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segunda-feira, 23 de novembro de 2009
NA HORA DA NOSSA MORTE (cont.), novela.
DIÁRIO DE MARTA – 6
Fui ontem à noite a Santa Cruz. Percorri a estrada que leva à escadaria da praia da Formosa, segui mais adiante e estacionei no exíguo espaço do miradouro no topo da falésia que os namorados escolhem, num acesso de romantismo, para atraírem o abismo para eles. Um pequeno muro impede-nos de lançar o carro arriba abaixo. Podemos fazê-lo mais à esquerda, por um caminho estreito e lamacento no inverno. Não sou a primeira a pensá-lo, nem a primeira a passar da intenção à acção. Imagino o automóvel a rebolar por ali abaixo, a as arestas a rasgarem a chapa, o tejadilho a esmagar-se, o depósito de gasolina a explodir. Estremeço. Desejo morrer e ao mesmo tempo não quero. A minha tristeza não é daquele género que leva as mulheres a beber veneno para os ratos (matou-se deste modo uma vizinha, encontraram-na horrivelmente inchada), ou a lançar o automóvel do cimo das falésias de Santa Cruz. Preferia deitar-me e não acordar. Preferia snifar coca, injectar heroína, fumar ópio e, assim, desvanecer sem imaginação e sem dor. Porém, nunca experimentei essas drogas, não sei sequer onde buscá-las. Até para isso precisava de ter iniciativa, e iniciativa é o que me falta seja para o que for. Necessito e quero realizar actos, contudo há um motor avariado no meu cérebro, limito-me a cumprir os comportamentos profissionais de rotina e nada mais. Quereria ir ao cinema regularmente, tantas vezes quantas os muitos filmes anunciados que me agradam, assistir aos espectáculos da Olga Roriz, ou da Companhia Nacional de Bailado, de que gosto tanto. Porém, não sou capaz sozinha de me decidir. Saio dos turnos do hospital mais do que exausta, exaurida, sufocada com o sofrimento a que assisto, às dores e às mortes que não posso evitar. Trago comigo um sono de séculos, como se a cura pelo sono a que me submeti não tivesse terminado. Talvez seja a defesa natural do meu corpo. Dormir. Esquecer. No entanto, tenho de repetir os mesmos actos: erguer-me com as imagens da minha filha morta a ocupar-me todo o espaço dos meus pensamentos, logo pela manhã.
O meu ex-marido enviou-me uma mensagem perguntando-me se estava tudo bem comigo. O sacana. Ainda se atreve. Eu sei que ele me ama, que deseja mais que tudo o meu perdão. Nem amor, nem perdão. Ponto final.
A minha tristeza não tem fim. É constante e acerada como uma faca espetada na mente, no coração. Rodeiam-me acontecimentos que não me interessam nada, atravesso-os com absoluta indiferença. Vejo mas não olho. Vejo o mundo a desabar, a anarquia nas ruas, as chusmas de desempregados em fúria, as multidões iradas a clamar contra os impostos e os salários congelados, os partidos políticos a organizarem manifestações de protesto contra um governo que não acautelou a dívida pública, que perdeu o controlo da economia, que privatiza tudo para baixar o deficit, que já não tem dinheiro nos cofres para pagar aos funcionários. Vejo velhos e novos partidos a defenderem a salvação do país através de soluções totalitárias: novos messias, novos Salazares, dom Sebastião que emerge do nevoeiro, a democracia posta entre parêntesis, proclamações delirantes de patriotismo serôdio em reacção às ameaças das potências europeias de intervir drasticamente no nosso país de merda. Merda para tudo isso, merda para todos eles. Que se afunde o país, que se afundem nove séculos de história. Afundada estou eu e ninguém me acode. Na realidade, sou eu que ando a acudir aos desgraçados que me caem nas mãos na urgência do hospital. A mim ninguém me socorre.
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2 comentários:
Zé,
O último bloco deste texto da novela, que venho seguindo com curiosidade e atenção, é um retrato daquilo que muitos de nós pensam e sentem... hoje.
Infelizmente é tudo bem real.
Tudo muito bom, como sempre!
E a produção continua a bom ritmo, meu amigo!
Um abraço
Zé,
E reparei na Paula Rego... embora não seja muito apreciadora das suas "mulheres".
Um abraço
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