Crítica da Razão Consensual
Nozes Pires
Explicação
Este livro não é um tratado de filosofia, apesar das proposições filosóficas que contém. Escrevi-o através de um encadeamento de raciocínios quase casual, sem certezas, seguindo o rumo das interrogações de um pensar inquieto com o presente, em um esforço deliberadamente destrutivo do mero consentimento, mas não do diálogo de sentidos. Aquilo que mais prezo é a dúvida, pois ela é que é a água e a asa.
O estilo respeita o movimento do pensar, sincopado, singrando pelo acaso das memórias que vinham ao limiar da consciência, vencendo a amnésia, topando aqui e ali com filósofos e cientistas que o grande público conhece, ou pode perfeitamente conhecer se quiser. O movimento do pensar conduziu-me do mais geral especulativo a campos mais específicos da acção social, regressando ao ponto de partida. Procurei, deste modo, reproduzir o movimento dialéctico, o qual é, de certo modo, circular. Do Ser em devir, das virtualidades às actualizações, que contêm profundos antagonismos.
Introduzi, de quando em vez, pequenos entrechos ou incursões nas lembranças, para aligeirar os assuntos e para ilustrar o facto de que a filosofia é uma meditação do vivido, como se diz nas escolas.
Não sei se gostava de possuir soluções, seja como for não as possuo. As perguntas que faço a mim próprio transmito-as ao leitor. Em conjunto continuamos a construir interpretações e alternativas. Com a expectativa de que as soluções de outros, que não pensam exactamente como nós, podem ser melhores. O direito à livre expressão não pode ser restringido somente àqueles que pensam como eu.
Coloco-me um certo número de questões que me pareceram decisivas para a minha acção social, deduzindo que interessam a mais gente. Por exemplo, O que é realidade? Que relações unem o Ser ao Pensar? Existe algo que possamos classificar de Progresso? Que é O Possível? Que melhor sociedade podemos imaginar?...
A ave de Minerva ergue o seu voo ao crepúsculo. Se alguma vez teve, como julgo, os olhos bem abertos, hoje querem cegá-los. O consentimento repousa em formas de obediência que expulsam a liberdade e a dignidade. Contraponho à Razão Consensual um racionalismo realista e utópico, que quebra as manobras do pensamento único e dissolve a pseudo contradição entre utopia e realismo.
Aquilo que critico é a tendência : 1. Para se impor consensos por motivos exclusivamente práticos, pragmáticos, imediatistas, sem estudos prévios, análises fundadas na experiência, sem debates suficientemente prolongados que, a realizarem-se, revelariam, outrossim, divergências; 2. Para os media, ora dotados de todo o poder e impunidade, formarem uma opinião pública acéfala e sem vontade própria; 3. para aqueles mesmos que provocam as crises (sociais, políticas), servirem-se de consensos para se safarem delas, sempre à custa dos mais crédulos. Estas tendências comportamentais descambam normalmente em propósitos manipulatórios, demagógicos, populistas. Veiculam quimeras : “aquela espécie de consenso que surge quando cada indivíduo presente candidamente expressa o que realmente sente e concorda sinceramente com os sentimentos expressos pelos outros presentes [equivale a uma] forma de harmonia [que] é um ideal otimista” desnecessário para o funcionamento regular da sociedade, como disse alguém algures.
Neste ensaio falo de utopias, e até defendo algumas, sem que me limite a constatar a sua existência, contudo separo as águas. Esse “ideal otimista” a que acima faço referência é uma simples quimera, pertence ao domínio daquelas utopias fracas e abstratas, a que, injustamente, nos habituámos a reduzir todas as utopias.
Não existem hoje filosofias fortes, nem sequer ideologias fortes, e é por isso que nunca se viram tantos a convencerem os demais da necessidade de consensos. A proliferação de organizações que reivindicam as mesmas finalidades pode não constituir uma fraqueza, mas uma cura para hegemonias e dogmatismos, com a condição de se porem de acordo nos meios. Porque é nos meios que residem os maiores problemas.
Não existe possibilidade alguma de consensos totais em sociedades estratificadas, profundamente desigualitárias, que se limitam a reproduzir as injustiças, a violência, o despotismo, a corrupção. Nem de consensos duráveis, numa época de vertigens. O que importa é pormo-nos de acordo quanto aos meios de lhe resistir e de lhe por cobro. E duvido muito que consensos reais sejam possíveis, pelo menos de modo sincero, entre Estados e entre potências. O poder, seja em qualquer das múltiplas formas e graus, compromete os consensos verdadeiros. Levo a minha dúvida metódica até ao interior das comunidades científicas e filosóficas, onde os consensos são raros, e mais difíceis na filosofia, embora desejáveis os acordos e os protocolos.
Seja como for, a expressão “politicamente correcta” do consenso tem vindo a ser usada e abusada no contexto da ofensiva dos ideólogos do liberalismo e, sobretudo, das social-democracias que tudo apostaram na tese do “bloco central”. Na verdade o que uns e outros desfizeram foi o contrato social.
Certamente que as ditaduras prometem um consenso geral definitivo, mas seríamos todos parvos se acreditássemos que o silêncio equivale a um acordo voluntário. Certamente que as narrativas anti-utópicas, como o célebre livro de G. Orwell, trouxeram cepticismo e inquietação a todos aqueles que acreditam candidamente em utopias do acordo geral. Mais impacto teve sobre muitos de nós o conhecimento da degenerescência do Estado Socialista Soviético, e o seu colapso final.
Capítulo Um
Considerações sobre a utilidade da filosofia, ou um ajuste de contas
Nunca , como nas últimas décadas, se publicaram tantos livros de filosofia, de autores clássicos da história do pensamento, de reputados filósofos contemporâneos, especialistas portugueses, de obras para uso escolar. É legítimo concluir do elevado e crescente interesse pelos assuntos da filosofia, que a Escola se encarrega de promover e que o grande público parece haver descoberto como objectos utilitários. Abstenho-me aqui de explicitar os motivos que regem esta notável oferta e procura. Sucede apenas que constato serem poucos ainda os ensaios de cariz estritamente pessoal, assumidos na primeira pessoa, que não se confundam com a exposição, por vezes brilhante, das ideias de outrem, e que, sobretudo, analisem e percorram, segundo uma perspectiva pessoal, temas de ontologia perfeitamente especulativos, por um lado e, por outro, acontecimentos sociais e políticos que preocupam a vasta massa de cidadãos que não são filósofos de profissão
Padecemos ainda, parece-me, de uma insuficiência de obras que se confrontem publicamente com as graves debilidades que, segundo opiniões legítimas certamente, indiciam a “senilidade” dos marxismos, e que, porventura, não sejam senão manifestações de mais uma crise, mais uma, de rearrumação de forças, práticas e teóricas, de um processo que ainda não se encerrou. Talvez se trate, sobretudo, de dois acontecimentos que andam juntos: Primeiro, de um propositado silenciamento, que não há muito em Portugal se classificava de censura; Segundo, de uma amnésia defensiva, que remete os marxismos para uma doença que se contraiu na juventude. A estes há que acrescentar uma terceira proposição : algum enquistamento em posições dogmáticas; o descrédito provocado pelo modo como se exerceu, e perdeu, determinado Poder, parece gerar, num polo oposto, um género de platonismo evasivo, uma crença teimosa do tipo “Nós temos razão!”. Apesar de tudo.
Se no primeiro caso referido a explicação não pode ser outra senão a censura que os poderes político-mediáticos executam, com a colaboração de intelectuais dignos de toda a suspeita, no segundo e no último caso tratamos com autocensuras, muito embora uma tente justificar abandonos, e a outra recusas em abandonar posições que a vida já demonstrou serem desadequadas.
Este livro é também um ajuste de contas com a minha própria consciência filosófica. Espero que sirva de alguma coisa para outros mais que, tal como eu, quiseram “salvar o mundo”. Porque, na realidade, não tenciono esquecer.
A interrogação que eu coloco, desde logo, é esta : tem ainda a filosofia alguma utilidade? Que propósito comum une tantos e diferentes pensadores ao correr dos séculos? O diálogo filosófico provoca uma desagradável dor-de-cabeça, ou, pior ainda, uma dor-de-alma? Consentir é dialogar?
§1. A filosofia tanto é a meditação estóica sobre o que vale e não vale a pena, como uma sinfonia que põe o Ser a dançar. È quase sempre um modo de ganhar a vida, desde o advento dos Estados burocráticos.
A filosofia não faz doutrina, nem endoutrina, não formula as leis mais gerais sobre a consciência e a história. Livrem-nos desta hegemonia de uma “ciência das ciências”...Contudo, gostaríamos de saber se a filosofia nos guia do “reino da necessidade” para o “reino da liberdade”. Se alguém demonstrar que tal não é mais que puro idealismo, então mostra - ou seja, indica uma posição, não nos im-põe - a necessidade lógica e prática da luta pelo aumento, quantitativo e qualitativo, da liberdade. A filosofia não demonstra, mostra. Não copia, redutoramente, este ou aquele método de uma ciência particular, não estabelece hipotecas, mas hipóteses. Anuncia, mas não promete. O dever é sempre individual, responsabilidade. A garantia também.
§2. Dos filósofos, uns, ocupam-se do tema da morte e, outros, do tema da vida. Procedem bem todos eles, pois meditam sobre o mesmo : a salvação. Aqueles que se ocupam da morte, construíram um ponto de transcendência, a partir do qual avaliam a existência. O estoicismo, por exemplo, é uma filosofia da morte, ou seja, uma preparação, tem a morte como referência terminal e sempre presente. Este tema, por conseguinte, não é propriamente uma invenção do século vinte. Outras grandes correntes divergem : o espinosismo e o marxismo.
Certamente que a fenomenologia da existência, a ética, a política., etc., não constituem os únicos objectos de investigação, e isto verifica-se em áreas diversas. Não faz, porém, qualquer sentido que um filósofo não se confronte com os problemas decisivos da vida e da morte, que se encontram na origem da filosofia ocidental (e das meditações orientais), que distinguem a démarche desta relativamente a temáticas ditas científicas, e que acabam por preocupar qualquer indivíduo comum. O erro das ciências e de não poucas filosofias foi menosprezar este assunto, sacudir estes problemas, e abandonar o terreno a diferentes formas de espiritualismo. A ideologia mercantilista contemporânea, explorando as preocupações com a saúde, os novos exorcismos para lidarmos com a morte e com os mortos, as promessas de felicidade que os produtos prometem, revela perfeitamente como estes assuntos interessam a todos. De resto, nenhum dos filósofos mais notáveis contemporâneos abandonou nunca a ontologia. E a morte é uma questão ontológica. Claro está que não possuímos hoje as mesmas certezas de outrora, e neste sentido reflectimos o cepticismo reinante, mas as interrogações permanecem as mesmas. Como sempre acontece, as grandes viragens da filosofia exigem regressos.
Não seria difícil tabelar a longa série de exemplos de grandes filósofos que tentaram saídas salvadoras, conforme o tempo e o lugar, para situações-limite : a morte, o sofrimento físico e moral, as dores da submissão, os infernos terrestres. Muitos deles cantam a alegria, mas escalpelizam as tristezas. O que propõe Platão na República senão uma comunidade feliz? E Aristóteles na Política e na Ética a Nicómaco (seu filho)? Santo Agostinho em A Cidade de Deus? Espinosa na Ética? Marx e Engels no Manifesto do Partido Comunista?
Não quero com este ponto de vista alargar a significação do termo salvação até ao seu máximo significado : a salvação do mundo, é demasiada ambição para a filosofia e para um filósofo. No entanto julgo adivinhar nela, e nele, uma profecia e um profeta. Esta ambiguidade revela-se como um deslize nos textos daqueles que reconhecemos como mestres de pensamento. Na verdade, não é próprio da filosofia contentar-se, acomodar-se, com o bem pessoal. Quanto mais sobe à raiz, mais ela é altruísta, e tem como horizonte a própria condição humana. Só a ideologia propaga o mal, quando propaga. Quando a filosofia abandona esta intenção, deixa as mãos livres a toda a espécie de charlatanice.
§3. Salvação é a acção de escapar à morte, à destruição ou à ruína (do latim salus, que é também conservatio); e salvador é aquele ou aquilo que nos restitui um bem fundamental, que o faz conservá-lo, é libertador ou libertadora. A salvação é também o leitmotiv das utopias. Entendo por “salvação” um percurso redentor que culmina em qualquer parte (ainda que seja parte nenhuma, como sucede nas utopias). Deste modo, trata-se de saber se é a viagem, se é o termo, que mais interessa àquele que medita. O tema da salvação não é estritamente coisa individual, mas, antes, comum, consoante o grau que, historicamente, se atribui a este conceito; e isto é tanto verdade no âmbito de uma filosofia religiosa, como quando não o é. Max Weber mostrou de que forma a racionalização constituiu um elemento fundamental de colonização do mundo pela Burguesia; sabemos hoje como este processo provocou tantas resistências...O bom filosofar, no sentido forte, começa por uma crítica do passado-presente, para conceber um mundo melhor. A filosofia, regra geral, não se compraz com a visão do presente, excepto quando encontra neste potencialidades positivas. O pessimismo, descrença do futuro, revela, da mesma maneira, uma forte insatisfação pelo presente.
Quer nos salvemos pelo céu, quer nos salvemos pela terra, é o nosso confronto com a vida e com a morte, com a transformação do ser que ocupa a meditação.
Salvação pela filosofia não é o equivalente das mensagens religiosas; aparenta-se, quando muito, com a mensagem original do budismo. Nesse parentesco revela-se um denominador comum: a orientação utópica. Ambos acreditam que um determinado saber salva das armadilhas das ilusões.
§4. Sempre a meditação filosófica foi escrita, e esta equivale à filosofia. Inclusivamente aqueles que pouco ou nada escreveram (ou simplesmente deles nada sobreviveu), tiveram discípulos que escreveram por eles; na realidade, escreveram sobre eles mesmos. A filosofia pode evidentemente exercer-se pela palavra falada (e por outros modos), mas tem sido, sobretudo, um modo específico de linguagem escrita. As suas vantagens e as suas limitações, obedecem aos parâmetros da expressão escrita. O texto permite um maior distanciamento, e é nisso que também consiste a argumentação racional..
Não é filosofia apenas uma exposição de conceitos. O que lhe é peculiar é a produção e o trabalho conceptual, mas os estilos são vários e todos eles adequados (ensaios, diálogos, aforismos, etc.). Contudo, não é lícito concluir-se que o texto filosófico é pura literatura. Esta, opera, sobretudo, sobre ficções e cria metáforas, e se visa o raciocínio é pela emoção que o alcança. É recorrente na história do pensamento filosófico o esforço de muitos autores para não serem confundidos com “poetas”, e encontraríamos numerosos exemplos de teses que procuram demarcar a filosofia relativamente à Arte. A arte talvez não consista em explicar e resolver, mas em sentir e descrever, como dizia Albert Camus; começa onde o pensamento termina. Ou, ao contrário do que pensava F. Nietzsche, resta-nos a arte para não morrermos de mentira. De algum modo se cruzam arte e filosofia; se mais não for, porque nas suas vertentes utópicas, ambas profetizam uma comunidade estética para a qual as relações entre os indivíduos, e entre eles e a natureza, não sejam motivo de tristeza, mas de pura alegria.
. Seja sob a forma de hierarquias ou graus de conhecimento, seja sob a reivindicação do estatuto de crença racional, os filósofos, de uma maneira geral, procuram excluir-se de determinadas formas de imaginação, de emoção, de persuasão. A rarefacção do conceito de Verdade, instalou de vez dificuldades de definição. Sabe-se como as filosofias da linguagem têm vindo a explorar este filão e uma importante orientação da fenomenologia se interessa quase exclusivamente pela análise do fenómeno artístico. Segundo creio, a confusão está instalada, e não sei se ela é, por si mesma, fonte de progresso. Na minha opinião, a análise de um fenómeno não significa produzir o fenómeno : a abordagem filosófica da Arte, não significa que se está criando música ou pintura. Do mesmo modo, o filósofo da ética não é, a mais das vezes, um modelo de virtudes. Perfilam-se relativamente ao estatuto da filosofia, duas distinções capitais : por um lado, distingui-la da ciência e, por outro, da Arte. E importava que nos debruçássemos com clareza sobre estas questões. Penso que muito embora a Verdade esteja hoje fortemente abalada, que haja sido expulsa, o desejo por ela não morreu. A crítica é a vocação por excelência da filosofia. Crítica de determinadas noções de Verdade, de substância, de ordem, de racionalidade, de dominação técnica, etc. Criticar não é necessariamente provocar a crise onde ela não existia, é manifestá-la, dá-la em presença ao conhecimento. O grande problema da filosofia é desvelar o que é, por detrás daquilo que a-parece. Daí resulta o seu papel crítico das ilusões, dos ídolos, das alienações. Ao tempo da ditadura de Salazar, a censura sobre determinadas filosofias indica bem o seu potencial crítico.
§5. O termo filosofia, o nome filósofo, é uma convenção; como trabalho social, especialidade, é uma divisão social do trabalho muito recente. Se os sofistas (de sofia, saber) deram origem aos mestres-professores (pagos pelos alunos, suportados de algum modo pelo Estado), não abandonaram, porém, a pretensão de serem filósofos (amigos desinteressados do saber), e muitos mereceram-no. A desacralização, a desantropomorfização do real, fazem das opiniões do sofista Górgias, por exemplo, um caso ímpar. Uma razão destrutiva percorre a filosofia como uma pulsão. Perdida, novamente achada, a grande ideia de Heraclito de que toda a permanência é uma pura imaginação, cobriu a filosofia de uma aura sagrada, à maneira da sabedoria oriental. O sage (sábio) achava-se investido do dom de decifrar os enigmas. Muitos antes dos “funcionários “ pagos pela República. Não sem antes passarem pelo estatuto de santos... Este legado, que é um desejo animado de perfectibilidade, não abandonou a filosofia. A essência desta, conforme a mais concreta das antecipações, definiu-a bem Marx :”a naturalização do homem, a humanização da natureza”.
Não existe evidentemente uma noção comum, unívoca, de filosofia. No seu âmbito académico ela é sobretudo exposição das teorias filosóficas. Mas quem determina uma teoria de filosófica? Sob que critérios se classifica este ou aquele pensador, cientista, escritor de ideias, de filósofo? Este ou aquele assunto? Através de dois critérios principais : institucionais (determinado pelo sistema de forças políticas, culturais) e pelo sucesso que alguns escritores conseguiram, nem sempre por mérito extraordinário, junto do público (onde reina hoje uma grande confusão). Aquilo que deles se exige, pelo menos em termos académicos, é que se hajam confrontado com filósofos do passado. Esta condição é tão legítima como aquela a que se obriga a comunidade de matemáticos ou de biólogos. No entanto, é mais controversa : porque razão tende-se a excluir Marx, Engels, Lenine, Gramsci, Lukács e outros?
§6. Na realidade todos podemos filosofar. A partir da instância primeira de que é real tudo que se dá em presença (o corpo é também a presença de outros corpos, o contacto é o primeiro tema da filosofia e, porventura, será o último). O princípio da filosofia não está mais na subjectividade radical, nem na pura objectividade exterior : encontra-se na relação, na partilha, na comunhão (de comunidade). Perguntar : porque é que isto existe (ou aconteceu)?, não é finalismo, é um perguntar pela finalidade. E é de todo em todo inteligente perguntar, e nunca é demasiado perguntar, porque razão é que se ameaça um povo, se ocupa um território, se eliminam crianças, se destruem habitações humildes ? Em nome de que causa, direito, Deus?
§7. Talvez o único objectivo da filosofia seja pensar o pensamento. Contudo, o pensar não bebe da fonte da consciência, nem é esta o seu termo imediato : a consciência, o mais das vezes, é uma falsa consciência. Além disto, pensar não é um acto espontâneo : pensamos sob uma coacção. Contradição, oposição contra uma força exercida de fora. Esta pretensa espontaneidade, se já é difícil num indivíduo livre e ocioso (o mito do ócio como condição da filosofia grega), mais difícil se torna para os homens que o não são, obrigados a vender o seu trabalho vivo. A o-posição cria uma dis-posição para a pergunta e para a acção. A pergunta é : Que fazer?. A resposta é : pois então faça-se.
§8. As filosofias, enquanto textos narrativos, construem-se por meio de secantes com outros textos de índole diversa. Não somente por causa da erudição dos autores, dos gostos estéticos que adoptam de momento,(é assim que se solta a música ou a mais pura literatura de alguns textos famosos), nem sequer ainda por causa do auditório que se tem em vista (a explicação que Platão dá do uso dos mitos por ele), mas também, talvez sobretudo, porque a mente humana, como comunicação, é memória, e aquilo que se escreve é uma história que se conta. Daí que se possa ler as filosofias como entrechos e desfechos, tomar os grandes conceitos como figuras. Assim procedeu Hegel e as suas célebres “Figuras da Consciência”, Nietszche e a sua “Criança” e “Zaratustra”, Espinosa e o seu “homem triste”, Platão, Santo Agostinho, Feurbach, Marx e a “classe burguesa”. Eis um dos traços que me conduziram a supor a proximidade entre as filosofias e as utopias.
§9. Começo pela certeza/incerteza da existência das coisas, por via empírica (o corpo sente outros corpos, amigáveis/desagradáveis). Quando exprimo ou explicito, num segundo momento já a minha linguagem transporta uma teoria qualquer, um significado. Observar é interpretar, qualificar e valorar (agradável/desagradável, útil/inútil, justo/injusto), classificar (ordenar numa classe qualquer), ajuizar (oprime-se/liberta-se).
§10. Porque é que existe a realidade e não o nada? O ser é, mas o não-ser pode vir a ser também. Aquilo que se dá em presença, não é apenas aquilo que eu classifico como é (duro/impenetrável/sólido), mas também aquilo que advêm. O não-ser não é, pois, uma contradição absoluta, impensável e impossível. É também, talvez sobretudo, o Possível. A pre-sença não é nunca coisa definitiva, transporta um quê de diferença (um quantum de diferença), de antecipação ao que é agora e aqui. Não se trata de actualizar uma potencialidade; trata-se, pelo contrário, de ir além do actual, sacudi-lo, largar a máscara petrificada do que somos, realizar as virtualidades do ser.
Não queremos dizer, com isto, que escolhemos através de uma liberdade absoluta que recebemos como dote. Na verdade, somos escolhidos em grande medida. O que queremos dizer é que onde há multiplicidade há unidade, que esta unidade não é apenas soma de elementos, mas antagonismo; que o antagonismo é força que produz movimento.
§11. Não começo, portanto, pela demonstração do Ser em geral, nem pela introspecção radicalmente subjectiva. Começo pela consciência do futuro, pela consciência do Tempo. Que é um vir a ser. A consciência da morte é um projecto de vida.
§12. Os homens nasceram para o prazer, segundo uns; para o sofrimento, segundo outros. Na realidade, nasce-se para ambas as coisas, pois ambas se dão a ver Estar vivo é, já por si, uma batalha permanente contra a ameaça do sofrimento e da morte. Com extremo desagrado viemos à luz e respiramos, com relutância morremos. Se não fosse o receio, não existiriam a maior parte dos prazeres. Se não fosse o sofrimento, ou o medo dele, não inventaríamos estratégias de remediação. Distrair-se é próprio do homem. Mas também é próprio dele, invejar aqueles que gozam; e revoltar-se justamente com aqueles que gozam à sua custa. Mais próprio e essencial ao ser vivo é o desejo de viver, que o desejo de morrer. Todavia, destruir, matar, pode ser uma afirmação (negativa) de vida : matar para não morrer (não penso apenas nas guerras e nos homicídios, mas no processo de alimentação, de cura das doenças, ou de praticar o sofrimento em outros para evitar o meu próprio sofrimento...).
§13. Podemos distinguir-nos dos outros animais por muitas formas, onde não devemos incluir a capacidade de interpretação, visto que eles também a conseguem. Convinha distinguir-nos de dois modos principais : somente nós adquirimos consciência do futuro e, em primeiríssimo lugar :
“A diferença essencial da sociedade humana relativamente à sociedade animal é que os animais, no máximo, recolhem, enquanto os homens produzem. Esta única, mas capital diferença, só ela, torna impossível transpor sem mais leis das sociedades animais para a sociedade humana (...) A produção dos homens atinge, portanto, num certo estádio, um nível tal que são produzidas, não só necessidades indispensáveis, mas também prazeres de luxo, ainda que primeiro só para uma minoria. A luta pela existência – se quisermos, por um instante, fazer valer aqui essa categoria – transforma-se, portanto, numa luta por prazeres, por meios não simplesmente de existência, mas por meios de desenvolvimento, (por) meios de desenvolvimento socialmente produzidos” (F. Engels, in Correspondência).
§14. Os homens inventam modos diversos de lidar com o sofrimento e a morte; contudo, essa diversidade é bem limitada e a imaginação encontra depressa a sua rotina.. A morte por velhice, aceitamo-la como natural, fatalidade do destino ou vontade divina; não a morte por razões que julgamos causadas por outros. O sentimento da injustiça está no princípio da consciência moral. No entanto, este princípio é usualmente obliterado quer pela religião, quer por outras ideologias. “Não matarás” é o mandamento primeiro, é um pecado grave. Muito embora haja evoluído o humanismo e a objectividade do Direito, tirar a vida a alguém foi seguramente recusável desde sempre por todos os povos. Apesar disso, tirou-se sempre a vida ao outro justificadamente, pela guerra, pela pena capital, pela fome. O que caracteriza a ideologia é o facto de excluir as excepções. No detalhe encontra-se o sinal da sua presença negativa.
Quando se ensaia uma explicação da morte, ela é abstracta. Aceita-se menos a morte daquele que se ama, do que daquele que se desconhece. Eis uma boa razão egoísta para as guerras.
§15. Na perspectiva de muitos filósofos, é o receio que se encontra na origem de todo o filosofar. Ou a angústia. Para outros é a diferença. Todo o verdadeiro filosofar começa pelo geral, contudo nem sempre sucede que este termo seja conceito; o primeiro passo é sempre uma determinada noção comum. Também podemos designar a falta, a cisão, ou uma força vinda-de-fora, na origem do filosofar. Apesar disso, preferimos realçar, sob a aparente unidade monolítica do real, a existência de conflitos e contradições. Podemos fazer do negativo e da diferença o fundamento, ou, antes, do Uno que se auto diferencia.
§16. Algumas destas formulações, sobre o que esteja na pro-vocação do filo-sofar, são contrárias, mas não se excluem: a cisão não é apenas interior, mas vinda de fora, como força que se opõe; a falta é também cisão, e é diferença de um ente para outro ente, de uma forma de existência com outra forma possível (desejável). Filosofar é também fazer humor, nos sentidos múltiplos da expressão alemã gut gestimmt sein – estar bem disposto ou de bom humor, donde stimmen = votar por (stimmen für jemand), concordar (überein), harmonizar. Estar de bom humor, utilizar o humor, é, portanto, dar opinião, ter voto, ter voz. Há espectáculos que só merecem a gargalhada de Epicuro e o riso de Bergson.
§17. Tratamos de ver, não somente de olhar. Ser curioso é próprio dos humanos e de outros animais. Mas cuidar em ver, ou seja, re-flectir, e, nesse acto, transformar-se, é mais próprio do que é filosofar. A sociedade mercantil da imagem, não promove a in-dependência do ver, mas a concupiscência prisioneira das novidades. O voyarismo como vício, e o voyeur como autómato. Entretanto, todos olham para o capitalismo, mas não vêm o segredo do Capital. Encantam-se com o seu fetiche, padecem sob o seu enigma.
§18. A estupidez é comum entre os homens. A determinadas formas de estupidez ninguém é imune, como o não foi ao sarampo. A pior estupidez é a estupidificação dos outros. Filosofar é apenas uma atitude que permite defendermo-nos da estupidez comum; toda a boa filosofia despreza-a. A literatura (e outras formas de arte) também representa esta atitude personificando-a e simbolizando-a. A filosofia explica-a por meio de conceitos, estabelecendo uma hierarquia dos valores do Conhecimento. Exemplo: o conceito de sabedoria apresenta-se sempre com um conteúdo de verdade e uma finalidade moral; ou, se preferirmos, pedagógica. A Verdade representa o melhor, o mais útil, etc. A filosofia transporta sempre uma pedagogia do género humano. No topo promete-se a beatitude ou a liberdade. A escalada ao pico do conhecimento é a paixão do filósofo alpinista.
§19. Deve-se esclarecer que, grande parte da filosofia, não descurou nunca a prática (moral, política, etc.). Concebemo-la hoje como o enunciado daquelas condições sociais que explicam as ideias, isto é, relações sociais determinadas historicamente. As ideologias comuns nunca são casuais, absolutamente pessoais, nem independentes do lugar e do papel que cada um desempenha, e que, muitas vezes, lhe foi simplesmente distribuído. Ou conformamo-nos com as regras, ou insurgimo-nos. O que antes era puro idealismo, ou seja pura ilusão, se abandonarmos estes quesitos, torna-se pura mentira (na filosofia não se admite a simples ignorância). Sempre houve filosofias preocupadas com as questões práticas, quer fossem respostas a perguntas essenciais sobre o significado da existência, quer fossem sobre a Justiça, etc. Entretanto é preciso reconhecer que passámos a atribuir à Filosofia uma origem derivada e um discurso diferido, imputando aos filósofos, aos “ideólogos”, o dever de colaborarem na transformação das condições concretas que geram a alienação. Diferido significa que a verdade da filosofia não se encontra exclusivamente nela, no texto, mas fora. A investigação teórica foi, desde sempre, um compromisso pessoal com determinadas formas de existência presente ou futura. Theoria significava contemplação (ver) : mas sabemos agora dos laços que ligam a teoria à prática. Estes laços encontraram apoio no papel prático das ciências e nos conflitos sociais e políticos. A demonstração clara do papel que a filosofia teve desde sempre, encontra-se na orientação ética- religiosa que a Igreja então (e ainda) lhe atribuiu. E esta orientação (diferenciada na interpretação) exprime claras relações com a política e a acção. Neste sentido o conceito de praxis não inventou uma realidade. Estendeu-a a outros domínios da realidade social. A categoria de praxis não se refere exclusivamente à acção intencional e consciente, inclui também os ingredientes inconscientes, emocionais e ideológicos, da acção humana; não se refere apenas aos actos individuais mas, sobretudo, colectivos; nem a uma putativa vontade livre, mas a um contexto relacional que lhes está na origem; nem apenas à actividade produtiva económica, mas também àquilo que é mental e simbólico, presente nessa actividade; e menos ainda à produção pela produção, que caracteriza o capitalismo contemporâneo : é precisamente contra isto que se perfila uma praxis libertadora, que começa pela crítica das finalidades da produção.
A interrogação que me coloco ( e à qual voltarei) é esta : os conceitos, forjados por Marx, consubstanciam o “movimento antiutópico” do fundador da Economia Política?
§20. Em filosofia designa-se materialismo aquela teoria que atribui o primado ontológico ao Ser material (natureza, sociedade). Eliminar o materialismo com o argumento de que baseia-se no “determinismo” (natural ou científico), de que considera a liberdade humana coisa ilusória, e que, portanto, reduz a liberdade a acontecimentos químicos e biológicos, é puro sofisma ou ignorância (vindo de um filósofo é simples mentira). Toda a história do materialismo moderno, desde, pelo menos, Helvétius (para não classificar, desde já, Espinosa como materialista), tem sido um longo somatório de considerações penetrantes sobre a influência dos condicionalismos sociais (e não apenas corporais), que, em Marx, alcançam valor incontornável de categorias da ciência social. Não nego as arbitrariedades, o acaso, o imprevisto, os actos gratuitos e absurdos...o que nego é que, sobre eles ou sobre uma inconsistente “essência” (doada por quem?), se pretenda convencer-nos de uma “faculdade do livre-arbítrio”. Aqueles que utilizam tais argumentos (que ressumam a ideologia e a má-fé) tombam, de resto, em contradições flagrantes, ao defenderem, em seguida, que a liberdade, é claro, possui causas, razões de ser...Pois é. Quem defende o “livre-arbítrio”, acaba defendendo que a liberdade não é apenas um conjunto de actos gratuitos. E mais : os defensores dessa “faculdade” providencial, concluem que “ a liberdade é a consciência da minha própria responsabilização por essa causalidade”. Afinal, Espinosa, que continua a ser um dos alvos desse ódio, disse-o melhor : o desejo do entendimento é conhecer o encadeamento causal. Quanto melhor conhecer e agir em conformidade, mais livre.
§21. Não posso estribar a filosofia que recomendo sobre a ciência, para não cometer o mesmo erro que Kant cometeu : Kant categorizou o conhecimento verdadeiro como sendo a ciência newtoniana ; ora, Newton estava errado, se não no todo, pelo menos em boa parte. Nenhuma ciência, nenhuma teoria, é definitiva, e a história ensina-nos que, de erro em erro, lá vamos acertando. Edificar uma filosofia “evolucionista” sobre os alicerces da teoria de Darwin, foi um erro, pois que faltava-lhe a genética. Digo “erro” referindo-me a extrapolações, morais ou políticas, que tomam uma dada teoria como fundamento seguro. Mais cauteloso foi Espinosa e, no entanto, acreditou demais no poder da axiomática.
Onde o cientista dogmático intervém, deve entrar em cena o Comediante, o Perguntador, que introduz a suspeita, a contradição, a possibilidade. As boas hipóteses estão sempre para além do quadro da observação e da experiência. Se a indução nos dá o provável, dá-nos simultaneamente o condicional, isto é, o possível. Como dizem os místicos, em todo o lado revelam-se epifanias, sinais indicativos de presença, silêncios ensurdecedores. A vocação (convocar, reunir) da filosofia é falar, fazer falar. Contudo, este actividade loquaz não deve confinar-se ao diálogo com vistas ao consenso, não porque o acto não seja meritório, mas porque o objectivo é quimérico a menos que seja uma ferramenta de acção política. Se já não é fácil dialogar com os semelhantes, mais difícil é dialogar com os inimigos que detêm a força para impor as regras.
§22. Não posso estribar a filosofia sobre a ciência, porque não saberia em qual : naquela que é determinista , ou nessa outra que admite a irreversibildade, a “flecha do tempo”, o devir? Einstein e a física quântica “clássica” versus física das possibilidades? Milenar dilema entre o “destino”, o tempo como “ilusão”, o férreo encadeamento causal, a liberdade humana? Entre os “átomos” e a solução pelo “vazio” e pelo clinamen? Dilema entre o Ser e o devir, que O Sofista, de Platão tão bem retracta até aos nossos dias? Espinosa alvo de todas as mais infames, raramente justas, acusações? Cisão entre os sucessos da concepção determinista pela física, e a filosofia (a fenomenologia; Bergson) do devir e da “criação”? Entre a História e as ciências exactas e da natureza? Contradição (ou paradoxo?) que se aloja no coração da imensa meditação de Heráclito, que julgo ver resolvida nela, embora sob um invólucro místico especulativo? E que talvez se aloje também na obra plena de Marx, O Capital?
§23. Em 1969, Theodor W. Adorno e Max Horkheimer escreviam :” O pensamento crítico, que não se detém nem mesmo diante do progresso, exige hoje que se tome partido pelos últimos resíduos de liberdade, pelas tendências ainda existentes a uma humanidade real, ainda que pareçam impotentes em face da grande marcha da história.” Ao tempo vivia-se a “grande divisão política em dois blocos colossais...os conflitos no Terceiro Mundo, o crescimento renovado do totalitarismo...” Hoje, passaram já quase três décadas sobre o 25 de Abril, década e meia sobre o desmoronamento da chamada “pátria do socialismo”, o triunfo avassalador do Império. Que resta à filosofia? “Acelerar, ainda que indirectamente, a marcha em direcção ao mundo administrado”, ou regressar à vocação originária da filosofia? O perigo maior que corremos é instalarmo-nos no medíocre reduto da nossa indiferença, nas vantagens do nosso esquecimento, no defensivo espaço exíguo das nossas especialidades.
A Esquerda europeia perdeu o rumo, apagou-se o farol das revoluções em dois séculos, para as quais a filosofia desempenhou um papel proeminente. É mais modesta, fica-lhe bem. Entretanto a filosofia europeia não devia ser tão timorata, dependente, silenciosa, cínica, tão dividida em pequeninos fortins ridículos. Sobretudo tão convenientes ao actual estado das coisas. Disse conveniente, não disse conivente.. Hoje uma democracia diminuída, com pés de barro. Amanhã uma cama de Procustes, se não fizer da memória um projecto de futuro. A vida pode não ser mais que um sonho, mas seria melhor que não se converta num pesadelo.
A auto vitimização é uma consciência impotente, muito embora permita sobreviver. Na filosofia e na vida admitir os erros (por omissão ou por ilusões) é mais adequado a um povo , indivíduo ou movimento, amadurecido; só essa atitude permite realizar e progredir. Nas últimas décadas o mundo mudou, e muito, e nós também. A social-democracia precisa de mudar de inimigos, se não quiser ser devorada por Cronos. Os movimentos que se reclamam de projectos alternativos para o capitalismo, pelo seu lado, precisam de conquistar o espaço e a confiança que perderam. “É característico de uma situação sem saída que até mesmo o mais honesto dos reformadores, ao usar uma linguagem desgastada para recomendar a inovação, adopta também o aparelho categorial inculcado e a má filosofia que se esconde por detrás dele, e assim reforça o poder da ordem existente que ele gostaria de romper.” ((Adorno / Horkheimer)
§24. Já vai muito longo o processo de demolição da metafísica, a que se têm devotado alguns bons filósofos e muitos mais medíocres. Os primeiros, não a desprezam, apenas a queriam menos dogmática, abstracta e especulativa; os outros, desprezam-na, porque é próprio do medíocre roncar como o sapo da fábula. Entretanto, os poderes ideológicos e fácticos disseminam a metafísica do Capital, impunes e mal agradecidos..
§25. No decurso dos vários séculos que a Burguesia precisou para constituir-se como capitalismo, ascender ao poder económico, cultural e político, partir à conquista do mundo, dedicou-se a demolir toda a metafísica, substituindo-a pelo conhecimento objectivado, tecno-científico, empirista, anunciando a salvação, desmitificando as ilusões, desencantando os fenómenos, com vistas ao domínio absoluto da natureza e do homem. Ao mesmo tempo consolidou a religião monoteísta, entre o temor por um Deus ignotus, e uma tradição (sempre que a dominação lho exigia) de tráfico entre os crentes e a divindade, por toda a parte instalando o espírito do cálculo, a moralidade do valor de compra e do livre investimento, a sacralização da propriedade privada e a beatificação do lucro. Contradições sem dúvida, mas perfeitamente solucionadas no quadro unitário, sintético, de uma visão do mundo que hoje ainda não manifesta sinais de decadência, que se mostra capaz de digeri-las, de integrar todas as formas inusitadas de niilismo, até de fecundá-los, acarinhá-los; esta marcha triunfal da mentalidade burguesa, acolitada com a cruz e a espada, com bijuterias e lentejoulas de vidro, utilizou a crítica, a desmitificação, a desacralização, o esquadro do rigor matemático, a linguagem axiomática das ciências, o espírito positivo, para abrir caminho ao Capital. Brotaram do interior desta visão unitária, protestos, reacções, que não pouparam adjectivos contra o espírito mesquinho e espúrio burguês; contudo, em grande parte não ultrapassavam os limites, foram depressa engolidos pelos revolucionamentos a que a sociedade burguesa procede; tanto mais depressa engolidos, quanto admitiam que a natureza era o território da “causalidade”, daquilo que “é”, terreno de caça de determinadas concepções de cientistas, reservando-se o “devir”, o “élan vital”, a “cultura”, etc., para a História, ou para as “ciências do espírito”. Em grande medida a crítica do pensamento técnico, da manipulação técnica, foi uma reacção evasiva dos integrados, não poucas vezes nostálgicos por formas aristocráticas e autoritárias de Regime. Spengler, Bergson, Heidegger, Nietzsche, etc., foram obscenamente apaparicados pelas Faculdades de Letras e Filosofia ao tempo da ditadura fascista em Portugal e na Espanha. Nem vale a pena falar sobre as entorses que o Hegel sofreu com a sua Teoria do Estado...e a sua putativa base teológica (que os seus textos permitem, evidentemente). A força dos textos de Spengler deixaram rastos visíveis em historiadores das culturas e das civilizações; um bom punhado de ideias luminosas do grande Bergson, sobrevive em vários intelectuais nossos contemporâneos. Ainda bem. Nada no-lo proíbe. Eu próprio, neste ensaio, utilizo conceitos de origem várias, sem pudor. Tal atitude não me faz recuar um milímetro na denúncia dos modos como a concepção burguesa do mundo se apropriou vantajosamente da crítica que a filosofia europeia tem vindo a aplicar ao “entendimento”, seja sob a forma hegeliana, seja sob a forma bergsoniana; todas as “filosofias da Vida”, com Nietzsche à cabeça, não escaparam à insaciável cobiça do espírito empreendedor burguês, que farejou no apelo dos “instintos vitais” uma óptima razão de Estado. Os nazi-fascismos tiveram os seus mestres e os seus epígonos, mais ou menos responsáveis, prepararam-lhes o caminho com as suas diatribes penetrantes contra as formas clássicas dos liberalismos, contra os valores antigos da burguesia. Esta aristocracia incomodada com os excessos burgueses, com os fedores do juro usurário, com o fumo ignóbil das fábricas, já não era inocente, ela própria encontrava-se em acelerado processo de aburguesamento (é pedante e ridículo o desprezo da aristocracia britânica, que, afinal, já comia à mesa com os banqueiros há séculos).
O que eu vejo falhar em todo o lado é esta compreensão de que a burguesia construiu um quadro unitário que concebe e conforma o mundo à sua medida, à medida da sua conveniência. E vejo falir a Crítica, claudicar, hesitar nos centros de uma espesso labirinto. Os protestos convertidos em anúncios de detergentes e bebidas, os anarquismos travestidos em logotipos e ícones, os professores de filosofia rendidos ao Pacto de Estabilidade, os intelectuais que ontem censuraram violentamente os humanismos (com alguma razão, porque estes humanismos foram uma ponta-de-lança da mentalidade burguesa), agora deslumbrados neófitos do capitalismo “de rosto humano”. Estas conversões individuais de antigos maoistas e outros da “revolução cultural”, sexual, (que não inventaram, nem sequer foram os únicos e os melhores protagonistas ), que aproveitaram os picos das ondas (das mudanças justas que se impunham, ou que grandiosos movimentos sociais impunham), não podem, não devem, ser vistos como meros fenómenos individuais, porque são-no sociais, porque correspondem, estas metamorfoses, às próprias metamorfoses da mentalidade burguesa, que, contudo, não se alterou minimamente no essencial nos seus objectivos fundamentais : extrair o lucro máximo. Seja do que for. Dar golpes de rins nas crises cíclicas, integrar para expandir-se de novo. Eles são camaleónicos, mas são-no porque a burguesia é ela própria um imenso camaleão, capaz de todas as simulações, dissimulações, astúcias. Darwin ficaria espantado com a capacidade de adaptação de que se mostra apta a sociedade que ele admirou.
Oswald Spengler enganou-se quando profetizava, na peugada de Nietzsche, o relativismo de todas as culturas, de todos os valores, de todas as verdades, a decadência do Ocidente. A mentalidade burguesa conquista o planeta, dos Alpes à Mauritânia, dos Andes à Indonésia, aos mares da China. Triunfo de um sistema de valores, triunfo de uma cultura, disseminação implacável de uma mentalidade. Neste sentido, quem venceu, quem se vê confirmado, é o Hegel. O “Espírito mundial”, a “Consciência do Mundo”, cumpriu-se. Já nem sequer o “espectro” do comunismo assombra a Europa e o planeta. O Manifesto do Partido Comunista de 1848, avaliou magistralmente o passado e os propósitos da Burguesia, escalpelizou infalivelmente a sua natureza e o seu carácter cínico e calculista, mas não foi além dos limites da sua época; ninguém consegue transcender os limites da sua época; jamais poderia profetizar, já não digo as revoluções socialistas que se verificaram, mas, sobretudo, as suas derrotas clamorosas e o triunfo planetário do capitalismo. Mesmo assim, ganha contornos proféticos a palavra-de-ordem : “Trabalhadores de todo o mundo, uni-vos!”. A “globalização” também pode ser dos trabalhadores.
Nada, ou pouco ganhámos com a demolição sistemática, o desprezo altivo, os sorrisos desdenhosos pela metafísica, pelos “idealismos utópicos”. Em boa verdade, a Burguesia não cumpriu nenhum dos requisitos das grandes utopias que o Ocidente produziu. Não cumpriu porque jamais poderia querê-los (nem para anúncios televisivos; imagine-se um anúncio com a arquitectura do projecto democrático de Espinosa, ou da sociedade socialista, e comunista, de Marx e de Étienne Cabet, ou a ecologia estética de W. Morris...). O projecto comunista, por exemplo, resiste às seduções burguesas, resiste, sobretudo, às repressões burguesas. As utopias, os projectos utópicos concretos, são os grandes perseguidos. Não é Nietzsche, Bergson, e outros mais. Por mais acutilantes, críticos impiedosos, que possam ser.
Recuperar as utopias, resguardá-las da tesoura ou do lápis azul, subtrai-las do esquecimento, eis o que ofereço como antídoto, como veneno letal para a fome insaciável da Burguesia.
Determinadas formas de marxismo oficial, no decurso do protagonismo da URSS, colaboraram com a mentalidade burguesa, neste sentido crucial : aprofundando o divórcio dos homens com a natureza, na crítica das utopias, no elogio do espírito utilitário e manipulador, na redução do pensamento científico à mentalidade técnica, usurpatória, cântico de dominação do homem sobre o ambiente; em nome da justa luta contra a fome, delapidou recursos, desequilibrou sistemas, da Sibéria até à Ucrânia. O espírito planificador da administração soviética, burocrático e tecnocrata, não colidiu de modo algum com a mentalidade burguesa no seu modo de encarar a natureza; pelo contrário, algum capitalismo chegou a invejá-lo. Na URSS a utopia revolucionária não demorou a ser extinta, substituída por uma ditadura sem contemplações, para quem o marxismo não foi mais do que a justificação ideológica para se perpetuar, e expandir uma hegemonia de grande potência; moribunda, arrastava-se, por fim, a coberto da mesma retórica farfalhuda e oca, numa oligarquia administrativa que corrompia um imenso património social. A nova mentalidade que a Revolução criara esvaiu-se, ou floriu no exterior, nos povos e nos militantes que pelo socialismo e pelo comunismo deram as vidas. E encontravam razões para admirar, apesar de tudo, a “pátria do socialismo” : primeiro porque o foi realmente (os sovietes, por exemplo, foram uma extraordinária criação do espírito colectivo); segundo, pelos indiscutíveis feitos alcançados contra o nazismo, e pela espantosa capacidade de recuperação; terceiro, pelos reais progressos na ciência, na saúde, e em outros domínios, e isso é inquestionável; finalmente, pelo poder de contenção que exerciam sobre o imperialismo, e pelos apoios que prestavam aos combatentes de toda a parte (lembremos apenas o Vietnam).
Contudo, é fundamental, e não há nada de contraditório nesta afirmação, é fundamental compreender a Concepção Burguesa do Mundo como heterogénea (para não cometermos erros passados, e, por exemplo, para não cometermos o erro contumaz de ver o “iluminismo”, ou o “esclarecimento” (expressão alemã), como homogéneo, pois nunca o foi). Mas não excluir. Neste quadro unitário (síntese de contradições), cabem as reacções “intempestivas” de Nietzsche contra os burgueses, o antisemitismo (sinónimo do capital usurário e mercantil), Max Weber, esse incomparável intérprete do “Espírito do Capitalismo” (sobretudo o velho Weber), o Husserl das “Conferências de Berlim”, o Bergson das “ As Duas fontes da Moral e da Religião”, e muitíssimos mais. É preciso reapreciá-los com espírito crítico, compreender as razões justas das suas recusas, o acerto, esplêndido por vezes, das suas críticas ao espírito do cálculo, da medida, da quantidade, morto, petrificado, da técnica desumanizadora, etc., etc. Continua absolutamente actual, ainda mais pertinente, o apelo ao puro prazer, à alegria que as coisas “inúteis” proporcionam, à contemplação, sem preocupações pela Verdade, isto é, pela Utilidade. Neste sentido, é preciso reabilitar a retórica de Górgias, os sofistas em geral, da pesada herança amesquinhadora que Platão nos legou.
A Burguesia desencantou o Mundo, para melhor nos dominar a todos, extorquir, espoliar, oprimir. Mas poupou uma coisa substantiva : o Capital! A este é-nos vedado o desencanto, o segredo. Quando Édipo responde acertadamente à pergunta da Esfinge, “É o homem!”, a Burguesia interpreta de duas formas convergentes : Dominação da natureza (dos seus enigmas, das suas resistências) pelo homem; mas este homem, é o burguês, precisamente aquele que despreza o homem concreto (injecta-nos o espúrio veneno do “Homem abstracto”, inócuo para ela, fatal para nós). Desencantou o mundo (tarefa do iluminismo, do positivismo, etc.), mas subtraiu ao desencantamento essa fórmula deliciosa para ela que é a mais-valia, a exploração do trabalho vivo. Clãs de intelectuais e de elites ficaram “desencantadas”, ao mesmo tempo que a Burguesia se apressava a fornecer ao povo doses maciças de subcultura, de fetiches, de ícones, de fancarias de feira, de telenovelas de cinderelas, de iliteracia, de falsas esperanças e rudes realidades. A concepção burguesa do mundo, sob a sua forma popular, é a mais ignóbil, aquosa, impostora, de todas as culturas que a humanidade conheceu; mas garantindo a mesma funcionalidade : coesão e disciplina social, obediência aos chefes dinásticos, justificação do Regime.. Se a origem do capital já não se apresenta divina (às vezes, sim!), como nos mitos, apresenta-se conforme a natureza humana. E tal como nos mitos, a sua eternidade é inquestionável. Admitir o contrário é pura utopia. Assim fala ela.
Entendo por mentalidade burguesa o seu núcleo essencial : o “interesse nu, o do insensível “pagamento a pronto”. [Que] Afogou o frémito da exaltação pia, do entusiasmo cavalheiresco, da melancolia pequeno-burguesa, na água gelada do cálculo egoísta. [Que] Resolveu a dignidade pessoal no valor de troca, e no lugar das inúmeras liberdades bem adquiridas e certificadas pôs a liberdade única, sem escrúpulos, de comércio. Numa palavra, no lugar da exploração encoberta com ilusões políticas e religiosas, pôs a exploração seca, directa, despudorada, aberta.”. Pouco haveria a corrigir nestas palavras de Marx e Engels, de 1848. Não largando a mão do “pagamento a pronto”, a Burguesia inventou o crédito; no lugar da exploração aberta, permitiu, ou promoveu novas, e sobretudo muito velhas, formas de ilusão política e religiosa. Marx sabia perfeitamente que isto sucedia já, pois a “Ideologia Alemã” havia sido escrita antes; e é aí que ele forja o conceito decisivo de Ideologia.
È assaz curioso, e até irónico, que filósofos burgueses, bem mais tarde, hajam utilizado expressões similares para caracterizar o “espírito do cálculo”. E hajam, principalmente, fabricado uma das mais poderosas e influentes perspectivas filosóficas do século vinte, à cabeceira das quais se posiciona o Heidegger da crítica da técnica. Vindas dos mais díspares quadrantes políticos, de simpatizantes do nazismo e do fascismo, de aristocratas nostálgicos e de pequeno-burgueses melancólicos, de místicos e de espiritualistas, de alguns adeptos do ambientalismo, da revolução cultural maoista, militantes brigadistas, a algaraviada é estridente, e poucos se têm dado ao trabalho de pesquisar as suas semelhanças e diferenças. Filosoficamente o niilismo unifica diversas categorias : servia-se um caldo confuso de “nãos” aos valores burgueses e aos regimes socialistas, da cozinha requentada de novos autoritarismos.
§25. Entendo por filósofos burgueses aqueles que construíram pontos de vista no interior do mesmo quadro unitário do pensamento burguês, ou seja, contradições não antagonistas. A confluência acaba por manifestar-se por exemplo, com especial acuidade, na velhice, ou por causa de acontecimentos catastróficos que não previram, quando se abandonam a puros misticismos ou pessimismos sem oferecerem qualquer saída. Os casos de Husserl e Bergson são paradigmáticos; O “velho” Marx, pelo contrário, longe de abandonar a sua intuição primeira, fortaleceu-a com a abordagem científica do Capital.
Por outro lado, e de uma maneira geral, todos nós começamos a pensar no quadro da mentalidade burguesa; lembrava Lénine que a influência burguesa permanece mesmo no decurso do desenvolvimento revolucionário da sociedade socialista. O actual processo de desenvolvimento da globalização capitalista realiza a vocação do Capital: universalizá-lo. Pouquíssimos nichos culturais escapam ainda à disseminação dos valores do capitalismo. Certamente que devemos admitir que a Nação árabe dá provas de resistência a esta atmosfera universal contaminadora, sem que, porém, ignoremos que ela já lá está, no modo de produção dominante, na organização comercial e financeira, nas classes governantes, que utilizam os valores, as hierarquias dinásticas e tribais, as tradições de obediência, apenas para perpetuarem o poder; são burgueses com retórica . Além disto, será preciso compreender a reacção “fundamentalista”, de uma maneira geral, como um fenómeno que ganha cada vez mais contornos fascizantes; o regresso aos Estados teocráticos, como qualquer outro regresso na história, não é possível nas mesmas condições, se não à custa de uma teologia militarizada, de um autoritarismo ditatorial de castas, para o qual as liberdades e o indivíduo nada valem. Conhecemos algo semelhante, nestas formas reactivas, na experiência do mal absoluto que foi o “comunismo de guerra” dos Kmers vermelhos no Camboja ; se este horror nada tinha a ver com socialismo e, menos ainda, com comunismo (entre o apoio que a China maoista lhes prestou a acção da CIA, venha o diabo e escolha) também os novos fundamentalismos degeneraram facilmente para o terror. A Al Khaida, os taliban, os movimentos fundamentalistas egípcio e argelino, nada têm que ver com o socialismo, excepto porque se opõem a determinados valores burgueses e, sobretudo, à dominação norte-americana. Uma análise compreensiva não deve escamotear a importância dos diferentes ritmos de desenvolvimento do capitalismo em cada país e região, os conflitos entre modos de produção diversos, formas de controlo e distribuição, etc. O modelo capitalista ocidental, norte-americano, não se expande pacificamente, sem profundas resistências. Reconheço que a expressão “fascismo árabe”, não será a mais adequada a estes fenómenos específicos e contemporâneos de integrismo religioso. Por motivos semelhantes de classificação insuficiente continuamos a caracterizar o regime japonês como “fascismo”, pelo seu imperialismo e ligação ao Eixo. A extrema-direita populista que levanta a cabeça hoje na Europa recupera com mais clareza a ideologia fascista. Recordo uma acesa e prolongada discussão entre militantes do Partido Comunista da Argentina, na década de setenta, sobre se deviam , ou não, classificar a ditadura militar, apoiada pelos norte-americanos, de fascismo....
§26. Entendo por Burguesia a classe que detém, quase exclusivamente, a propriedade(jurídica e económica) e o controlo de todos os meios de consumo e das matérias-primas e instrumentos necessários à sua produção e distribuição (grandes cadeias comerciais), empregadores do trabalho assalariado, que detém o capital financeiro, suas fontes e os seus canais de multiplicação e distribuição, que controlam as instituições mundiais do comércio, da indústria e das finanças, que controlam a máquina do Estado (nas suas funções legislativa, executiva, repressiva, social e de propaganda) e as principais cadeias de produção da informação, assim como o controlo da produção e distribuição dos produtos culturais.
Julgo que esta definição abarca os traços fundamentais da dominação capitalista, os clássicos (essenciais) e aqueles que têm caracterizado as suas importantes transformações internas : emergência de um capitalismo internacional (económico-financeiro-comercial, as instituições mundiais que ele organiza para “liberalizar” os mercados comerciais e financeiros e para controlar a circulação do capital –empréstimos, mercados bolsistas, financiamentos de diversa ordem, por exemplo), a consolidação de um estrato constituído pelos gestores e directores e outros diversos testas-de-ferro dos proprietários efectivos ou principais accionistas.
Entendo por Capital, não o capital que já era anterior ao capitalismo, mas aquilo que é específico deste modo de produção : uma determinada relação social que tem em vistas a produção e reprodução, distribuição e controlo do próprio capital. Tudo o mais são meios para esta finalidade. Nessa relação social a força de trabalho transforma-se em mercadoria, naquela mercadoria especial cujo valor de uso possui a propriedade de criar mais valor do que ela própria tem. (o “capital constante”, ou seja aquela parte do capital adiantado pelo capitalista que é convertida em meios de produção exceptuando a força de trabalho vivo, não sofre nenhuma alteração quantitativa do valor no processo de produção), isto é, o “capital variável” é a parte do capital adiantado pelo capitalista que é transformada em força de trabalho, e que, primeiro, reproduz o equivalente ao seu próprio valor e, segundo, produz valor adicional ao seu próprio valor, uma mais-valia.
Os capitalistas mobilizam todos os procedimentos que protejam a produção e reprodução perpétua e libérrima do capital, processo no qual a transfiguração dos indivíduos em cidadãos-trabalhadores-compradores-consumidores é o ideal exclusivo. É a Razão Consensual em todo o seu esplendor. Naturalmente que cada capitalista encara outro como seu concorrente potencial : o núcleo principal das leis desempenha a função de manter a concorrência dentro dos limites aceitáveis, ou possíveis neste sangrento jogo de forças onde a ferocidade aberta ou a diplomacia mais cínica é a regra, e a magnanimidade uma absoluta excepção.
No sue período “heróico”, nos começos, o capitalista possuía como paixões absolutas o impulso para o enriquecimento e para a avareza, os seus ideólogos filósofos encarregaram-se dessa tarefa (o pensamento e a cultura do séc. dezoito é o teatro dessas batalhas). “Mas o progresso da produção capitalista não cria só um mundo de fruições. Ele abre com a especulação e o sistema de crédito mil fontes de enriquecimento súbito. Num certo nível de desenvolvimento, um grau convencional de esbanjamento, que é simultaneamente exibição da riqueza e, portanto, meio de crédito, torna-se uma necessidade de negócio do “infeliz” capitalista” (Marx, O Capital, T. III)
As importantes transformações que o capitalismo tem sofrido desde a análise efectuada por Marx, não modificaram a sua substância.
1. “O processo de produção capitalista considerado na sua conexão ou como processo de reprodução não produz só, portanto, mercadorias, não produz só mais-valia; produz e reproduz a própria relação de capital : de um lado, o capitalista, do outro, o assalariado:” (O Capital, Primeiro volume, Livro I : O Processo de Produção do Capital, 21º Cap.)
2. Desde pelo menos o último terço do séc. dezoito a “despesa e o luxo” têm vindo a progredir ( o colapso pelas crises não invalida o processo, antes o confirma pelos períodos sequentes de expansão), e isto é extensivo aos próprios assalariados (dentro dos limites do seu variável poder-de-compra). É consumismo, a fruição prometeica! “ Mil fontes de negócio”, mais trabalho, mais produtividade, mais bens, mais lucros. Coração da propaganda (marketing, informação, filosofia), da concepção geral burguesa. Não é o acto, e o direito, de consumo, que é inexoravelmente burguês, em abstracto : é o acto concreto produzido e controlado pelo modo de produção capitalista.
3. A multiplicação do Capital não se reduz à produção industrial : só quem não leu uma linha da análise de Marx se permite, por estupidez ou mentira, ignorar os extensos capítulos sobre o capital na agricultura, no comércio, nos bancos, na pura especulação fiduciária. Também as transformações do capital comercial e financeiro não invalidam a substância.
4. As novas orientações sofridas pela aplicação do “capital constante”, as revoluções técnicas, que já se verificavam evidentemente ao tempo de Marx e às quais ele dedicou a sua análise, trouxeram obviamente um enorme fôlego ao capitalismo e acarretam profundas alterações do valor trabalho, na extensão do “exército” de assalariados, sua concentração, qualificação e homogeneidade, mas não modificam a natureza essencial do capitalismo.
5. Esta é metafísica do Capital : sua substância una, seus atributos, seus modos. Invariáveis os atributos, variáveis os modos. As conversões e reconversões sofridas pelo capitalismo que se reflectem em tudo o mais que é a vida social, não derivam exclusivamente da base e dos objectivos económicos : a acção política, as mentalidades, a flutuação dos valores, as ideias, todo este “reino” intervém, de modo determinante por vezes. Existem conflitos e contradições entre os elementos que compõem a atmosfera da vida nas sociedades burguesas; contudo, os elementos fazem um todo, uma unidade (que acaba por funcionar, como se vê!) : eis a mentalidade burguesa que abre caminho como a “Consciência Absoluta” hegeliana, o “devir” de Bergson, de Spengler, a “lei do interesse” dos utilitaristas, torcendo as teses, desfigurando os conceitos, sempre que necessário!
6. Entendo por “globalização”, não apenas um processo de deslocalização financeira e empresarial com a ajuda das novas tecnologias da comunicação, mas um acto mais (não sabemos se o último) do já longo processo histórico de mundialização do Capital, sucesso estrondoso do Imperialismo que não atingira ainda toda a sua fase superior (as guerras entre concorrentes e as lutas anti-imperialistas e as vitórias dos países socialistas, fizeram-no recuar, conter, prolongar as campanhas de anexação). A contrário de alguns profetas, não assistimos ainda à substituição dos Estados nacionais por um Estado Mundial, este mostra-se, afinal, como os Estados Unidos da América. Eis o Império no seu máximo triunfo e deslumbramento! Aqui também outros profetas ter-se-ão equivocado sobre uma pretensa agonia geral que a eles lhes dá alento desde o século dezanove. Uma coisa é certa : nem as divindades foram eternas alguma vez.
Acho bem contrapor-se a esta globalização uma outra, que aprofunde o Direito público e internacional, novas instituições mundiais que protejam a paz a e a independência nacionais, a equidade nas trocas comerciais, uma opinião pública internacional que contenha os ímpetos imperialistas. Mas acho melhor ainda que seja o florir e frutificar de novas utopias, diferenciadas naturalmente, que rasguem novos sentidos para a história. Os combates já aí estão.
§27.
Permito-me concluir provisoriamente que :
- É errado compreendermos a formação e o desenvolvimento da sociedade de mercado, capitalista pelo seu modo principal de produção, controlo e distribuição, como uniforme e homogénea por todo o lado onde, desde a baixa Idade Média, se tem vindo a verificar; nem uniforme e homogénea é a mentalidade burguesa; tal não se verificou na Europa onde determinados valores e liberdades permitiram os triunfos económicos e políticos da Burguesia, enquanto que na China imperial optou-se por não seguir um percurso semelhante, apesar de existirem condições para a emergência do capitalismo, mais cedo até, provavelmente.
- Importa, no entanto, definir o núcleo fundamental da mentalidade burguesa, que se conserva intacto, e que se propaga hoje pelo planeta.
- Acresce que é tarefa inadiável, para historiadores e outros investigadores, caracterizar com rigor as diferentes reacções à expansão do capitalismo mundial, desde a Revolução Bolchevique até aos diversos nazi-fascismos de nostálgicos, passando pelas revoluções independentistas e chegando ao nacionalismo pan-árabe. Fenómenos de índole muito diversa, e, até, diametralmente oposta. Para eles concorrem necessariamente diversos factores de estrutura e de conjuntura, que se prendem com as culturas (religião, costumes, filosofias, um determinado capital simbólico), ancestrais modos de organização dos papeis e dos estatutos, sedimentações tribais, e seus envolvimentos físicos e geográficos (essa geografia que os historiadores desprezam). A conjuntura tem a ver com os modos de penetração dos invasores, com a situação internacional, com os inimigos internos e suas alianças com os invasores. A imbricação de todos estes factores manifesta-se no elemento fundamental para a luta política : a co-relação de forças, espaço por excelência do acontecer histórico, no qual entrecruzam-se o previsível e o imprevisível, o acaso e a necessidade, o possível e o impossível.
- Permanece inconclusiva a questão fundamental : Existe alguma lógica na História? Não sei que tipo de lógica ela possa vir a possuir, mas não sei, por outro lado, como se possa interpretar os últimos cinco séculos da Europa, sem neles reconhecermos o percurso da formação, desenvolvimento e expansão mundial da Burguesia e do Capitalismo, e sem nos servirmos da categoria lógica (tão estafada par alguns, hélas!) de devir dialéctico dos acontecimentos. Existe, pelo menos, uma necessidade histórica : todo o capitalismo tende para obter o lucro máximo, servindo-se das leis para realizar a acumulação e concentração; estes objectivos enfrentam oposições. Não ver isto, não falar disto, é pura cegueira; nos intelectuais trata-se de outra coisa pior. Atribuir sentidos é próprio do homem. Tanto pelos mitos e pelo senso comum, como pelas ciências e pelas artes. É uma questão teórica, mas, sobretudo, práxica. O capitalismo atribuiu, pela sua própria prática, um significado à história, o qual Marx formulou nos seus aspectos essenciais A Revolução Bolchevique, consolidou este sentido, rompendo com a sociedade capitalista. Qualquer sociedade deseja que o seu “sentido histórico” se eternize. É, porém, o conflito, a dissipação, talvez o caos, o desequilíbrio, a oposição, que tem a última palavra com sentido.
- A actual ofensiva ultra liberal do capitalismo pretende transformar o com-sentido em consentido, consensual, sem dar lugar a outros sentidos. Se não o consegue de todo, já se alegra com o cepticismo geral; preferia o optimismo, mas o pessimismo não lhe faz mossa de maior. O pessimismo é sempre uma atitude trágica face ao destino.
- Eu julgo que Espinosa e Einstein cometeram um erro, na medida em que não foram capazes de formular uma concepção que integrasse o devir, as possibilidades, a irreversibilidade de determinados acontecimentos, o passado e o futuro. Hegel percebeu-o perfeitamente quando leu Espinosa (embora tivesse confinado o devir para a consciência e para a história, fabricando, deste modo, a mais importante cisão da cultura e da ciência).
§28. O consenso é o eixo da ideologia burguesa contemporânea, digamos mesmo : da sua utopia (com a qual se serve para convencer da justeza da dominação capitalista). Esta ideia possui um antigo e largo percurso, cuja origem se encontra em algumas teorias do contrato forjadas no século dezassete. Digo algumas, pois, de modo algum, incluo a teoria de Espinosa, nem as teorias de Rousseau e de Mably (séc. dezoito), as quais tomo como teorias alternativas desse outro contrato (liberal), mantendo-me na convicção de que constituem, antes, momentos fecundos da história das ideias socialistas, pois que entendem o contrato social e a comunidade como conceitos completamente diferentes. São, assim, a utopia do socialismo.
O capitalismo utiliza as mais ferozes ditaduras, e outras formas de autoritarismo brutal, onde pode ou não pode de outro modo; porém, o consentimento democrático, segundo o modelo norte-americano, apresenta-se como o ideal para o capitalismo, com vistas à expansão do consumo e à “livre” adesão do consumidor. Não é a ditadura (que, em vários casos, exprime a concorrência feroz entre capitalistas e potências capitalistas) que constitui a melhor propaganda, a melhor promessa, e a utopia mais atractiva : é a democracia. Por isso, muitos que se opõem a alguma forma, ou governação, autoritária (própria dos partidos da Direita), não se opõem ipso factu ao capitalismo, sempre igual a si mesmo : cínico, impiedoso, explorador, classista.
Creio que me faço compreender : a democracia é sempre uma conquista das massas populares e da Esquerda, a história de Portugal, da Europa e do mundo, está cheia de exemplos. Mas a democracia que os povos quiseram, e querem, não é a democracia que o Capital quer.
Porque razão é que é que as maiorias preferem o regime democrático e temem as ditaduras?
1. Porque as liberdades, de resto duramente conquistadas, abrem espaço para novas e mais avançadas exigências de protecção e dignidade.
2. Porque a democracia dominada pelo capitalismo instila, com mais eficácia, a sua propaganda. É o consentimento. O ideal que propaga confunde-se com o ideal “pequeno-burguês” (diríamos hoje da “classe média”) : converter todos e cada um num perpétuo consumidor. O alargamento destas camadas sociais traduz um enorme triunfo do capitalismo. O bem-estar é a sua utopia.
Nas filosofias pós-modernas atribuo todo o interesse à “desconstrução”, como prática da suspeita e de desocultação dos significados, actividade tanto mais útil quanto a propaganda é uma das ferramentas principais dos poderes dominantes. Só não aplaudo a utopia da “comunicação”. A conversa só une quem estiver disposto a unir-se. Não são as instituições e as reuniões internacionais esta utopia a que me refiro, mas enfrentar a dominação capitalista com conversas civilizadas. O fracasso da ONU não faz com que os cidadãos desertem da justa luta por novas e mais eficientes instituições internacionais e pelas vantagens da diplomacia sobre a política da canhoneira. Em cada país, o parlamento é um lugar fundamental de lutas, de comunicação. A batalha pela formação, informação e expressão da opinião pública, é uma das mais decisivas no palco mundial dos conflitos entre os Estados e a sociedade civil.
Por tudo isto, por causa de todas estas frentes de luta, é que eu oponho-me ao mito da Razão Consensual. A Razão Consensual é a razão de Estado, a razão do Império; é a mensagem da propaganda burguesa; é uma mistificação, um logro, um engodo. Ela não admite pacificamente a discussão verdadeira, a dialéctica, a controvérsia, mina, contamina, contradiz sem a presença do opositor; é a razão do poder totalitário, para a qual as alternativas esgotam-se num bipartidarismo onde as semelhanças são muito maiores que as diferenças. É a metafísica do consentimento voluntário e racional, e a realidade sólida da obediência; não forma cidadanias, fabrica autómatos imbecilizados. Não instala a segurança social e colectiva, mas a insegurança no trabalho e no futuro, e instila a falsa segurança da pulsão consumista. É a ameaça, a chantagem, o medo. Os estratagemas são velhos e repetidos: fragmentar o todo social, dividir, isolar e enfraquecer as oposições, silenciá-las, desacreditá-las, corromper, aliciar. A fragmentação social não é sinónimo exclusivo da riqueza e da liberdade de um país : é, contra isto ou sobrepondo-se a isto, uma ferramenta de consentimentos, uma política de desarmamento geral. Os espaços institucionais de poderes atribuídos à oposição, são, imediatamente, confiscados, sujeitos a todos os aliciamentos e manobras corruptoras. Fragilizar o adversário, fragmentá-lo internamente, distribuir status, conduzir habilmente aqueles que ocupam os lugares onde se desempenham papéis sociais e políticos, a gerir a sua parcela de poder, a entontecerem-se com pequenos prestígios, a justificarem, mais tarde ou mais cedo, com argumentos extraídos do quadro unitário da mentalidade burguesa, um determinado estado de coisas conveniente à perpetuação da sociedade capitalista. A Razão Consensual não é, sequer, as teorias do contrato (muito menos de Rousseau), que estão em recuo por todo o lado sob a pressão da Direita neoliberal.
§29. À consensualidade imposta pelas Burguesias, devemos opor o diálogo entre as forças da Esquerda, e cultivar o diálogo dentro de nós mesmos, dentro de cada movimento, aperfeiçoar a Teoria, estimular a investigação e o debate de ideias. Qualquer dos nomes que respeitamos, Marx, Engels, Lénine, foram grandes porque as suas obras foram forjadas, como o aço, no fogo dos combates. O confronto, a argumentação, é o sangue vivo da filosofia.
Quando defendo uma filosofia que integra as possibilidades, as probabilidades, a irreversibilidade, pretendo referir-me aos movimentos que são criadores e crescem porque cultivam, dentro deles mesmos, a discussão dos possíveis.
Por fim, desafio os filósofos da ética, alguns dos quais usam e abusam do pensamento de Kant, a dissecarem com o bisturi das suas analíticas, os acontecimentos nos territórios ocupados da Palestina. Convoco todas as correntes da filosofia analítica e da fenomenologia a despirem-se de pedantismos e preconceitos, a abandonarem a atitude de Pilatos. Ninguém fica indiferente perante o espectáculo de soldados super armados a dispararem sobre crianças. Ou fica?
§30. Pelo que fica dito nos parágrafos anteriores, defendo neste ensaio, embora sem o desenvolvimento de toda a argumentação necessária (ficará para outras ocasiões), que o marxismo é, na minha opinião, uma ontologia entendida como uma teoria do Ser, e que tal asserção não obriga o marxismo a desfigurar-se numa teoria do Dever-Ser. Daí que se torne possível elogiar o valor heurístico e práxico das grandes utopias sociais, e estender o âmbito da orientação utópica, ou seja, antecipadora e criadora, à filosofia e às obras de arte. Por conseguinte não subscrevo toda a linha de argumentação prosseguida por Lucien Sève (Une Introduction a la Philosophie Marxiste, 1980) de crítica do “materialismo utópico”, embrulhando a utopia convenientemente no “materialismo dogmático”. Qualquer posição crítica produz efeitos políticos e práticos, e releva de intenções da mesma ordem.
Deste modo não me faz mossa a acusação avant la lettre de me converter automaticamente em “idealista” que “exige que os factos se conformem à sua hipótese”.
Tanto são decisivamente práticas estas questões teóricas, que destapam imediatamente um sem número de interrogações. Por exemplo, saber se o marxismo é uma filosofia normativa, se existe ou não uma ética marxista. Um escopo da argumentação de Sève é a sua afirmação de que a lógica marxista, dialéctica, é um mero instrumento e, portanto, não podemos falar em rigor de uma lógica marxista. Estribado nesta tese, conclui que também não existe uma ética marxista.
Estamos infinitamente em desacordo, quanto à afirmação de que a dialéctica é um instrumento, um simples método. Porque dá então ela conta de realidades objectivas? Qual a sua relação, afinal, com a prática? O idealismo, que Sève expulsa, entra-lhe em casa sorrateiramente.
Quanto à ética, duas coisas a distinguir:
1. O marxismo é uma crítica de todo o moralismo, abstracto, ineficiente, subjectivista, que tende, quantas vezes, por se confundir com uma pura hipocrisia, um véu de seda para cobrir interesses particulares; o Manifesto do Partido Comunista contém, desde logo, uma desmontagem implacável e sempre actualíssima da moral burguesa. Quando as utopias caiem na categoria de puros moralismos edificantes, há que desembaraçar-nos de quaisquer misturas. Em sequência, o marxismo não propõe, e menos tem de impor, uma normatividade ética e estética abstractas, formais, que decidiriam do valor desta ou daquela obra de arte em função de critérios de “classe” ou políticos. Tudo isto lembra factos muito desagradáveis. Entretanto, o marxismo fornece uma explicação incontornável sobre os laços que unem qualquer ética a uma determinada organização social, e sendo uma teoria materialista, não atribui à “consciência moral” o primado nem da realidade objectiva nem da crítica de uma realidade objectiva.
2. Contudo, o marxismo, conforme de resto grandes textos de Marx, ao criticar os valores e os comportamentos dos capitalistas, necessariamente que o faz, a montante ou a jusante, em relação a um quadro de valores e de comportamentos “não burgueses”. Esta é que é a questão basilar. Analisar os textos, inclusivé de algum modo através do método de “desconstrução” tão brilhantemente empunhado pelo filósofo Derrida, conseguir que deles se solte a normatividade moral que aí está latente ao menos. E ainda não recear expor a concepção da sociedade comunista às propriedades morais que ela contem necessariamente. O fio condutor é não perder nunca de vista que toda a moral é social, seja de uma sociedade de classes antagónicas, seja de outra sociedade completamente diferente. Além disto, admitir que sendo o comunismo um movimento em direcção a esse futuro, uma prática de todos os dias, então a organização política dos trabalhadores não dispensa normas de conduta. Nem desobedece ao plano ético contido nas leis (no direito) efectivamente democráticas duramente conquistadas.
§31. Oponho-me a todas as formas de consentimento, matreiro ou ingénuo, porque nele reside a força da inércia. E ainda mais desconfio quando mo acenam como “livre consentimento”. É sabido que todas as filosofias podem degenerar em retóricas cuja função é ocultar o conformismo conveniente e o receio das mudanças. O racionalismo materialista converter-se-ia numa monstruosa desfiguração se pretendesse impor-se como pensamento único, ou seja, como Verdade que exclui as demais. Nem se arroga a vocação de constituir-se como síntese superior de muitas verdades relativas. O materialismo vivifica-se no diálogo permanente com os idealismos. Ambos se acusam mutuamente de haverem sustentado regimes totalitários. Seria apropriado, para este caso, fornecer à filosofia uma certa transcendência. Quando a crítica se cala, já não tratamos de filosofia. Não encontrei ainda nenhuma boa e grande filosofia que tivesse sido feita por encomenda dos imperadores.
§32. Oponho-me a qualquer forma de consentimento formulada implícita ou explicitamente no interior de uma doutrina utópica; por exemplo, de um projecto que se reivindica de comunismo marxista. O consentimento que conhecemos pela experiência, equivaleu, ou ainda equivale de uma forma grotesca, a uma pura ditadura. O primado do “colectivo”, do “social”, da “classe”, serviu para todos os fins, menos para o desenvolvimento da individualidade, que se quer livre. Esta tendência totalitária tanto está presente nos regimes de orientação capitalista como nos opostos. Quando um regime que se diz emancipador de todos e de cada um, deita mão às formas mais brutais e cruéis de consentimento, ao policiamento, à delação, aos campos de trabalho, ou a utopia morreu nesse instante, ou tal utopia é medonha. Rousseau, no seu “contrato social”, jamais pensou numa tal coisa. Nem Marx, Engels, Lénine, Rosa Luxemburgo, Gramsci, Guevara. Prova-o as distâncias que fizeram relativamente aos chefes obreiristas. A humanidade é o sinal distintivo de uma utopia, de um projecto, de uma governação. Quem não consegue admitir e conviver com as liberdades individuais, só revela medo, insegurança, desconfiança. Quem não consegue amar, não se sabe amar. Respeitar ou temer, sim. Nenhum dos regimes falidos ou em falência, da URSS à China maoísta, correspondeu a um progresso da humanidade, independentemente dos seus feitos notáveis. Bastaria um crime, dos muitos que se cometeram, para fazer ruir a confiança. Exercícios de poder absoluto e de voluntarismo, não fazem bem a utopia alguma. Não precisamos de partidocracias, mas de sinergias, de encontros, de cooperação, de espontaneidade, do livre exercício das experiências, da pluralidade, da diversidade e da divergência. Um governo só é bom e grande quando torna grande e bom cada indivíduo, quando em cada indivíduo brota um cidadão. Cada mulher e homem de esquerda, cada comunista em particular, deve repudiar como perfeitamente estranhas quaisquer fórmula de poder absoluto, seja em nome de uma ideia, de um Partido, de uma “classe”. Não tem sequer de tolerar coisa nenhuma : tem de aceitá-la como um facto da vida. Se preferimos a tolerância á intolerância, queremos muito mais que a simples tolerância. Queremos o respeito das liberdades. De todas as exigências, aquela que queremos é a que nos diz : Exige de ti mesmo a mais completa liberdade! E exige dos demais que a respeitem!
No plano político e moral o grande desafio que permanece é a tentativa de conciliar o preceito de Kant : Faz o que deves!, com o preceito de Fichte : Faz o que podes!
§33. O progresso não é um facto, é uma ideia. Como ideia foi, e pode vir sempre a ser, mobilizadora, geradora de factos, mas nem por isso é verdadeira. É a mera expressão de um desejo, de uma confiança que uma determinada revolução técnica, científica, social, transmite. É uma ideia que somente se manifesta e compreende em comparação com o passado. Mas o passado não é muito mais do que uma interpretação, emitida a partir de um presente. O nosso olhar jamais é virgem e inocente, é sempre retrospectivo. Se fossemos capazes de observar o que sucedeu desde a origem até o agora, seríamos um Deus que não vislumbraria qualquer finalidade em direcção à qual a humanidade caminharia em marcha triunfal. O maior esforço que filósofo algum fez para inventar tal coisa, que secularizasse a escatologia cristã, foi realizado pelo Hegel da “Razão na História”. E só nos é útil hoje no detalhe, não na construção grandiosa. Pensar consequente a uma Revolução que ele, e outros, consideraram a maior de todos os tempos : a Revolução Francesa. Típico rescaldo do fervor das Luzes e do seu ideal de emancipação do género humano. O processo dialéctico da Razão que produz a História, só faz sentido no contexto político e cultural da Europa de então, e da Alemanha dividida, em particular. A influência dos filósofos germanófilos, mais velhos e anteriores a Hegel, é tão forte e tão nítida, que o sistema hegeliano, a sua “Fenomenologia do Espírito” sobretudo (que o filósofo redigiu na cidade de Iena, cercada pelas tropas de Napoleão, o grande Libertador...), somente se compreende a essa luz. Desaparecido o contexto, a construção hegeliana corre o risco de não ser mais que uma curiosidade histórica. Arrancada ao contexto, converteu-se numa ilusão ideológica, esticada até ao ridículo pelas mãos de muitos dos seus seguidores. Teve o fim que merecia : justificação a posteriori de um messias chamado Bismark. Contudo, é no detalhe que está o génio : na fórmula da negatividade.
Daí que o melhor livro, pelas piores razões, de F. Engels haja sido “O Anti-Dühring”. Não pelo esforço de descobrir uma dialecticidade nos fenómenos sociais, ou até mesmo, nos fenómenos naturais, mas incutir a demonstração, do alto da sua imensa autoridade, da existência de um processo progressivo da História. No entanto, o melhor livro, se atendermos aos efeitos profundos e a longo prazo : a formidável utopia comunista e revolucionária que abalou o mundo, e que nele, em boa parte, se inspirava.
Não se exagere, porém, o papel dos textos (poucas vezes lidos na íntegra), nem da Teoria : o espantoso sucesso dessa utopia teve como fonte a Revolução Russa. A qual, por sua vez, só foi possível, pela produção intelectual de Lénine, pela sua liderança, pela sua proposta naquele dia decisivo, de uma insurreição armada. É destas coisas que se faz a história.
Uma utopia é logo esquecida quando não se ensaia. É esquecida quando se ensaia, e falha. Entrementes, inflama os corações e a imaginação. Nela está inscrita a aliança entre o “Deves fazer!”, e o “Podes Fazer!”.
§34. Todas as utopias são racionais. Porque são forjadas, e destaco as escritas, pelo pensamento. Essa história de que somente as teorias ditas científicas são racionais, é uma história mal contada. Todo o pensamento é composto da matéria dos sonhos, da imaginação, dos sentimentos, das opções subjectivas, dos condicionalismos epocais e culturais. Kant sabia-o perfeitamente, mesmo quando procurou uma base, uma condição, que orientasse e esclarecesse a simples experiência. O inatismo foi a saída mais segura; mas esse seu tempo e espaço subjectivos, abalou irremediavelmente o seu esforço. Contudo, compreendeu que existiam outras formas de racionalidade, inelutáveis, que escapavam às malhas do entendimento objectivo. E essa brecha foi rasgada por Fichte, de um lado, e Schelling, do outro. Fechada pelo sistema de Hegel, volta a abrir-se com a intuição de Schopenhauer.
Toda a verdade é relativa, embora alguma seja mais consistente e operativa para uns fins do que para outros. A racionalidade dos gregos serviu-lhes muito bem para inventarem e conservarem uma magnífica civilização. E se alguma coisa ajudou ao seu declínio, terá sido o seu desprezo pela racionalidade da técnica.
Todas as épocas nos querem impor uma determinada racionalidade, uma determinada concepção de Razão, única, grau máximo do progresso. Afinal, outras concepções vieram substitui-las, ou completá-las. Quem nos garante que esta racionalidade ora dominante, hegemónica até querer ser única, é a melhor? É a única? A mais vantajosa para o género humano? Não peca ela pelos mesmos vícios das outras, só admitindo o diálogo no interior dos seus parâmetros, dos seus protocolos? Quando a crença positivista está mais do que abalada em certos círculos, porque motivo permanece como ideologia dominante dos cientistas? Pelos sucessos da Técnica? Então porque se ocultam os seus malefícios, os seus fracassos? A quem interessa que esta racionalidade exerça o seu domínio sem contestação? Onde prolifera a diversidade e a pluralidade? O inter-culturalismo? Os discursos do coração e da imaginação, como queria a reacção romântica? Estas opções que o mundo persegue, são as melhores?
Ninguém mais do que eu ama a ciência e se extasia com as maravilhas da astrofísica, da genética, da química, e por aí adiante. Trabalhar estes domínios, ler e ver o que outros descobrem, imaginar os seus benefícios no futuro, almejar o conhecimento holístico completo, transmite-nos uma vocação transcendente, incute-nos um imenso e incomparável prazer, aproxima-nos dessa “beatitude” de que Espinosa nos fala na ÉTICA. Contudo, nada disto é insuspeito, nada disto é incondicionado, nada disto brota de uma alma sem corpo, nem de um corpo sem outros corpos, numa “república de sábios” desinteressados. A montante a jusante estamos espartilhados, vigiam-nos, pagam-nos, despedem-nos, seleccionam o quê, o como e o quando fazemos. E pensamos.
Necessitamos de uma Razão plural. Ou de outra Razão. Que tudo discuta, que de tudo duvide, que faça da suspeita o seu preceito. Que faça da vocação antidogmática originária da Filosofia, a sua reiterada escolha. Não existe nada mais transcendente que criticar os deuses da terra e do céu. E nenhuma conduta mais racional do que querer para os outros aquilo que quero para mim.
§35. Exercer a suspeita não equivale ao puro cepticismo, e, menos ainda, ao cinismo. O cínico não crê nos valores, como aquilo que transcende a mera biologia ou os simples interesses egoístas. O marxismo, porque vê os interesses que se ocultam por detrás das boas intenções e da retórica, poderia conduzir ao cinismo, mas não conduz. A Teoria de Freud, porque desnuda o que há de mais secreto e pessoal no discurso da consciência, e maximiza o papel do Eros e do Thanatos, só conduz ao cepticismo ao cepticismo quem o quer, ainda que Freud não tivesse sido um optimista, como eu não sou. A suspeição não paralisa a acção, a vontade, nem substima a energia criadora. Os valores são produto da cultura, da mente, ou do espírito, e tanto submetem como libertam, é verdade. Os valores não são apanágio do cientista, do erudito, ou sequer da cultura ocidental. Os povos possuem-nos, e alguns deles viveram assim milhares de anos.
Se nos dizem que as primeiras estrelas nasceram do bojo de “buracos negros”, e que em cada galáxia há-de existir um pelo menos, que uso faremos destes rombos que a nossa consciência vai sofrendo? Se a evolução da nossa espécie começou há escassos minutos no relógio da vida, e terminou há cem mil anos, com vários parentes extintos pelo meio, e que a mudança posterior se deve a combinações mais ou menos aleatórias (sê-lo-ão?) do mesmo genoma, que conclusões devemos extrair? Se possuímos hoje extraordinários meios técnicos, resultantes de uma metodologia científica que parece imparável (incapaz de se esgotar, como sucedeu com outras metodologias), e vivemos, porém, num mundo carregado de ameaças totais (e totalitárias), que devemos pensar, que devemos fazer?
Agarrarmo-nos à magia, à superstição, ao fanatismo religioso? Não, com certeza. Devemos parar um pouco, para pensar, para dialogar, para reflectir. Para verificar aonde nos está levando esta Razão. E isto só é possível utilizando outra Razão. Não é a Razão que se questiona a si própria, é já outra Razão.
§36. No âmbito do conceito de Razão cabe uma dimensão moral que importa não escamotear e que está em perigo. Determinados cépticos, dos quais distinguia os cínicos pela sua extrema arrogância, não se importariam nada que desaparecesse. Apesar deles, não desaparecerá : a vertente moral remete-nos para o carácter social originária do conceito, mais visível ainda na noção de racionalidade. A fonte e a função da sociabilidade que a noção possui, herdámo-la porventura de Aristóteles, e é ainda nossa matriz, sendo que cometeríamos um erro se olvidássemos que é, sempre foi, a orientação capital da filosofia budista e da ética de Lao-Tsé e de Confúcio. A liberdade do pensar, o exercício crítico do pensar, o acto de pensar-se a si mesmo, do pensamento que se pensa a si próprio, nessa formidável expressão de autonomia, é uma herança milenar. Nesse tópos e nessa posição em que cada um em que cada um se coloca, está explícita a certeza (ou a crença) de que indivíduo possui a capacidade de efectivar esse acto, de exercer esse poder, e, portanto, deve executá-lo. Reencontramos novamente o “podes” e o “deves”. Sabe-se desde há muito, e hoje melhor ainda, que, por defeito, alguns seres humanos não possuem tal capacidade (lesões e patologias), mas tais factos apenas confirmam a asserção. Sabe-se que o não-consciente ocupa um lugar e uma função proeminentes, mas tal facto apenas torna mais exigente o esforço de agir com racionalidade. Aquela que é possível, humana, e não a que seria própria de anjos ou deuses, ou aquela que moralista de todos os matizes advogam sem sucesso. Sabe-se que a razão e a ética não escapam às determinações sociais, nem às mediações, e que, de uma maneira algo simplificada e genérica, cada “classe social” produz as suas concepções, sendo que as classes dominantes tendem a impor as suas a todas as demais. É exactamente por isso mesmo que a sua concepção não tem que ser necessariamente nem a única, nem a melhor.
§37. Existem somente diversas, e algumas até contraditórias, concepções do que seja a Razão, significando isto que não existe, nem existirá jamais, uma Razão comum e universal? Dois itens a considerar : primeiro – Creio que existe uma capacidade comum, que se sustenta a nível neural, como parece comprovarem as investigações mais recentes das áreas corticais; os marcadores somáticos, a combinação dos neurónios entre si no decorrer do crescimento do indivíduo, a importância da selecção, em vez de nos conduzirem para um biologismo redutor, mostram-nos o papel decisivo da experiência, da acção, do meio ambiente. Essa capacidade depende destes factores, não está constituída e muito menos madura à partida. Neste “substratum” há-de assimilar-se, seleccionar-se, fixar-se, a série de normas e de valores que hão-de nortear a conduta racional. Em segundo lugar, havemos de admitir, em consonância, que se forjaram entre os humanos pontos de vista comuns, regras consolidadas pela experiência, mais vantajosas para a espécie, para além daquelas que foram, ou são, mais vantajosas para determinados grupos. O problema crónico que se coloca é sempre o porquê de todas, ou quase todas, as regras (ditas racionais) não serem uniformemente aplicadas, antes, pelo contrário, de serem aplicadas com dois pesos e duas medidas. Tal questão é tão vasta e profunda que explica em boa parte a diferença entre as teorias de Platão e de Aristóteles; vamos topar com ela ao longo de toda a história da filosofia ocidental. Perfila-se perfeitamente na polémica dos philosophes contra a Metafísica. É, ao cabo e ao resto, a eterna querela dos universais com os nominalistas. Julgaram os juristas e os filósofos do Direito, na peugada de Kant, terem resolvido o problema. Na realidade não resolveram : o direito é precisamente o campo mais esclarecedor das disputas, no qual a realidade dos “dois pesos e duas medidas” mais de faz sentir. Quem exerce o direito possui uma determinado poder, mas ele próprio depende em grande parte de uma autoridade que lhe é exterior.
Examine-se o “direito à vida”, que parece tão universal, óbvio e vantajoso para a espécie. O espectáculo das guerras e das outras violências, desmente categoricamente tal asserção. Bastaria citar a pena de morte no código penal de alguns Estados da América do Norte, para introduzir a “barbárie” na “civilização”. Nenhum indivíduo singular quer morrer e sofrer sequer, mas uma grande parte da humanidade mata e aplica o sofrimento aos outros. São “irracionais”? Transgridem um código universal, consensual?
Os desejos e os interesses são comuns à natureza humana, mas não são idênticos. Tanto a sociabilidade é constitucional à natureza humana, como o é a conflitualidade entre dois indivíduos que desejam a mesma coisa.
§38. Da discussão nasce a luz. Mas é necessário que essa luz não cegue. Por vezes importa mais que nasçam muitas luzes. E talvez seja este o caso no mundo actual. A ética da discussão tem todo o seu valor, mas não é, nem será nunca, absoluto. Absoluto só o totalitarismo religioso e político. Os estereótipos e os preconceitos, cegamente convictos, sempre trabalharam para esse fim. O consenso não pode ser um objectivo central, e menos ainda, único. Chega-se a um consenso, certamente, através de mediações, e o próprio resultado admitido por consenso, é uma outra mediação. Aquilo que realmente se almeja é um projecto comum, uma acção conjunta, admitida por todos como a mais conveniente, útil, urgente, ou vantajosa tanto para os intervenientes como para aqueles que, putativamente, eles “representam”. Se tais mesas-redondas não se confinarem a uma mera ilusão de poder, então é bom. Saber é poder. A palavra autorizada de especialistas ou de sábios, que valem pelo seu mérito pessoal, ou também pelas áreas de trabalho bem sucedidas (a biologia, a medicina), pode constituir-se como a força decisiva da educação, da formação, da opinião pública enfim. A cooperação e o respeito mútuo, dos jurisconsultos e dos legisladores, com comissões e fóruns desse género, seria um grande passo em frente. Sem que nos iludamos : os especialistas e os sábios raramente se entendem, e quando se entendem é, o mais das vezes, a posteriori, ou seja, casa roubada-trancas à porta. Além disso, o seu consenso pode resultar puramente estéril, e retórico, se os poderes fácticos o desprezarem, o que sucede normalmente.
Mais útil ainda que uma simples recomendação por consenso, seria elaborar-se em conjunto modelos de conduta, modelos de existência, tanto mais globalizantes quanto se adequarem às consequências da globalização actual. Ver-se-ia como são intoleráveis as desigualdades sociais e assustadores os níveis de sobrevivência de grande parte da humanidade. Construir modelos precisos, pontuais, concretos, articulá-los gradualmente uns com os outros, por graus de complexidade, simular as possibilidades intrínsecas de sinergias, avaliar os seus efeitos, fazer emergir regras de autoorganização dentre eles, eis como seria útil avançar neste domínio.
Quando falo de uma utopia concreta, é sobretudo disto que falo. Não de um ideal absoluto, terminal, e integrista. Estes ideias de perfeição, podem servir como hipóteses racionais, mas devemos saber do princípio ao fim que não se realizarão jamais. Quando acreditamos que são mesmo possíveis, o ideal corre o risco de se tornar um pesadelo. A bondade e a cooperação humanas são possíveis, pode-se comprovar pela experiência, e as investigações científicas não contrariam essa dimensão neural e comportamental. Espinosa falava de compaixão, Darwin, de simpatia. Outra coisa, bem diferente, é a ilusão de “um homem novo” convertido à plena bondade. É a memória do mal que nos torna melhores, ou deveria tornar.
As religiões dever-se-iam entender sobre aquilo que nelas é irredutível, segundo os melhores religiosos, e que é comum : a aceitação do outro. Ser eu próprio e, ao mesmo tempo, conseguir ser o outro. Simpatia e empatia. Comunhão.
Os cientistas laicos ou materialistas, deveriam ser capazes de fundar sobre a sua própria ciência, normas éticas a montante e a jusante das suas práticas. Para mim bastar-me-iam a ciência, a filosofia, a estética, para fundar uma ética, dispensava perfeitamente a religião. Mas o mundo não é assim. E nem sequer tenho certezas suficientes para desejar impor aos outros as minhas convicções. Serão elas as únicas verdadeiras, isto é, será o discurso científico verdadeiro? E, sendo-o de algum modo, satisfará todo o conceito? Dispensar-se-iam, assim, milénios de tradições culturais? Encontrariam lenitivo todas as mentes em uma ética “científica”?
Não sei se a humanidade se encontra na infância, se na velhice. No primeiro caso, sobre-lhe ainda quase tudo para andar. No último caso, desaparecerá levando consigo os mesmos enigmas de sempre.
§39. Razão Teórica /Razão Prática – o esforço de Kant permanece um desafio incontornável. Nenhum dos passos seguintes, de Hegel, Marx, Husserl, Heidegger, fechou o percurso. Porque todas as filosofias são epocais, cada época coloca-nos novos desafios, mesmo que sejam os mesmos mas com novas abordagens. A Razão objectiva e laica, e a Razão sintéctica e cosmopolita, o Entendimento neutro e a crença racional, é uma aliança por fazer. A minha crença é que a ciência poderia sustentar perfeitamente uma ética racional, ou seja, materialista e cosmopolita. Mas é apenas uma crença. Talvez somente a sustente, mas não a absorva. A ciência pode descrever o acto criador, e estético, mas o esteta não produz socorrendo-se de alguma das metodologias científicas. Um indivíduo pode, porventura, explicar o seu comportamento, e o dos outros, mas a opção que fez pode trazer-lhe tantos convenientes como inconvenientes. Escolher o melhor raramente é completamente racional. Aconteça o que acontecer ele tem de decidir-se. Não são poucos os indivíduos que compreendem muito bem a situação em que vivem, as suas causas, o Sistema, a exploração de que são vítimas, e, todavia, não dão o salto, não passam à acção. Este hiato é um momento decisivo e faz toda a diferença. Muitos deles aderem a uma manifestação pública de repúdio, quando, e só quando, já muitos aderiram. Um círculo vicioso. Censuram-se, por vezes, as manifestações públicas por serem “orquestradas” : na realidade, são aqueles que se colocam do outro lado da barricada, que o dizem. Raramente acontecem explosões espontâneas. Os lutadores por temperamento constituem uma minoria. Tal como um artista cria e produz em alguém uma emoção, uma vontade, assim são os organizadores, os lideres. O acto de julgar e o acto de realizar, de agir, não são contínuos.
Além disto, existem diversos factores que servem para desculpabilizar os actos, ou a falta deles. O cientista, o técnico, o gestor, o operário, que produzem armas letais, por encomenda dos senhores da guerra (a indústria armamentista fornece trabalho a muitos milhares), não pode sentir-se completamente ilibado. Tanto mais o mundo é global, tanto mais a responsabilidade o é também. Aquilo que se faz aqui, pode atingir alguém nos antípodas. A indiferença com que muitos de defendem, é, afinal, o mais baixo grau de liberdade.
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