tem por objeto considerar os seres “em grande, em geral, em total; considerá-los naquilo que eles possuem todos de rigorosamente comum”.

Na medida em que Deschamps organizou o seu sistema numa intensa atmosfera espinosista, achamos adequado descrever essa atmosfera.

 

 

 

O espinosismo no Século XVIII

 

 

   Ninguém escapa incólume a mais de cinquenta anos de censuras, torções, perseguição dos seus escritos, aleivosias sobre a sua vida e personalidade. Espinosa sofreu de tudo em vida e depois de morto. Muito poucos ombreiam com ele nessas histórias negras de que é feita a história das ideias. Quando Dom Deschamps declara haver terminado o seu Sistema, à entrada da década de sessenta, já o próprio cartesianismo claudicava como fonte inspiradora dos seus contemporâneos.

Os mais célebres Philosophes, Voltaire, d’Alembert, Diderot, d’Holbach, leram Espinosa. Todos eles reagiram, de uma maneira ou doutra, ao ousado sistema do filho de portugueses. O espinosismo converteu-se em um instrumento na luta contra o pensamento conservador. Manuscritos clandestinos, bibliotecas discretas, reuniões conspirativas contra a Igreja instalada na monarquia absoluta, tudo sucede, e o espinosismo é útil para o mais cerrado combate ao clericalismo reaccionário.

«Espinosista, s.m. (Gram.), partidário da filosofia de Espinosa. Convém não confundir os espinosistas antigos com os espinosistas modernos. O princípio geral destes, é que a matéria é sensível, o que eles demonstram pelo desenvolvimento do ovo, corpo inerte, que, unicamente devido ao calor graduado, passa ao estado de ser sensível e vivo, e pelo crescimento de tudo que é animal que, no seu princípio, é apenas um ponto, e que, pela assimilação nutritiva das plantas, numa palavra, de todas as substâncias que servem à nutrição, torna-se um grande corpo sensível e vivo em um grande espaço. Desse facto concluem que somente existe a matéria,e que ela basta para tudo explicar; no resto, seguem o antigo espinosismo em todas as suas concequências.»

Diderot, autor desta citação, por um lado aceita sem reservas a ÉTICA, nas suas consequências, que são de monta, e inseparáveis dos postulados, axiomas e definições, por outro, satiriza um certo espinosismo em voga no Jacques, le Fataliste. Terá lido na íntegra a ÉTICA, e no original? Os especialistas duvidam profundamente. Julgamos nós que Diderot satiriza, ou aponta-lhe os excessos, o fatalismo de d’Holbach, isto é, o modo como este utiliza a herança espinosista. Mas esta sátira parece claudicar, nas últimas palavras sentidas e elogiosas proferidas por Jacques relativamente ao seu capitão fatalista...O melhor seria, segundo Diderot, atualizar Espinosa com um novo vitalismo. O exemplo do “ovo”, que exprime o problema científico capital, é elucidativo : trata-se da questão essencial, isto é, da criação, do aparecimento da vida, da emergência do novo, qualitativamente novo, da capacidade criadora fecunda da natureza. E isto remete-nos para as apregoadas “dificuldades” do sistema de Espinosa, aparentes ou reais. Escutam-se aqui os ecos da famosa crítica de Pierre Bayle, enviesada, ao sistema de Espinosa: depois de haver caracterizado Espinosa como “um ateu de sistema”, considera que não é necessária uma longa e complicada disputa com ele, porque basta “refutar a proposição que está na base do seu sistema: saber que Deus é a única substância que existe no universo, e que todas as outras são modificações desta substância»,« uma suposição tão estranha, que ela desloca a maior parte das noções comuns que servem de regra nas discussões filosóficas;...é a mais monstruosa hipótese que se possa imaginar, a mais absurda e a mais diametralmente oposta às noções mais evidentes do nosso espírito».

 Não é um dado adquirido que Bayle haja lido Espinosa na totalidade, e sobram dúvidas sobre a interpretação de algumas das suas teses.

A ideia, por exemplo, de que a filosofia de Espinosa se assemelhava ao pensamento oriental, ou do extremo oriente, seguira o seu caminho sem ninguém que se opusesse, o que é verdadeiramente surpreendente e coloca a um historiador da filosofia graves suspeitas sobre os modos como se fabricam os legados e os putativos herdeiros. Tal ideia retoma-a o próprio Hegel.

 Desde Bayle e Malebranche, a Fénelon e ao Padre Tournemine, mestre de Voltaire. Descobrir coincidências genéricas é uma coisa, afirmar filiações é outra bem diversa.

À mistura com o pensamento científico que tenta abrir caminho, sopram os ventos a favor de modas, de mistérios, de superstições eruditas, de hilozoísmos antigos, de Giordano Bruno e Campanella restaurados, de filosofias orientais, da Cabala. Na profusão dos escritos mais medíocres ou mais ilustrados, Espinosa transforma-se numa espécie de prêt-à-porter, que, quanto mais se utiliza, mais se degrada. E sempre Bayle: a classificação da filosofia de Espinosa como puro panteísmo. Ate hoje, porque ainda agora lemos e escutamos tal identificação, ou para denegrir, ou para emprestar autoridade a novas utopias, ou simplesmente porque a tendência para reduzir e “compactar” um pensamento complexo e um sistema em uma fórmula cómoda, embora inútil e vazia, é recorrente.

Separar as águas, distinguir os panteísmos renascentistas e orientais, do materialismo e, neste pé, recuperar Espinosa, foi trabalho duro, mas minoritário, de alguns espinosistas do século dezoito. Trabalho nem sempre isento de assimilações apressadas que torciam convenientemente o pensamento espinosano. É justo, no entanto, reconhecer que os mais importantes corifeus quer do materialismo, quer do naturalismo, realizaram esforços notáveis para conservarem uma relação honesta com o espinosismo, ou com aquilo que tomaram como sendo as verdadeiras teses de Espinosa, rompendo com algumas delas sempre que as considerassem desadequadas aos novos contextos. O materialismo (que é, aliás, bem diverso) do século dezoito francês não é um puro espinosismo. O materialismo construiu os seus próprios caminhos.

Introduzir o movimento na matéria, por exemplo, eis a tarefa a que se dedicaram Diderot, d’Holbach, Robinet, naturalistas vários, deístas, panteístas, ateus. Eram os passos hesitantes das ciências da vida, lentamente sacudindo o lastro dos antigos naturalismos e panteísmos.

 O alvo dos ataques de boa parte dos textos publicados nesses anos, em edições anónimas ou com falsos nomes, é o antropomorfismo, indo-se buscar apoio na crítica da concepção antropomórfica de Deus, a Espinosa. No entanto, de Espinosa revela-se pouco, e o que se faz tomar como espinsosismo é contrário à atitude espinosana : este respeitava a Bíblia, aqueles escritos não. São usuais as caricaturas de um Deus « ciumento » e « colérico », insiste-se na convicção de que a natureza não é imperfeita, pois que tudo decorre da Necessidade interna que ela contém, que Deus é Natureza, e esta é a soma, ou o conjunto, de todos os seres, de todas as propriedades e de todas as energias.

Certamente que Espinosa não defendeu em parte alguma que Deus equivalia à pura materialidade (nas versões atomista e fisicista), embora identifique Deus com a natureza. Determinadas teses adulteravam gravemente o seu pensamento, revelando uma falta de cuidado, que se explica menos pela displicência e superficialidade, e mais pela intenção de forçar o caminho às ideias materialistas, mesmo que inconsistentes e contaminadas por panteísmos. Também nos parece evidente que o propósito principal, se não mesmo o único, destes escritos, era atacar a religião oficial e a Igreja. É o anti-clericalismo que está em marcha. O espinosismo, ou melhor, uma versão fraca e popular do espinosismo, foi utilizada como uma eficaz ferramenta ideológica e política pelos mais diferentes quadrantes ideológicos.

Queremos insistir neste ponto: as entorses que o sistema de Espinosa sofreu, e as críticas de que foi alvo, não se resumem àqueles, e foram muitos, que o recusaram e combateram, mas igualmente procederam assim aqueles que, em certos aspectos, até por ele se deixaram influenciar. Neste vasto grupo havemos de incluir o próprio Malebranche, que foi um dos maître-à-penser, e Pierre Bayle evidentemente. A tese Deus sive natura, propiciava as mais diversas interpretações; expressão que não se encontra em Espinosa. Para Malebranche, por exemplo, e isto foi muito significativo e carregado de consequências, a perfeição divina mostrava-se inconciliável com a expressão de Espinosa: Deus havia de ser um ente diferente e superior ao mundo por ele criado. Todas estas interrogações que temos vindo aqui a mencionar, estão presentes nos textos de Dom Deschamps. Ele mostra conhecê-las perfeitamente.

Pierre Bayle escreveu no Dicionário ( art. “Spinoza”): « Assim, no sistema de Espinosa, todos aqueles que dizem : Os Alemães mataram dez mil Turcos, falam mal e falsamente, a menos que eles queiram dizer que Deus modificado em Alemães tenha morto Deus modificado em dez mil Turcos ;  e é assim que todas as frases pelas quais se exprime o que fazem os homens uns contra os outros só podem ter este sentido verdadeiro : Deus odeia-se a si mesmo, pede graças a si mesmo, e a si mesmo se recusa ; persegue-se, mata-se, come-se, calunia-se, levanta-se sobre o cadafalso»”

Esta incompreensão da substância espinosana cuja primeira característica, evidente, é que ela é a coincidência e a identidade da Natureza com Deus, agravou-se nos vindouros. Espinosa foi convertido e reconvertido num panteísta. E num ateu puro e duro. Porém, quando falamos de Bayle não devemos esquecer o seu método expositivo e o seu estilo irónico, ou seja, não é inusitado admitir que ele, nesta frase, transmitia o pensamento de Espinosa através de uma hábil caricatura e dissimulação: a crítica espinosana do antropomorfismo não é veiculada?

A incompreensão revelada por Fénelon, por exemplo, que apenas conseguiu ver em Espinosa uma identificação de Deus com a totalidade das criaturas, é tanto mais curiosa quanto ele próprio acaba por argumentar no terreno construído pelo próprio Espinosa: Deus ou o Ser absoluto, infinito, não poderia ser composto de partes; o infinito de que fala, ou o “infinito infinitamente infinito” de Malebranche, corresponde, afinal, à substância em Espinosa e à anterioridade da substância relativamente às suas afeções...

A questão da eternidade dos modos, por um lado, e, por outro, da sua existência temporal, é outra face de uma controvérsia que gerou muitas confusões. A confusão entre Deus e as coisas não está presente de modo algum nas teses da ÉTICA, e todo o génio filosófico de Espinosa foi precisamente no sentido de evitá-la. De outro modo não faria qualquer sentido a figuração negativa que Espinosa construiu do indivíduo alienado e esquecido. Ou seja, Deus é a totalidade infinita, a ordem necessária e imanente, e não é, de modo algum, este ou aquele indivíduo, impelido pelo seu conatus a perseverar na existência particular, muitas vezes de modo egocêntrico, iludido pelo seu valor real, iludido pelo seu verdadeiro papel na ordem do mundo, ou submetido, inerme, resignado e infeliz.

Aquilo que a teologia adversária não queria, não poderia, aceitar, era a tese espinosana da necessidade. A todo o custo, impunha-se para ela a inclusão do livre-arbítrio do Criador e, por tabela, a distinção das criaturas relativamente ao Criador. É aqui que reside, em nosso ver, o carácter irredutível das posições ontem e hoje. Ora, neste ponto, não há dúvida: Espinosa orientou grande parte do seu esforço de argumentação contra a crença no livre-arbítrio. O que surpreende e choca as belas almas é precisamente a arquitectura determinista, como usualmente se diz, do seu sistema. Uma natureza autoprodutiva, autoregulada, alheia aos valores, que dispensa sacerdotes para a descoberta da verdade, embora se tolerem para as questões de fé.

Foi também por estes caminhos de receio e de ortodoxia, de recusa ou incompreensão, que se estabeleceu e consolidou a fama de um Espinosa ateu, que realmente não o foi no rigor da terminologia. Esta má fama perturbou o próprio Dom Deschamps, que considera Espinosa como tal, e se esforça por livrar-se da mesma acusação. Em boa verdade, fica-se com a convicção de que, dos dois, era Deschamps realmente o ateu.

Pierre Bayle caracterizou, desde logo, Espinosa como « um ateu de sistema ». Situou a crítica na proposição da substância única, que se encontra na base do seu sistema, e passou em seguida a refutá-la. Todos os contornos desta atitude perduraram quase intactos até aos textos de refutação que Dom Deschamps irá redigir décadas mais tarde. É uma autêntica tradição, uma herança. Não é a obra genuína e íntegra do seu autor, não é o tratamento analítico e progressivo dos seus textos, mesmo que em tradução fiável, é uma interpretação, que hoje não recomendaríamos a ninguém, que perdura como uma instituição, uma verdade. Não é Espinosa que circula, é uma outra versão.

 P. Bayle expõe deste modo o pensamento de Espinosa : «saber que Deus é a única substância que existe no universo, e que todos os outros seres são modificações desta substância.» Corresponde quase literalmente àquilo que Deschamps irá transcrever. E Bayle conclui: «uma suposição tão estranha, que subverte a maior parte das noções comuns que servem de regra nas discussões filosóficas; é a mais monstruosa hipótese que se possa imaginar, a mais absurda e a mais diametralmente oposta às noções mais evidentes do nosso espírito.»

O que está escrito, ficou escrito, a sua crítica e fez-se verdade de escola. Contudo, iríamos mal, se acreditássemos nas aparências do estilo. Pierre Bayle aperfeiçoou um estilo tão hábil que iria ser retomado vezes sem conta pelos bons espíritos do século XVIII. Se o século dezoito tem alguma particularidade em atitudes de interpretação, ela é, seguramente, este estilo fino, penetrante e irónico que Voltaire e Diderot souberam aperfeiçoar a um nível insuperável. Quem ler apressadamente toma a crítica como uma refutação cerrada sem margem para compromissos, quando o que se passa na verdade, é uma hábil estratégia de dissimulação. Os contemporâneos haveriam de saber ler entre linhas, interpretar o elogio sob o disfarce da ironia aparentemente implacável, a verdade sob o manto da retórica. Os tempos iam difíceis, e foram-se agravando adentro do século. Cada um fazia o seu serviço: os chefes da Igreja, os autores de panfletos anónimos, os espiões, os esbirros. Notar-se-á esse estilo, feito de cuidados e alçapões, nos artigos da Enciclopédia, particularmente nesse mestre que foi Diderot. O importante era sacudir a eventual acusação de ateísmo. São as palavras de Bayle, as sucessivas repetições das suas palavras, que atormentam Dom Deschamps. Não é que ele receie, pelo menos nas páginas que nunca publicou, defender o ateísmo, mas não deseja na sua consciência “dar o flanco” às críticas consolidadas. Ele próprio admite a consistência destas. Ele próprio se esforçou por “corrigir” o sistema de Espinosa. São estas razões da razão pública e privada, que julgamos dever merecer a nossa atenção. Tentaremos estabelecer, até ao termo desta dissertação, que Dom Deschamps se apresenta tal qual ele se confessa: um profeta iluminado por um “ateísmo esclarecido”, e que o seu sistema somente se compreende completamente à luz do espinosismo. Isto é, a metafísica de D. D., em pleno século, não se confronta com mais nenhuma outra metafísica, se não com a sombra de Espinosa. Forjaram-se outras e novas metafísicas, envolvidas por um naturalismo deísta, como a de Jean-Baptiste Robinet por exemplo (onde, aliás, se perfilam sinais da presença de espinosismo), mas aquela que poderia ser, do mesmo modo, classificada como a “mais monstruosa hipótese” e a mais absurda, seria a de Deschamps se tivesse sido publicada. Ele tinha consciência disso, e verificou-o nos encontros que teve com os mais diversos interlocutores. No entanto, não são de somenos importância as suas diferenças com o próprio Espinosa.

Aquilo que o célebre P. Bayle ensinou a quem o quis entender, foi um método de raciocinar sobre ideias próprias e ideias de outros. O seu mérito não reside apenas nas informações que prestou aos iniciados, mas, sobretudo, na atitude pedagógica exigente de acreditarmos somente naquilo que a razão demonstra e esclarece. Se houvesse que escolher um pioneiro das Luzes francesas, escolhê-lo-íamos. Foi este o legado que Deschamps recolheu, e não os insultos, os gracejos, alguma ironia fácil, em que outros, bem mais do que Bayle, se comprazeram. Pensar no interior do sistema a refutar, não de fora, detetar-lhe as fragilidades, ambiguidades, contradições, eis o essencial. E importa considerar que Deschamps não foi seguidor, de modo algum do nominalismo de P. Bayle. Talvez por isso, pôde assimilar melhor a ontologia de Espinosa. Uma determinada forma de Bayle ser materialista, à maneira de Gassendi, restringia-lhe a ideia de extensão à realidade divisível, bem diferente da extensão abstrata e indivisível de que fala Espinosa, que categoriza esta como um atributo da substância infinita. Iremos verificar que efeitos produzirão esta leitura redutora sobre as soluções de Deschamps, originais mas não tanto como ele julga. Para Bayle, o sistema de Espinosa encerra um problema da unicidade da substância; daí deriva a sua objeção segundo a qual Espinosa tenta evitar a ideia refutável de um ser composto, substituindo a palavra “parte” pela palavra “modificação”. Estas aparentes fugas e contradições de Espinosa, serão encaradas por Deschamps como reais, o qual utiliza ambos os termos: partes e modificações, mas aplicáveis apenas ao todo físico e material, destacando, por isso mesmo, um outro todo “absolutamente absoluto”: o infinito. Ao julgar que refuta Espinosa e, ao mesmo tempo, descobre a solução melhor, atravessa para a outra margem através da ponte que o próprio Espinosa construiu. A solução está longe de ser a mesma, mas a diferenciação dos atributos encontra-se lá. O TUDO (Tout) é toda a Existência. Não equivale liminarmente à soma das modificações, mas, pelo contrário, à outra perspetiva com que se deve encarar a totalidade ordenada dos seres. Ou seja, o infinito e a eternidade. Ao defender esta ideia, Deschamps revela ter entendido melhor do que quase todos as teses espinosanas, e antecipa-se em dezenas de anos à filosofia alemã, com Fichte à cabeça, que viu na substância espinosana o próprio Infinito na sua expressão objetiva.

 

Condillac refere Espinosa no seu Traité des systèmes. O abade Condillac exerceu uma enorme influência nos rumos novos do pensamento, em particular nos philosophes, num novo exercício do pensar, que valoriza a experiência sensível e apouca as metafísicas de sistema. É todo um nominalismo que está em marcha. Nesta nova atitude, o sistema de Espinosa é um alvo especial da crítica das noções abstratas, sem fundamento na experiência, produtos da imaginação. De uma banda, os teólogos, de outra, os sensualistas, a perseguir os passos do empirismo inglês. Contudo, o ponto de vista dos últimos é mais ajustado, independentemente de ser ou não mais verdadeiro, queremos dizer que é uma crítica legítima vinda de quem leu seguramente o próprio autor. Condillac traduziu a primeira parte da ÉTICA. Aqui o trazemos para fornecer um elemento mais ao cenário ou ao meio no qual se movimenta o nosso beneditino.

Este panorama dá-nos a sensação de que Espinosa constitui um dos mais fascinantes enigmas da história das ideias no ocidente, que nos abala certezas cómodas que tivéssemos sobre uma pretensa autonomia integral das ideias relativamente aos outros fenómenos da vida coletiva. Um filósofo que todos julgam conhecer, e pouco ou nada conhecem em grande parte dos casos, cujas teses circulam o mais das vezes clandestinamente, que, em rigor, não são dele, que parece estar presente nas, ou sob, as novas conceções de naturalistas e materialistas, mas que quase nenhum assume. Surpreendente.

   A influência do espinosismo conservou-se por essa Europa fora, mesmo que truncado e reduzido a uma caricatura, para se assistir, por fim, ao seu renascimento no termo já do século dezoito na Alemanha de Jacobi. É um longo e largo percurso que não podemos resumir neste capítulo. O que importa é adiantar para o nosso trabalho este dado que é talvez mais uma interrogação: se admitirmos, como nós admitimos, que uma determinada corrente do materialismo francês do Século XVIII, encabeçada sobretudo por d’Holbach, levou a cabo uma separação relativamente ao espinosismo, sendo que esse corte lhe permitiu apoiar o ateísmo em bases materialistas, não abandonando a tese de uma substância única com diversos atributos ou propriedades gerais, não teria este acto propiciado uma leitura de um Espinosa não ateu? Não é esta leitura que iremos encontrar na filosofia alemã? E, enfim seria esta interpretação mais conforme ao rigor do Texto espinosano, ou assistimos, ao invés, a novas deturpações?

Seja como for, o que nos compete, neste trabalho, é demonstrar que Dom Deschamps não tentou recuperar o Deus de Espinosa; bem pelo contrário, tendo-o tomado definitivamente como um ateu, tratou de construir um “ateísmo esclarecido”. Entre o seu propósito e o de d’Holbach, ou de Diderot, não existem aqui divergências de fundo. As divergências são outras.

 

Para acentuar a influência do espinosismo é obrigatório referir um outro nome praticamente desconhecido: Jean Meslier, um padre de Etrépighy, nascido em 1664 e falecido em 1729. Legou numerosos manuscritos, dos quais Voltaire publicou um “Testamento”, truncado e censurado, que celebrizou ambos. Dele ficou a famosa frase: “Que todos os grandes da Terra fossem enforcados e estrangulados com as tripas dos padres”. Ora, Meslier e os manuscritos não foram decerto desconhecidos do abade Dom Deschamps. O que salta à vista neles é um espinosismo frontalmente assumido. E a aspiração a uma sociedade comunista deduzida da unidade material e humana do mundo…

 

As ideias de Bento Espinosa

 

Utilizo a grafia Espinosa, em vez de Espinoza, embora ele haja assinado com o nome de Espinoza, porque era filho de portugueses (Vidigueira) fugidos da Inquisição, e falava o português. E se tal não é motivo de orgulho patriótico pois que a Inquisição que tão ferozmente reprimiu a nossa cultura, o pensamento moderno e científico, era também portuguesa, não deixa de ser extraordinário: o maior filósofo de todos os tempos era filho de portugueses e falava a nossa língua, conviveu e pertenceu à comunidade de judeus oriundos de Portugal! Muitos deles haviam sido cristãos-novos, ou eram marranos, isto é, forçados a aderir ao cristianismo sob pena de ser presos, torturados, espoliados dos seus bens e provavelmente queimados em fogueiras nas praças públicas de Lisboa. E é mais extraordinário ainda que um pensador de tamanha envergadura mundial tenha sido desprezado, silenciado, caluniado, e ainda o é hoje! Basta consultar diversas bibliotecas públicas e privadas portuguesas para constatarmos que a sua obra toda não se encontra lá, por vezes até nenhum dos seus livros.

Não é, portanto, por acaso, nem exceção, que alguns manuais escolares de Filosofia façam apenas uma menção rápida e superficial da biografia e obra de Espinosa e reduzam o seu profundo e diversificado pensamento ao cliché determinismo versus liberdade.

 

 

Baruch era o seu nome em hebraico, Bento (Abençoado) em português. Teve vários irmãos, alguns dos quais faleceram ainda novos. Família de comerciantes relativamente abastados. Quando o pai morreu, Bento recusou a herança paterna para que sua irmã, Rebeca, pudesse com esse dote vir a casar com dignidade. Geriu a loja que transacionava produtos vindos de Portugal, durante algum tempo, mas sem grande convicção: preferia dedicar o seu tempo ao estudo. Aprendeu com brilho o francês, inglês, o hebraico e o latim; os seus estudos do Talmude e da Tora, textos sacralizados pelo povo hebreu, começaram muito cedo, motivo de agradável espanto dos seus mestres que viam nele um futuro e ilustrado Rabi. Desiludiu-os depressa: a sua interpretação dos textos ortodoxos provocaram a cólera da comunidade judaica e acabou julgado e condenado publicamente à expulsão (Cherem), expulsão que se manteve até hoje, apesar de Israel ter atribuído o seu nome a uma rua. Em 1670 é publicado anonimamente o seu Tratado Teológico-Político - imediatamente proibido - investigação minuciosa do Antigo Testamento, obra pioneira, sem paralelo, que escandalizou as ortodoxias e dogmatismos, pela qual se demonstra que o Sagrado é invenção humana e o Verbo divino uma inspiração política.

 Enquanto redigia o T. T-P corrigia o seu escrito Tratado da Reforma do Entendimento, fornecendo a ambas as obras o fôlego filosófico que viria a ser alcançado com a sua obra-prima: a Ética, publicada postumamente.

A Holanda era então um país com uma numerosa e enriquecida burguesia, dotada de uma frota marítima que rapidamente substituiu Portugal nos mares e continentes que os portugueses exploraram. Incomparavelmente mais tolerante no plano religioso do que os reinos católicos, sempre cobiçada pela coroa espanhola. Para aí afluíam foragidos e emigrantes em busca de liberdade e de oportunidades de riqueza. Confrontos e intercâmbio de mercadorias, culturas e ideias, geraram crenças messiânicas às quais o nosso admirado Padre António Vieira não foi imune. A liberdade era relativa e instável, os apetites dinásticos e estrangeiros faziam-se sentir e as disputas religiosas podiam incendiar as multidões a qualquer momento. De modo que todos procuravam conservar entre os diversos partidos e confissões religiosas um equilíbrio dificílimo mas suficiente para não prejudicar os negócios. É neste contexto que os judeus ortodoxos condenam Baruch Espinosa, proibindo qualquer contacto com ele. Espinosa não se vergou, transformou a condenação aos infernos numa oportunidade para viver e trabalhar tranquilamente.

Evitava os falsos amigos, falar demasiado de si próprio, escolheu como regra o princípio latino: “Caute” (Cautela). Polia lentes para telescópios e microscópios, em que se revelou um exímio artesão elogiado pelos grandes cientistas do seu tempo que lhos encomendavam. Amigo dos seus amigos, correspondendo-se com alguns dos melhores sábios, contudo não viajava e recusou mesmo uma cátedra em uma prestigiosa universidade europeia (Heidelberg). De compleição frágil e cada vez mais doente (sofria de tuberculose que se agravou com o pó inalado dos vidros que polia) não cedeu nunca a sua liberdade e o seu tempo a nada mais que não fosse ler, meditar, limar até ao limite os seus axiomas e postulados insólitos e inigualáveis.

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A vida de Espinosa é ela mesma um exemplo da sua teoria: a afirmação potente e positiva de amor à vida e à liberdade, de respeito pela natureza. Demonstrou que a filosofia é, ou deve ser, uma crítica implacável das atitudes, das crenças, que se alimentam do ódio e do medo, que se rodeiam de cultos da morte, das sociedades de súbditos envergonhados, culpados, invejosos, que sufocam a liberdade e a vida com leis, propriedades, deveres, impérios, às quais Espinosa chama “traições” à vida, ao universo. O que há de pior no homem? A glorificação da passividade e da submissão, a invenção da morte interior, essa alma triste que o exercício da obediência instila.

 

Esforçar-se por conhecer é, portanto, uma paixão alegre, positiva. Unir-se ao todo, perceber o encadeamento de todas as coisas, das causas e dos efeitos, totalidade na qual tudo tem uma razão, um nexo, uma necessidade imanente. Assim sendo, é rejeitada a existência efetiva de qualquer entidade transcendente criadora e justiceira, remetem-se estas fantasmagorias para o império do desejo e da imaginação, da mecânica psicológica do medo e da servidão. Unicidade da substância, univocidade dos atributos, imanência absoluta, interconexão entre o corpo e o pensamento (dois atributos distintos mas paralelos da mesma substância). Compreende-se porque razão filósofos do século dezoito concluíram que tudo que existe é natureza ou matéria, sendo o pensamento uma dimensão ou faculdade, gozando de autonomia muito embora, da mesma, única e infinita natureza, excluindo a existência de uma alma imortal e de um Deus transcendente mas pessoal, isto é, antropomórfico. Compreende-se a influência ministerial de Espinosa sobre os materialismos (os “naturalistas”, com então se designavam).

 Como chegar à consciência de si mesmo, de Deus e das coisas, quando a nossa consciência é de facto inseparável das ilusões e das paixões (do Inconsciente)?

Como conseguir formar ideias adequadas, promotoras de sentimentos ativos, positivos, quando parecemos condenados, pela nossa limitada natureza, a não ter senão ideias inadequadas? Ora, na realidade, não estamos condenados. O conhecimento que é necessário ao homem é o que se adequa plenamente à ideia do objeto e tem por isso em si a garantia necessária da sua verdade. As afeções estão sujeitas às mesmas leis (ordem) da natureza. O seu conhecimento permitir-nos-ia escolher quais os objetos e as relações sociais e afetivas que melhor se adequem ao nosso corpo.

 

A aceção do conceito de Razão, em Espinosa, tem ocupado muitos comentadores. De entre muitos, sigamos a análise desenvolvida por Maria Luísa Ribeiro Ferreira.  A “razão abrangente”, a “razão constitutiva sobreleva a representacional pois a categoria da representação é desvalorizada em detrimento da identificação, da sintonia com o Todo” A Razão, para Espinosa, possui uma dimensão ontológica, é fundamento e causa.

A Razão é um modo da ação dos homens. “Mas, a verdadeira capacidade de agir do homem, ou seja, a sua virtude é a própria Razão (pela proposição 3 da Parte III), que o homem contempla clara e distintamente”

 Distinção entre Razão e Entendimento: no livro IV da ÈTICA, o entendimento é identificado com a razão “Por conseguinte é sumamente útil aperfeiçoar o entendimento ou a razão tanto quanto pudermos”.  Todavia, no livro II, diz o seguinte: “De tudo o que acima foi dito, resulta claramente que nós temos muitas perceções e formamos noções universais: 1º Das coisas singulares que os sentidos representam mutiladas, confusas e sem ordem à inteligência; por esta razão, tomei o hábito de chamar a essas perceções conhecimento pela experiência vaga.

2º Dos sinais, por exemplo, do facto de termos ouvido ou lido certas palavras, nos recordamos das coisas e delas formamos ideias semelhantes àquelas pelas quais imaginamos as coisas. Para o futuro, chamarei a essas duas maneiras de considerar as coisas: conhecimento do primeiro género, opinião ou imaginação.

3º Finalmente, do facto de termos noções comuns e ideias adequadas das propriedades das coisas. A este género, darei o nome de Razão e conhecimento do segundo género.

Além destes dois géneros de conhecimento, há ainda um terceiro como o mostrarei a seguir, a que chamaremos ciência intuitiva. Este género de conhecimento procede da ideia adequada da essência formal de certos atributos de Deus para o conhecimento adequado da essência das coisas”.

O que é essencial à natureza humana é por conseguinte idêntico em todos. Daí que quanto mais cada homem procura a sua conveniência, tanto mais os homens são semelhantes entre si e podem ser úteis uns aos outros. Eis a possibilidade de consensos, acordos, justos.

 

Em seguida, ensaiamos um breve resumo daquelas teses de Espinosa que mais úteis nos sejam para compreender as teses de Dom Deschamps. A intenção é, agora, não um espinosismo de segunda ou terceira mão, mas tentar expor com o rigor que nos é possível as ideias principais contidas na ÉTICA.

 

 

Tem, por conseguinte, como objetivo esta exposição resumida da filosofia de Bento Espinosa clarificar aquelas teses e aqueles conceitos que mais se adequam ao nosso propósito de estabelecermos um paralelismo com O Verdadeiro Sistema, de Dom Deschamps, de modo a que as semelhanças, e também naturalmente as diferenças, ganhem relevo demonstrativo. Evidentemente que qualquer exposição denuncia o ponto de vista de quem expõe, ainda que se baseie nos textos e na correspondência do Autor, tanto mais quando se trata de um Autor, como Espinosa, tão despojado de retórica auto-referente. Tentaremos expor a nossa interpretação do que efetivamente escreveu. Assim se evidenciarão os acertos e desacertos da Refutação que Dom Deschamps lhe dirige, porventura porque simplesmente refuta um Espinosa deturpado.

 Bento Espinosa lutou com uma extrema coragem por um regime republicano e democrático, onde se poderia pensar e viver o mais livremente possível, liberto do exclusivo obedecer – obedecer a outrem, a regulamentos consensuais impostos por mera tradição, a maiorias aritméticas, à “multidão” irracional - muito embora viver em sociedade signifique obedecer a regras (o Estado democrático espinosano é dotado de autoridade). As noções de mal e bem, de mérito e demérito, etc., exprimem isso mesmo: simples ou complexas regras, respeito, piedade, obediência, pois que todas estas noções adequam-se melhor ou pior à natureza humana e aos fins sociais historicamente determinados.

 

Qual é a tese teórica central do espinosismo? Acreditamos ser esta: há uma só substância (Natureza) que possui uma infinidade de atributos, sendo todos os seres apenas modos destes atributos ou modificações desta substância. Embora os atributos sejam infinitos, a inteligência limitada do homem só pode alcançar dois: a extensão e o pensamento. E mesmo aqui, não conhece tudo, e é pouco até o que conhece. Esforçar-se por conhecer é, portanto, uma paixão alegre. Unir-se ao todo, perceber o encadeamento de todas as coisas, das causas e dos efeitos, totalidade na qual tudo tem uma razão, um nexo, uma necessidade imanente. Assim sendo, é rejeitada a existência efetiva de qualquer entidade transcendente criadora e justiceira, remetem-se estas fantasmagorias para o império do desejo e da imaginação, da mecânica psicológica do medo e da servidão. Unicidade da substância, univocidade dos atributos, imanência absoluta, identidade essencial entre a extensão (a natureza, os corpos) e o pensamento (dois atributos distintos e paralelos da mesma substância). Como não ver aqui a tese de que tudo que existe é natureza, sendo o pensamento uma dimensão, gozando de autonomia, da mesma e única natureza? Espinosa passa páginas e páginas a recusar qualquer verdade objetiva a um Deus antropomórfico, à criação fora da natureza, ao finalismo moral, ao dualismo, à transcendência. Como chegar, porém, a ser consciente de si mesmo, de Deus e das coisas, quando a nossa consciência parece inseparável das ilusões?

Como conseguir formar ideias adequadas, promotoras de sentimentos ativos, positivos, quando parecemos condenados, pela nossa limitada natureza, a não ter senão ideias inadequadas? A Razão e os afetos.

Absoluta é só a substância una e única, infinitos, mas não absolutos, são os seus atributos (infinitos no seu género); Deus exprime a potência absoluta de existir e de agir, a potência absoluta de pensar e de compreender – duas potências do absoluto que são iguais e não se confundem com os atributos que conhecemos.

 

Muito embora Dom Deschamps não persiga linearmente as formulações de Espinosa, ele forjou um par de categorias com um papel decisivo no seu sistema: Tudo (Tout) e O Todo (Le Tout), ou, por equivalência, o universo e o Nada; porém, a realidade última e verdadeira, o absolutamente absoluto como ele escreve por vezes, é a Existência; ora, a Existência é única. No primeiro caso, no par de contrários, temos um primeiro momento do desenvolvimento da verdade; mas esta distinção tem que ser superada, isto é, a negação envolve a identidade. A Existência é, ao mesmo tempo, uma coisa e o seu contraditório. Este é um dos eixos principais da nossa dissertação. Esta posição filosófica é monista; apenas numa leitura superficial pode sugerir um dualismo. A Existência possui dois atributos ao alcance da nossa compreensão humana: ora como natureza-mundo, ora como nadificação (Riénnisme). È a fórmula de Espinosa? Claro que não parece. E, no entanto, é um monismo sem sombra de dúvida. Fala-se de uma realidade única, que pode ser encarada de duas maneiras. Não afirma Espinosa que o Finito se distingue do Infinito? No contexto filosófico e cultural em que se move Dom Deschamps, isto que fica dito, evoca necessariamente o espectro do espinosismo. A diferença? Para D. D. o Rien-Infinito é “Estéril”. Diferença de monta.

 

Que é o atributo, para Espinosa? É aquilo que o entendimento percebe da substância como constituindo a sua essência; não é uma maneira de ver entre outras possíveis, uma perspectiva, mas aquilo que é. Nem é, tão pouco, uma “emanação” da substância, pois que esta não é superior aos seus atributos. Cada atributo exprime uma determinada “essência”. Nem sequer o atributo reside no entendimento (não pertence ao reino dos produtos sociais da consciência); o atributo exprime-se e isto implica necessariamente um entendimento que o perceba ( tudo é natureza, tudo é, em essência, o mesmo)..

  Nós apenas conhecemos dois atributos, e entretanto sabemos que existe uma infinidade. E porque sabemos? Sabemo-lo porque resulta necessariamente da definição de infinito, da definição de uma substância autoprodutiva. Apenas conhecemos dois porque só podemos conceber como infinitas as qualidades que envolvem a nossa essência: o pensamento e a extensão, enquanto somos espírito e corpo.

   Sabemos que há uma infinidade de atributos, porque Deus é ele mesmo uma potência absolutamente infinita de existir, que não se deixa esgotar nem pelo pensamento nem pela extensão.

A natureza é “natura naturans” e “natura naturata”. Como natureza “naturans ”, é substância, ou Deus. É eterna, e infinita, causa e efeito, essência e existência. Nesta “essência” há, ou julgamos ver, um feixe (infinito?) de possibilidades, algo que nos obriga a evocar o conceito de “potencialidade”, em Aristóteles, conceitos espinosano e aristotélico, ainda que diferentes, tão fecundos que hoje abrem caminho de novo entre as ciências. Virtualidades. Não transparece uma imagem fechada do mundo e da vida, mas perfila-se um largo horizonte de possíveis e de mudanças. Como interpretou Deleuze em belos textos, a substância espinosana é infinitamente expressiva ou criadora.

E há uma diferença entre essência e existência: nas coisas separadas, passageiras e finitas, a essência não coincide com a sua existência, mas na substância única, eterna e infinita, desprende-se necessariamente da sua essência a sua existência.

Por isso a existência de Deus (ou da Substância) pode ser demonstrada, isto é, deduzida do conceito de essência de Deus (a Natureza).

O ser da substância é, ao mesmo tempo, necessário e livre, já que não existe causa alguma que mova a substância à ação que não seja da sua própria essência. A imagem de uma racionalidade livre e socialmente ética revela-nos a imagem de um Deus livre, e não um Deus determinado a agir por fatalidade: um tal comportamento corresponde melhor a máquinas e a servos.

A coisa individual não se desprende da substância como de sua causa próxima. Só pode derivar de outra coisa finita. Por isso, não possui liberdade absoluta.

 

Os modos constituem o conjunto das coisas finitas; modo é aquilo que não existe por si mesmo, mas sim em outro, ou por outro. A substância é única, a sua essência exclui toda a pluralidade. Pelo contrário, os modos são infinitos. Pontos de uma recta. A natureza, como substância, existe em si mesma, por si mesma, com todas as suas propriedades, com independência e à margem da mente. A mente infinita poderia captar a substância – em todos os seus tipos e aspetos - como infinita. A nossa mente, porém, não é infinita. Por essa razão percebe a essência da substância como infinita somente em dois sentidos: primeiro, como extensão, e, segundo, como pensamento.

O homem, como objeto do conhecimento, não constitui exceção alguma na estrutura geral do mundo. Tudo que é humano, pode submeter-se à análise tal como qualquer outro fenómeno da natureza.

Daqui, Espinosa arranca para a ética. Ciência que deduz as suas normas das leis objetivas dos atos humanos, e não de valorações subjetivas. Naturaliza a ética, ao mesmo tempo que a “socializa”.

  Bento Espinosa, foi pioneiro porque tratou a psicologia dos atos humanos como um cientista estuda os fenómenos, buscando leis, ou seja, regularidades, “descendo” ao mais simples e fundamental, à “mecânica” (no sentido de “mecanismos” de que falou S. Freud) das paixões ou afetos. Sublinhava com ênfase dois tipos: alegria e tristeza. Qual a sua causa? A tendência de todas as coisas a conservar a sua existência. Não nos guiamos sobretudo pela atração do bem, nem pela rejeição do mal, mas sim pela tendência à autoconservação e ao benefício próprio. A virtude é exclusivamente potência humana, e esta é determinada somente pelo esforço com que o homem deseja conservar a sua existência. Nega a independência da vontade relativamente aos seus motivos, a nossa natureza é necessariamente dependente das paixões e dos afetos.

 A coisa que existe necessariamente (ou é determinada) pode, ao mesmo tempo, ser livre se existe por necessidade somente da sua própria natureza. Neste sentido, é livre, em primeiro lugar, a substância Natureza, pois que a sua existência deve-se apenas à sua própria essência. Em segundo lugar, neste sentido também é livre o homem, podendo emancipar-se da escravidão, sob determinadas condições. Qualquer afeção pode deixar de ser um estado passivo, quando fazemos uma ideia clara e precisa dele, desde que o conheçamos. A liberdade é, portanto, o conhecimento da necessidade. 

Conhecer não significa abandonar todas as afeções, permitir-se não sofrê-las. Tal como um mau hábito se cura adquirindo um outro hábito mais forte, assim o conhecimento se torna um afeto (afeção). O que é o amor? A alegria acompanhada pela ideia da sua causa exterior. E um tipo particular de amor é o amor pelo conhecimento. Estes sentimentos podem, assim, lutar contra outros e vencê-los. A humanidade do homem é uma conquista, e o homem um permanente campo de batalha. A nossa exposição faz pressupor em Espinosa uma compreensão dialéctica de cada indivíduo na relação com os outros e consigo mesmo. Correlação de potências. Possibilidade de conflito em cada encontro.

A alegria (proporcionada pelo conhecimento, por exemplo) pode, deste modo, conduzir-nos para uma máxima liberdade (rodeando-nos sempre de cautelas, ou de sistemas de alarme) – nem a inocência, nem a ingenuidade, cabem aqui, exceto nas crianças (que, por isso, precisam de proteção e educação). Nesta guerra de afetos, usamos um espécie de linguagem bélica: repressão, astúcia, cautela, desconfiança. O homem é um ser ativo e a vida uma série de atos de dominação/libertação, dependência/autonomia, criação/conservação. A vida e a sociedade.

Certamente que podemos considerar o tipo ideal de vida, em Espinosa, demasiado redutor, ou seja, se for lido deste modo: será livre somente o sábio que renunciou à vida material... Contudo, é admirável a coerência da sua vida com o seu pensamento, numa época em que os prazeres materiais eram já abundantes (sobretudo na Holanda comercial e burguesa), e nada na sua biografia demonstra que ele houvesse aspirado aos negócios pelo seu lado lucrativo, contentando-se com uma situação digna mas frugal.

A imaginação desempenha um importante papel na conduta humana, no entanto ocupa o último lugar, ou grau, na escala do conhecimento. “Não somos nós quem afirma ou nega algo de uma coisa, mas é ela própria que em nós afirma ou nega algo de si mesma”. “Ela” quem? A mente...Ou seja, a ideia, quando o é (verdadeira), auto afirma-se, pois que a verdade é necessidade, não é por simples vontade ou capricho que escolhemos esta ou aquela como verdadeira, ela é evidente; ou ainda, entendimento e vontade identificam-se no ato de conhecer; é absurdo que alguém diga: essa ideia é verdadeira, mas eu quero que ela seja falsa! Podemos fugir da luz do dia, mas não eliminá-la. Não temos nós esta experiência de uma verdade que nos persegue porque nos magoa? Quando se sublinha o carácter necessário das coisas (e das causas), perdemos em liberdade?

A descoberta das ideias (ou são elas que nos descobrem a nós?) e a sua expressão, não acontece, no entanto, de fora para dentro, porque elas não são entes, mas atos do entendimento e da vontade; envolvem-se de consciência e de emoções. Consciência e Inconsciente?

São três os géneros de conhecimento, e, a cada um deles, corresponde determinada forma de consciência e determinados afetos. A equivocidade reina no primeiro género, o mais inferior. Aqui, das coisas, temos apenas sinais, ou signos, frágeis indicações, mais atmosféricas que os sinais de trânsito. Na Psicologia contemporânea dizemos ícones, esquemas, estereótipos. Ideias inadequadas e paixões correspondentes.

O segundo género é composto de noções comuns – ideias gerais. Ainda não são definições, porque estas cabem apenas no terceiro género; nem são princípios, pela mesma razão. O termo “cavalo” não explica, nem expõe a essência do animal; os termos “amor”, “esperança”, etc. Mas produzem afeções, por associação e analogia. De simpatia ou antipatia. O primeiro género permite a sobrevivência; o segundo a integração e a convivência (obedecer, desejar, conhecer por meio da ciência). Com os dois géneros conseguimos alcançar certezas somente por mediações; no terceiro, as ideias impõem-se pela evidência e precisão, por intuição. O método é conhecer pelas causas. A causa adequada é o critério do conhecimento verdadeiro. O conhecimento humano está sempre dependente do conhecimento das causas que produzem os efeitos; só uma mente divina poderia escapar a isto e “ver” o todo de uma só vez...Estamos condenados ao “encadeamento”. Por definição conhecer o efeito é conhecer a causa. A mente é suficientemente potente para vir a compreender que tudo é necessário, isto é, que o que existe foi determinado a existir e a produzir efeitos por meio de uma ligação infinita de causas. Apresenta-nos aqui uma atitude genética: a descrição de um fenómeno passa pela sua explicação.

Os conceitos obedecem, por conseguinte, a uma ordem genética de construção. Ambicionar captar a ordem lógica das coisas, é ambicionar a construção de sínteses; quando são adequadas, constituem o supremo ato da inteligência, e verifica-se nos produtos mais conseguidos dos grandes espíritos. As melhores definições são as que explicam a geração de uma coisa (disse Hobbes, e Espinosa retoma). Que é um círculo? A rotação de uma reta. Não existem critérios a priori, extrínsecos à verdade e que permitiriam reconhecê-la; é na medida que conhecemos que os critérios se estabelecem, durante e não antes. Se para forjar o ferro, os homens precisam de um martelo, este só se produz no ato de forjar, e no processo se vai aperfeiçoando. O papel da prática assume assim, em Espinosa, toda a sua importância. Atenção à génese, atenção ao processo, atenção à prática – eis exemplos de teses admiráveis e percursoras. Construir, progredir em ato, isto é, atualizar, exprimir – tudo anúncios carregados de modernidade. Vemos Espinosa como um artesão, um operário, que foi, usando exemplos extraídos da sua atividade, e não apenas retirados da geometria. Um formidável intelectual, operário, artesão...Manuseando coisas delicadas, polindo, construindo, percebeu que aquilo que melhor define o homem é a produção, e, sem os produtores, não existiria mundo humano. A dignidade do trabalho criador (ainda que muitas vezes rotineiro e reprodutivo), a dignidade do trabalhador. Na organização de uma sociedade pacífica, os homens agem expressando  paixões positivas que fomentam a unidade do corpo social.

Há sentimentos que repugnam à Razão – como a esperança e o medo, a sobrestima e o despeito, a comiseração, a indignação, a humildade, a tristeza, o arrependimento, o orgulho máximo. Mas há outras, como por exemplo a solidariedade, o contentamento de si, a autoafirmação, que a favorecem e cujo exercício robustece as capacidades racionais. Devemos recorrer à imaginação para aumentarmos a potência da mente. A mente é também o poder e a necessidade de imaginar aquilo que aumenta a potência de agir do corpo. Ou seja, trabalhemos sobre as nossas paixões, e sobre as dos outros, de modo a que as condutas não repugnem demasiado à razão. Valorizemos o conhecimento, mas saibamos que nenhum conhecimento modifica a fragilidade da condição humana, essas naturezas apaixonadas que vêm o melhor mas praticam o mal. Uma paixão só se combate com uma paixão mais forte. Um hábito com outro hábito. A razão não deve criar ilusões excessivas (cegas) sobre o seu poder de eliminar os afetos; ela própria deve, para melhor combater os piores, transformar-se em paixão, em afeto. A paixão da Razão.

O conhecimento intelectual, por conseguinte só por si não leva à ação. Espinosa (na ÉTICA) persegue um objetivo muito concreto: a procura da felicidade. Valorização de tudo que nos contenta, daí o valor supremo da alegria, é o desejo de ser feliz que comanda o processo ético. O mal não reside na Natureza, mas na nossa imaginação e nos nossos sentimentos tristes. O ser, a essência da Natureza é o bem; o ser e o dever ser coincidem.

O desejo diz respeito ao homem, mas está presente em todas as coisas sob a designação de “conatus”. É um esforço universal de perseverança e de resistência, e de apropriação, e é uma determinação da Substância, visto que esta é eminentemente ativa e expressiva. “Potentia” e “conatus” são equivalentes (“potentia sive conatus”). Conservação do ser próprio, eis a essência de cada coisa. Em todo o real circula um desejo e uma afirmação de ser. Como não evocar aqui Ernst Bloch?

Que nos ensina a filosofia? Que a realidade última é infinita, que essa realidade tem de conter necessariamente em si mesma todo o ser. Deus não pode estar fora do mundo.

Relativamente ao método, como verificamos também em Deschamps, o que é mais importante não são os dispositivos técnicos da geometria, mas a dedução lógica de proposições extraídas de definições que expressam ideias claras e distintas e de axiomas evidentes por si mesmos. E mesmo as definições não são tão indispensáveis como surgem, na verdade não é obrigatório organizar a filosofia a partir de Princípios; várias partes da ETICA não se desenvolvem à maneira da Parte I, e o Tratado Teológico-Político já contem o essencial das teses defendidas na ÉTICA.

(Dom Deschamps afirma amiúde a necessidade de se estabelecer um bom “princípio”, e quando critica os outros philosophes, o próprio Espinosa, é o “princípio” deles, ou a sua falta).

Relativamente à substância divina, em Espinosa, ela deve ser considerada como anterior tanto na ordem ontológica como na ordem das ideias. Em Deschamps assiste-se à anterioridade da categoria Tout. A Existência determina o nosso pensar, a nossa existência natural, a nossa linguagem, mesmo a mais comum. Quando dizemos sim e não, já intuímos o carácter contraditório da Existência. Pensamos nela porque existimos. Somos infelizes porque não a compreendemos.

A substância, para Espinosa, é “causa de si mesma”: explica-se por si mesma e não por meio de uma causa externa; a definição de substância implica, portanto, que a esta é completamente dependente de si mesma, não dependendo de nenhuma causa externa, nem para a sua existência nem para a dos seus atributos e modificações. Dizer tal coisa é dizer que a sua essência compreende a sua existência.

“Por ‘atributo’ entendo aquilo que o entendimento percebe como constituindo a essência de uma substância.” Por conseguinte, segue-se que, se duas substâncias possuíssem os mesmos atributos, possuiriam a mesma essência; nesse caso não haveria razão para falar delas como “duas”, porque não poderíamos distingui-las. Porém, se não pode haver duas ou mais substâncias que possuam o mesmo atributo, a substância não pode ser limitada ou finita. Tem, pois, que ser infinita. Situamo-nos no âmago da Refutação do princípio de Espinosa, redigida por Deschamps.

A substância infinita tem que possuir infinitos atributos. “Quanta mais realidade ou ser possui uma coisa, tantos mais atributos terá.”  Cada atributo expressa uma essência eterna e infinita.

Em Espinosa, Deus não se distingue da natureza; se distinguisse, se existem outras substâncias que não fossem Deus, Deus não seria infinito.

Em Deschamps, aquilo que ele denomina Deus-não criador (Tout) distingue-se de Deus-criador (Le Tout)? É por isso que ele fala em “dois seres”, refutando Espinosa? Ou, de facto, Deus-criador e Deus-não criador não são mais do que as duas perspectivas com que podemos falar da Existência? Eis é a questão.

 

Os conceitos e as questões que mais aproximam Dom Deschamps, de Espinosa, parecem-nos ser o lugar determinante do conceito de natureza, de uma natureza dotada de uma ordem racional e necessária; uma conceção da totalidade contendo simultaneamente uma dimensão ontológica e gnosiológica; a adequação ou desadequação - o acordo- do corpo e da mente e de cada corpo com os demais, com esse todo; os dois atributos do todo: o infinito-eternidade e o finito-duração; os três géneros de conhecimento e, evidentemente, a possibilidade de transportar o conhecimento da substância única para uma radical reorientação da nossa existência.

Será que a crítica radical da civilização do “meu” e do “teu” e a consequente utopia da vida campesina, o mais absoluto igualitarismo que dissolve a individualidade egoísta, em Deschamps, o exclui do grupo dos neo-espinosistas? Eis a questão. Torna-se muito difícil aceitar que Deschamps fosse de todo insensível à personalidade e ao modo de vida de Espinosa: como é possível que não tenha visto nele um homem bom e sábio, cujas virtudes e modo de existência tanto se aproximam das virtudes que ele próprio, Dom Deschamps, aconselha antes do estabelecimento da sociedade ideal - o estado de costumes -, e que serão, afinal, traços comuns da moralidade que vingará nessa sociedade do porvir? Como tentar ignorar que a salvação e a beatitude de que fala Espinosa – uma comunidade onde o consenso se sobrepõe ao conflito sem o excluir - ecoam estridentemente no sistema de vida comunista de Dom Deschamps?

Por tudo isto e o muito mais que fica por dizer, Espinosa foi um perseguido pelos poderes dominantes, pelo dogmatismo e fanatismo, ostracizado em vida e depois da morte. Os seus discípulos recorreram ao disfarce para transmitir as suas ideias dele, parecendo que as censuravam. Filósofos de maior ou menor categoria esforçaram-se por resolver as antinomias que Bento resolveu, a seu modo, pelo monismo mais original que se conhece. É flagrante a aproximação do abade de Poitou da vida e da filosofia revolucionária do ilustre descendente de portugueses. Ambos quiseram salvaguardar a moral que o cristianismo prometia. Em Meslier, Morelly, Deschamps, Mably, a realização efetiva dessa promessa de igualdade exigia uma sociedade adequada.

 

Conclusão

A Moral ocupou um lugar central na filosofia e nas utopias desses séculos passados, um papel decisivo nas lutas ideológicas dos intelectuais pela abolição dos privilégios da classe dominante. D.D. intitulou de “Moral” a 2ª Parte do seu sistema, onde defende uma revolução pacífica mas radical. O livro mais célebre de Bento Espinosa intitula-se ÉTICA. A realização da felicidade de todos e de cada um exprime o excedente utópico do programa político das elites burguesas. O Testamento de Jean Meslier é um grito vibrante pelo direito dos trabalhadores à felicidade. A geometria do desejo, de Espinosa, não pretende senão justificar o dever de lutarmos pela felicidade. Para Deschamps a felicidade só se alcança pela abolição da propriedade privada.

 

“porque a paz […] não consiste na ausência de guerra, mas na união ou concórdia dos ânimos.” Espinosa, Tratado Político

 

P.S. A teoria política de Bento Espinosa e o denominador comum das utopias sociais é tema para outra ocasião.

 

Bibliografia fundamental:

Vernière, Paul, Spinoza et la pensée française avant la Révolution, Presses Universitaires de France, Paris, 1954.

 

Nozes Pires

Torres Vedras, fevereiro 2013

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