DIÁRIO DE MARTA – 4
Não se pode circular. Automóveis avariados no meio das ruas, em cima dos passeios, montanhas de lixo, cães vadios chafurdando nos restos fétidos, mendigos famélicos disputando entre si e com os animais, como animais, abandono a avenida Humberto Delgado e desvio para a Henriques Nogueira, pior a emenda que o soneto, uma manifestação silenciosa impede-me o avanço, deixo-me ir atrás contando os segundos, meto na primeira à esquerda, chego sem mais percalços ao parque da várzea e fujo para fora da cidade. O mundo desabou. Não há futuro, o presente é passado. Só tenho um passado.
Nem quero pensar nos amores fúteis da minha mãe. Verdadeiramente ridículo. Com aquela idade, a disfarçar as brancas com o artifício do loiro, quando se maquilha é uma máscara, não assusta mas faz sorrir, a condescendência que se tem por uma velha gaiteira. Enfim, ainda não é tão velha como isso. E não estarei a ser preconceituosa? O amor não pede bilhete de identidade. Quando chega, chega. Mas é a minha mãe, pôssa! E o marido atraiçoado é o meu pai. Como será esse Bártolo? Dono de uma galeria de arte?? Isso enriquece? O tipo oferece-lhe diamantes e rubis? Champanhe e caviar? Tenho que admitir que ela é culta, tem bom gosto e conhecimentos de história da arte, nas estantes não lhe faltam livros desses, sim, é verdade, a coisa atraiu-a, a sedução dele andará por aí, exposições, inaugurações, artistas, gente bem falante, sim, esse mundo agrada-lhe evidentemente. A cama vem a seguir. O costume.
Ontem, numa das rotundas da várzea, cruzei-me com um carro e a pessoa que o conduzia provocou-me aquela emoção que se sente quando vemos alguém do outro mundo. Não identifiquei aquele homem, mas reconheci-o. Vinha de tempos imemoriais, como se subisse do fundo do oceano, viesse à superfície, ficasse a flutuar entre as névoas da memória. Tinha o cabelo completamente grisalho, um rosto de homem maduro, a começar a envelhecer, mas forte, bonito. Não me viu, por isso faltou-me a certeza de um «clique», uma troca surpreendida e cúmplice de olhares. Passei a tarde a pensar nisso. Seguramente que o conheci em qualquer altura da minha vida. Havia nele traços físicos inconfundíveis, invulgares. Somente à noite quando estava prestes a adormecer, o nome me surgiu como a legenda de uma fotografia: Carlos! Exactamente. Na fotografia é um rapaz de dezoito anos, cabelo e sobrancelhas negras, olhos castanhos grandes e inteligentes, às vezes cheios de doçura, outras vezes perdidos no além, fundos de melancolia, eu dizia-lhe: «Tens saudades do futuro!». O Carlos. Meu amor primeiro dos dezasseis anos. Aqui. Bem perto de mim. Reaparecido como dom Sebastião.
E fiquei a pensar naquela frase tão batida: não há amor como o primeiro.
1 comentário:
Sigo o Diário, sigo a novela... com gosto.
Abraço
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